RESUMO: O Direito Penal brasileiro, tal como estruturado, opera como uma das faces mais visíveis do poder estatal. Longe de ser um instrumento neutro de regulação social, ele manifesta e reproduz dinâmicas de exclusão, controle e disciplinamento de corpos e subjetividades. Para compreender sua configuração, é preciso lançarmos mão de olhares interdisciplinares — especialmente os da sociologia crítica e da psicanálise — que desvelam os sentidos ocultos da punição e revelam a íntima relação entre Direito, poder e desejo.
Introdução
O Direito Penal brasileiro, longe de ser um campo neutro da técnica jurídica, revela-se como um espelho invertido da sociedade: nele, projetam-se os fantasmas coletivos, os recalques históricos e os modos de organização da violência simbólica e material. Mais do que um conjunto de normas voltadas à repressão de condutas ilícitas, o sistema penal opera como uma tecnologia de exclusão, cuja seletividade estrutural reproduz desigualdades de classe, raça e território — ao mesmo tempo em que oferece à sociedade um gozo inconsciente com a punição do outro.
Nas últimas décadas, assistimos à expansão do Direito Penal sob o signo da “segurança pública”, enquanto as promessas de cidadania, justiça social e inclusão se esvaziam. A sociedade brasileira, herdeira de um passado colonial, escravocrata e patriarcal, não rompeu com suas estruturas fundantes — apenas sofisticou seus dispositivos de controle. Nesse contexto, a prisão, a violência policial e o punitivismo se consolidam como formas legítimas de governo dos corpos excedentes, convertendo o Direito Penal num instrumento de gestão do desamparo.
Este trabalho propõe uma leitura do Direito Penal brasileiro a partir das lentes da sociologia crítica e da psicanálise lacaniana, buscando compreender não apenas o que o sistema jurídico faz, mas o que ele deseja — e o que a sociedade goza ao desejá-lo assim. Partindo das contribuições de autores como Pierre Bourdieu, Loïc Wacquant, Silvio Almeida, Vera Malaguti Batista, Jacques Lacan, Sigmund Freud e Jurandir Freire Costa, o ensaio percorre quatro eixos fundamentais: (1) a estrutura simbólica e disciplinar do sistema penal; (2) a seletividade punitiva como sintoma da desigualdade estrutural; (3) o colapso da mediação jurídica diante do mal-estar contemporâneo; e (4) o gozo social da exclusão como sustentáculo do pacto narcísico que une os que se julgam “cidadãos de bem”.
Ao articular sociologia e psicanálise, pretende-se lançar luz sobre as dimensões visíveis e invisíveis da punição no Brasil, problematizando o discurso jurídico dominante e propondo caminhos éticos e políticos para repensar a justiça para além do cárcere, da vingança e do recalque social. Porque, como já advertia Lacan, “a verdadeira ética do sujeito é a ética do desejo” — e talvez só um Direito que deseje menos punir e mais escutar possa operar como mediação simbólica legítima num mundo em ruínas.
1. A Função Social do Direito Penal: entre o controle, a exclusão e a seletividade
O Direito Penal, enquanto sistema normativo de repressão estatal, não pode ser compreendido apenas sob a ótica formalista. É necessário investigar suas funções reais dentro da estrutura social, observando não apenas o que a lei diz, mas a quem ela se dirige, a quem ela protege e quem ela castiga. Essa análise crítica encontra terreno fértil na sociologia, especialmente nas tradições que enxergam o Direito Penal como instrumento de poder e controle social.
1.1 Durkheim: a função moral da pena
Para Émile Durkheim, um dos fundadores da sociologia clássica, a pena não é primordialmente um meio de prevenção ou retribuição racional, mas um mecanismo simbólico de reafirmação da consciência coletiva. Em A Divisão do Trabalho Social (1893) e As Regras do Método Sociológico (1895), Durkheim argumenta que o crime, longe de ser um desvio patológico, é um fato social normal — uma constante em todas as sociedades. Ele cumpre a função de reforçar a solidariedade entre os membros da comunidade por meio da condenação pública do comportamento desviante.
A punição, assim, não visa a correção do infrator, mas serve ao fortalecimento da coesão social. Contudo, essa visão, embora importante, tende a naturalizar o funcionamento do sistema penal e desconsidera sua historicidade, sua seletividade e seu uso político.
1.2 Foucault: punição como tecnologia de poder
É Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1975), quem inaugura uma crítica radical à racionalidade punitiva moderna. Para ele, a transição do suplício corporal à prisão não representou um avanço humanitário, mas uma mutação na forma de exercer o poder. A punição moderna desloca-se do corpo para a alma: não mais mutilar, mas vigiar, classificar, corrigir. O que se desenvolve é um biopoder, que gerencia a vida social através da vigilância e da normatização dos comportamentos.
Foucault mostra como a prisão moderna nasce articulada com instituições como a escola, o hospital e o quartel — todas voltadas para a disciplina dos corpos. O Direito Penal, então, é parte de uma rede de saber-poder que produz sujeitos obedientes. O criminoso deixa de ser um pecador ou inimigo do rei para se tornar um "anormal", uma figura a ser controlada, estudada e domesticada.
No contexto brasileiro, essa crítica foucaultiana revela-se urgente. O encarceramento em massa de populações marginalizadas é menos uma consequência do crime e mais uma estratégia de gestão da pobreza, do racismo estrutural e da precariedade urbana.
1.3 A crítica latino-americana: seletividade penal e racismo estrutural
No Brasil, a crítica ao sistema penal não pode ser feita sem considerar a herança colonial e escravocrata que estrutura nossas instituições. Autores como Salo de Carvalho, Vera Malaguti Batista, Lélia Gonzalez e Silvio Almeida denunciam a seletividade penal como um projeto político-ideológico: o Direito Penal brasileiro não reprime o crime, mas seleciona corpos a serem punidos.
Salo de Carvalho, em sua obra Criminologia Crítica: introdução à sociologia do direito penal (2008), afirma que o sistema penal é essencialmente reprodutor das desigualdades sociais e raciais. Já Vera Malaguti Batista, em Introdução Crítica à Criminologia Brasileira (2014), sustenta que a criminalização da pobreza é um dos pilares do Estado penal moderno, especialmente em países periféricos.
A teoria do punitivismo seletivo explica como determinadas condutas praticadas por sujeitos privilegiados são naturalizadas, invisibilizadas ou despenalizadas, enquanto ações similares de sujeitos marginalizados são hiperpenalizadas. Essa seletividade é racializada: segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 67% da população carcerária brasileira é composta por pessoas negras, e os crimes que mais levam à prisão são patrimoniais ou relacionados ao tráfico de drogas — quase sempre em pequena escala.
Lélia Gonzalez e Silvio Almeida acrescentam a esse debate a centralidade do racismo como dispositivo de funcionamento do Estado. O Direito Penal brasileiro, nesse sentido, herda não apenas o formalismo jurídico europeu, mas também os mecanismos de segregação e controle racial herdados da escravidão.
1.4 A prisão como gestão da marginalidade
A crítica sociológica contemporânea, inspirada em autores como Loïc Wacquant, vê o crescimento do encarceramento como parte da transição do Estado social ao Estado penal. Em As Prisões da Miséria (1999), Wacquant mostra como, após o desmonte das políticas públicas de bem-estar, as sociedades contemporâneas passaram a utilizar a prisão como instrumento de controle dos “indesejáveis” — sobretudo jovens pobres, negros e desempregados. A criminalização da pobreza substitui a assistência pelo castigo, e o cárcere torna-se o destino de populações abandonadas pelo mercado e pelo Estado.
No Brasil, esse processo é agravado pela falta de políticas públicas estruturantes. A prisão, aqui, cumpre papel paradoxal: supostamente protege a sociedade, mas na prática destrói os vínculos sociais do condenado e multiplica a violência. Como afirma o sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, o encarceramento em massa se articula ao genocídio da juventude negra e periférica — um fenômeno que não é acidental, mas estrutural.
2. A Psicanálise e o Inconsciente da Lei: culpa, gozo e punição
O Direito Penal, em sua face ostensiva de imposição da norma, revela-se também como espaço simbólico de inscrição do desejo e da culpa. Para além da lógica jurídica que pretende governá-lo, o sistema penal está atravessado por pulsões inconscientes, fantasias de castigo e estruturas subjetivas de reconhecimento e negação. A Psicanálise, desde Freud, oferece instrumentos teóricos para compreender o que se passa "para além do princípio da legalidade" — ou seja, no plano do inconsciente social e do desejo.
2.1 Freud e o supereu penal: o prazer na punição
Em O Mal-Estar na Civilização (1930), Freud desenvolve a tese de que a cultura, ao exigir a repressão das pulsões individuais, produz como contrapartida um aumento da culpa e do sofrimento psíquico. A renúncia pulsional, necessária à vida em sociedade, instala no psiquismo o supereu — uma instância crítica, que vigia, julga e pune o ego. Mas o supereu não é apenas um guardião ético: ele goza com a punição. Ele é severo, cruel e, paradoxalmente, quanto mais o sujeito obedece, mais ele cobra. Isso ajuda a entender a repetição obsessiva de comportamentos autodestrutivos, delituosos ou moralistas.
Transposto ao campo penal, esse raciocínio aponta que o sistema de justiça criminal não apenas busca restaurar a ordem jurídica, mas encena o drama psíquico da culpa e da expiação. O réu, ao ser julgado e punido, realiza simbolicamente a punição que seu supereu exige. O juiz, o promotor, os agentes do Estado — e até mesmo a sociedade — ocupam o lugar daquele que pune com justificativas morais, mas que inconscientemente pode também gozar do sofrimento alheio.
Esse gozo punitivo se torna ainda mais visível nos discursos de linchamento público, no moralismo penal e nas práticas institucionais de tortura simbólica ou real, muitas vezes legitimadas em nome da “ordem” ou da “defesa da sociedade”. A pena, então, não apenas reprime: ela encena o conflito entre pulsão e lei.
2.2 Lacan: a Lei, o Desejo e o Gozo interditado
A teoria lacaniana aprofunda a leitura da relação entre sujeito e lei. Para Jacques Lacan, a Lei é constitutiva do sujeito. É a entrada na linguagem — ou seja, no campo simbólico — que funda o sujeito do desejo, e essa entrada é marcada pela castração simbólica, pela renúncia ao gozo total. Em termos simples: só nos tornamos sujeitos ao aceitar limites, regras, proibições — a “Lei do Pai”.
No seminário A Ética da Psicanálise (1959-1960), Lacan discute o que chama de real do gozo: aquilo que escapa à simbolização e que retorna como excesso, como transgressão. O crime, então, pode ser compreendido como um modo de tentativa de retorno ao gozo perdido — uma recusa da castração. O sujeito criminoso, em certas situações, não busca apenas violar a lei, mas fazer-se ver, inscrever-se no Outro, produzir sentido para sua própria existência subjetiva fragmentada.
A pena, por sua vez, pode operar como resposta simbólica a esse gozo transgressor. Mas a psicanálise alerta: o castigo pode não conter o gozo, mas reforçá-lo. Em casos de estrutura perversa, por exemplo, o sujeito pode buscar ativamente a punição como meio de satisfação. Isso nos leva a compreender que o sistema penal, ao punir, nem sempre reeduca — e pode, em certos casos, alimentar o circuito pulsional que deseja a transgressão e o castigo.
2.3 O sujeito do crime como sujeito do desejo e do trauma
A psicanálise não busca desculpar o sujeito da norma, mas reconhecer sua singularidade. Para muitos indivíduos, especialmente os marginalizados pela sociedade, o crime pode representar uma forma de inscrição simbólica. Nas palavras de Maria Rita Kehl, o ato infracional pode ser “uma tentativa desesperada de existir” — sobretudo para sujeitos historicamente silenciados, como os jovens negros das periferias brasileiras. A punição, nesses casos, oferece um lugar: o lugar do “criminoso”, do “perigoso”, do “reconhecido”.
Esse ponto dialoga com a sociologia crítica e com a psicanálise de Frantz Fanon, que em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952) já denunciava os efeitos psíquicos da exclusão colonial. Para Fanon, o sujeito negro colonizado é forçado a se reconhecer através do olhar punitivo do Outro branco, e sua violência pode surgir como uma forma de romper esse circuito de humilhação. A criminalização, assim, opera também como forma de reprodução do trauma coletivo.
Autoras como Vera Iaconelli e Jurandir Freire Costa ampliam essa crítica ao mostrar como o sofrimento psíquico de camadas populares, LGBTQIA+, mulheres e racializados é frequentemente patologizado, medicalizado ou criminalizado, enquanto os sujeitos privilegiados têm acesso ao cuidado, à escuta e à reabilitação.
2.4 O gozo da punição institucional
O sistema penal brasileiro se alimenta não só da punição legal, mas também de uma espécie de sadismo institucionalizado. A superlotação carcerária, a tortura cotidiana, a violência policial e a precariedade dos presídios não são desvios, mas expressões de um desejo social de castigar. O sujeito punidor também goza — e esse gozo se traveste de moral, de legalidade, de “defesa da ordem”.
A psicanálise revela que o desejo de punir é ambíguo: ele pode servir tanto ao recalque da culpa quanto à satisfação perversa. A espetacularização da prisão de figuras públicas, os linchamentos digitais, os discursos de “bandido bom é bandido morto” são exemplos dessa economia libidinal perversa que habita o discurso penal. O que se vê não é apenas a aplicação da norma, mas a encenação de um teatro social do castigo.
3. O Direito Penal como sintoma do mal-estar contemporâneo: entre a falência do laço social e o gozo punitivo
O Direito Penal brasileiro não pode ser compreendido apenas como instrumento técnico de repressão a condutas proibidas. Ele se mostra cada vez mais como um sintoma — no sentido psicanalítico do termo — de um mal-estar mais profundo: a falência dos vínculos sociais, a corrosão da função simbólica da lei e a ascensão de uma lógica de gozo que contamina as práticas jurídicas, os discursos sociais e as estruturas institucionais.
3.1 O colapso do simbólico e o retorno do real da violência
Jacques Lacan, ao longo de sua obra, indica que o sujeito só pode se constituir na articulação entre três registros: o Real, o Simbólico e o Imaginário. A Lei pertence ao campo do Simbólico: ela organiza, nomeia, estrutura o desejo e impõe limites ao gozo. No entanto, quando a Lei perde sua autoridade simbólica — quando deixa de operar como mediadora dos conflitos — o que retorna é o Real da violência, do trauma e da pulsão sem amarra.
Na contemporaneidade, assistimos ao enfraquecimento da autoridade simbólica do Estado e do sistema jurídico. O Direito Penal, em vez de representar o pacto social de contenção da barbárie, passa a funcionar como espetáculo punitivo ou como instrumento de vingança moral. A lógica do “inimigo”, da “guerra ao crime”, da “eliminação do outro perigoso” substitui a mediação jurídica. Trata-se de um retorno do real da pulsão de morte, que toma a forma de encarceramento em massa, extermínio policial e necropolítica estatal.
Essa desfuncionalização da Lei não ocorre no vácuo: ela é sintoma do esgarçamento do laço social, da desconfiança generalizada nas instituições e da precarização subjetiva. Como afirmam Renato Mezan e Vera Iaconelli, a contemporaneidade está marcada por uma “orfandade simbólica”, pela ausência de referências estáveis, o que favorece o apelo a formas autoritárias de controle e punição.
3.2 A ideologia da segurança e o discurso do ódio
A expansão do Direito Penal nos últimos anos no Brasil ocorre sob o signo da “ideologia da segurança”, termo cunhado por Zaffaroni e desenvolvido por Juarez Cirino dos Santos. Trata-se de uma ideologia que transforma a insegurança social — fruto da desigualdade estrutural — em problema de ordem pública, deslocando a responsabilidade do Estado para o indivíduo.
Nesse discurso, o criminoso é o bode expiatório das falhas estruturais do sistema. O Direito Penal não atua mais com base na legalidade estrita, mas na gestão de riscos, em nome da prevenção de futuros “perigosos”. A pena deixa de ser exceção para se tornar regra. E a sociedade, intoxicada por narrativas de medo e ressentimento, passa a exigir punição como forma de satisfação imediata — não da justiça, mas do desejo inconsciente de eliminação do outro.
Essa demanda punitiva é alimentada por discursos midiáticos e políticos que reforçam fantasias de pureza, controle e vingança. Na psicanálise, poderíamos dizer que se trata de um gozo do supereu: quanto mais se pune, mais se exige punir. O “ódio do bem” — expressão utilizada por Lacan para indicar o gozo moralizante que se sustenta na exclusão do outro — se expressa na forma de linchamentos digitais, execuções extrajudiciais e na legitimação social da violência institucional.
3.3 A função do cárcere na gestão do desamparo social
O sistema carcerário brasileiro, longe de cumprir a promessa de ressocialização, opera como mecanismo de gestão do desamparo. Inspirados por Loïc Wacquant, autores como Vera Malaguti Batista e Salo de Carvalho mostram que o encarceramento em massa é a resposta do Estado neoliberal à falência das políticas públicas.
A prisão substitui a escola, o hospital, o trabalho, a cultura — torna-se o único lugar onde o sujeito precarizado é “visto” pelo Estado, ainda que para ser punido. O cárcere, portanto, não corrige nem previne: ele administra a exclusão, armazenando corpos considerados excedentes ou perigosos.
Psicanaliticamente, a prisão pode ser lida como o lugar da inscrição do sujeito como resto, como abjeto, como gozo que deve ser eliminado do campo social. O preso é o sujeito expulso do Simbólico, reduzido à condição de objeto a ser administrado. Trata-se de uma política do real sem mediação, em que o sofrimento não é escutado, mas silenciado.
3.4 O desejo de lei e o desejo de vingança
A crise do Direito Penal, no Brasil, é também uma crise do desejo. Quando o desejo de justiça cede lugar ao desejo de vingança, o Direito perde sua função simbólica e se converte em performance do gozo punitivo. A Psicanálise alerta: o desejo de punir pode estar a serviço de recalcamentos não elaborados, de traumas não simbolizados, de ódios projetados sobre o outro.
A saída não está em abolir a lei, mas em reconstruir seu sentido simbólico. A psicanálise não propõe um direito mais “humano” no sentido moralista, mas mais ético: um direito que reconheça o sujeito do desejo e do inconsciente, que escute o sintoma social e que atue como mediador do mal-estar, não como seu amplificador.
É nesse ponto que a crítica psicanalítica se junta à sociologia crítica e às práticas restaurativas e abolicionistas. Como propõe Angela Davis, é preciso imaginar formas de justiça que não passem pela exclusão, mas pela reparação, pelo reconhecimento do trauma coletivo, pela construção de novos laços sociais.
4. O Direito Penal como tecnologia de exclusão e gerenciamento da desigualdade estrutural
A aplicação seletiva do Direito Penal no Brasil evidencia que sua principal função não é garantir segurança ou justiça, mas gerenciar desigualdades históricas por meio da punição. O sistema penal opera como uma tecnologia de controle social, produzindo e reproduzindo marcadores sociais da diferença: cor, classe, território, gênero e orientação sexual. A lei, que deveria funcionar como mediação simbólica universal, é mobilizada como dispositivo de distinção e exclusão — função que tanto a psicanálise quanto a sociologia crítica podem ajudar a desvendar.
4.1 O Direito Penal como instrumento de violência simbólica (Bourdieu)
Para Pierre Bourdieu, o Estado detém o monopólio da violência simbólica — a imposição de sentidos e valores de forma disfarçada, sem coação física, mas com efeitos objetivos. O Direito, nesse sentido, é uma linguagem de autoridade, que transforma desigualdades sociais em diferenças naturalizadas. A seletividade penal, ao criminalizar práticas associadas às classes populares (como tráfico de drogas, furtos simples e atos infracionais juvenis), enquanto protege as práticas dos extratos dominantes (lavagem de dinheiro, evasão fiscal, crimes ambientais, corrupção sistêmica), realiza essa função simbólica: naturaliza a criminalização da pobreza.
Bourdieu diria que o campo jurídico, ao se apresentar como neutro e universal, mascara os interesses de classe que estão em jogo. A prisão do jovem negro periférico aparece como “necessária” para a ordem social, enquanto os delitos de colarinho branco são tratados como exceções, muitas vezes com rituais de impunidade simbólica — habeas corpus, prescrições, delações premiadas seletivas. O Direito Penal, assim, reforça e legitima as hierarquias sociais vigentes.
4.2 Encarnando o inimigo: raça, classe e a fabricação do criminoso (Silvio Almeida e Wacquant)
No Brasil, como já expôs Silvio Almeida em Racismo Estrutural (2019), o Direito Penal é uma das engrenagens da máquina racial. O corpo negro é historicamente inscrito no imaginário jurídico como corpo perigoso, hipersexualizado, potencialmente criminoso. A seletividade penal é racial: as prisões, as abordagens policiais e os assassinatos extrajudiciais se concentram em corpos negros e pobres. A lei penal funciona como mecanismo de racialização institucionalizada.
Loïc Wacquant, por sua vez, mostra que o neoliberalismo substituiu o Estado social por um Estado penal. A função do cárcere, nos EUA e na América Latina, é conter os “excedentes humanos” gerados pelo desemprego estrutural, pelo colapso das políticas públicas e pela financeirização da vida. O sistema penal não pune por aquilo que o sujeito faz, mas por aquilo que ele é — ou melhor, por aquilo que ele representa: a ameaça da desordem social em tempos de crise.
É nesse ponto que o Direito Penal brasileiro revela seu caráter necropolítico, nos termos de Achille Mbembe: ele não apenas regula a vida, mas decide quem deve morrer. O genocídio da juventude negra, o encarceramento em massa e a criminalização dos movimentos sociais não são falhas do sistema — são o sistema funcionando.
4.3 O gozo da exclusão: uma leitura psicanalítica do punitivismo social
A psicanálise pode ajudar a compreender por que esse funcionamento tão perverso do sistema penal não gera revolta, mas gozo social. Há um prazer inconsciente — muitas vezes negado ou projetado — na punição dos outros. O supereu, conforme Freud e Lacan, não apenas ordena: ele exige sacrifícios e goza com o sofrimento alheio. A sociedade brasileira, marcada por profundas desigualdades e por um histórico colonial de violência, desenvolveu um laço social perverso, no qual o gozo se organiza em torno da exclusão do outro.
A figura do “criminoso” — frequentemente associada ao jovem negro da favela — é investida de função catártica: nele se deposita tudo aquilo que a sociedade recusa em si mesma. A violência simbólica e real contra esse outro marginalizado produz coesão social entre os que se julgam “do lado certo da lei”. Trata-se de um narcisismo moral, uma fantasia de pureza que encontra sua identidade na punição do outro.
Como explica Jurandir Freire Costa, há uma tendência a moralizar o sofrimento do outro — sobretudo quando esse outro é negro, pobre, trans ou indígena. A punição não visa restaurar vínculos, mas reafirmar fronteiras. É nesse ponto que o Direito Penal se torna instrumento de gozo identitário, mais do que de justiça.
4.4 Entre o sintoma e a repetição: por um outro paradigma de justiça
O funcionamento do Direito Penal como tecnologia de exclusão revela sua impotência diante do real da desigualdade. A cada nova política de “tolerância zero”, a cada endurecimento da pena, o que se vê é a repetição do fracasso. Do ponto de vista psicanalítico, essa repetição é o que Freud chamou de “compulsão à repetição”: uma tentativa inconsciente de dominar o trauma, que apenas o reatualiza.
Sociologicamente, é o que David Garland nomeou como “governamentalidade punitiva” — uma lógica de gestão da marginalidade que se mantém mesmo diante de sua ineficácia. A prisão fracassa como instrumento de ressocialização, mas triunfa como espetáculo de controle e exclusão.
É preciso, então, pensar um outro paradigma de justiça. Um paradigma que escute o sintoma social, que reconheça o sofrimento psíquico e que reconfigure os modos de lidar com o conflito. A justiça restaurativa, os círculos de paz, as práticas comunitárias de escuta e cuidado são caminhos possíveis. Mas para isso, é necessário romper com o gozo punitivo, desmantelar a fantasia da pureza moral e reintroduzir o desejo como operador do laço social.
Conclusão
Pensar o Direito Penal brasileiro à luz da sociologia crítica e da psicanálise não é um mero exercício interdisciplinar: é um gesto ético e político diante de um sistema que, ao mesmo tempo em que afirma proteger, estrutura-se para excluir. Ao longo deste ensaio, buscamos demonstrar que o aparato penal não opera como instrumento neutro de justiça, mas como mecanismo de gestão das desigualdades, cuja seletividade é racial, territorial, econômica e, sobretudo, simbólica.
A função do Direito Penal não se restringe à contenção de condutas desviantes, mas se inscreve numa lógica de manutenção das hierarquias sociais. No Brasil, a punição tornou-se uma forma de governo, de produção de alteridades perigosas e de reafirmação narcísica do "nós" contra os "outros". O gozo social com a punição do outro — especialmente o outro negro, pobre e periférico — revela um pacto perverso, sustentado pela moral punitivista e pelo recalque do mal-estar estrutural que atravessa o tecido social.
O discurso jurídico dominante, ao prometer segurança por meio da repressão, encobre a impotência do Estado diante do sofrimento social, e transforma o cárcere em depósito de vidas que já haviam sido descartadas antes mesmo do delito. Como revelaram autores como Loïc Wacquant e Silvio Almeida, não há como dissociar a violência penal da lógica neoliberal e do racismo estrutural: o Direito Penal brasileiro é, em muitos aspectos, a face jurídica da necropolítica.
Entretanto, a psicanálise nos lembra que há sempre um resto que escapa ao controle, um ponto de falta que impede o fechamento completo do sistema. É nesse vazio — onde o desejo resiste ao gozo mortífero da exclusão — que pode emergir uma nova ética: uma ética da escuta, da responsabilização subjetiva e da construção de alternativas à lógica da vingança institucionalizada. A justiça restaurativa, a despenalização de condutas e a valorização das práticas comunitárias não são apenas estratégias de redução do encarceramento; são convites à reinvenção do laço social.
Concluímos, portanto, com um deslocamento necessário: não se trata apenas de reformar o sistema penal, mas de deslocar o olhar que sustenta sua legitimidade simbólica. Afinal, enquanto a sociedade continuar gozando da exclusão do outro, o Direito continuará sendo menos um mediador da justiça do que um sintoma da nossa barbárie coletiva. É urgente, portanto, desejar — como sujeitos e como coletividade — um outro modo de fazer justiça, onde o desejo substitua o castigo, e onde o outro não seja mais o objeto da nossa punição, mas parceiro possível de um laço simbólico ainda por construir.
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André Falcão é advogado (OAB/CE 29.591) e publicitário, com licenciatura em Sociologia e formação em Psicanálise, além de possuir formação técnica de nível médio em Administração, em segurança do Trabalho e em Serviços Jurídicos. É articulista em diversos portais especializados, abordando temas de Direito, Cultura, Psicanálise, Comunicação e Ciências Humanas, com enfoque crítico e interdisciplinar. Possui uma sólida formação acadêmica, com pós-graduações em Direito Civil e Processual Civil, Direito e Processo do Trabalho, Direito do Consumidor, Direito Empresarial, Direito Digital e Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Docência do Ensino Superior, Gestão Educacional e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. É instrutor de cursos técnicos e profissionalizantes, ministrando disciplinas jurídicas nas áreas de Administração, Segurança do Trabalho e áreas correlatas, com ênfase na aplicação prática do conhecimento jurídico no contexto profissional e organizacional. Atua também como professor de disciplinas do eixo das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas no Ensino Médio, desenvolvendo projetos interdisciplinares, disciplinas eletivas e itinerários formativos voltados ao estímulo do pensamento crítico, da reflexão social e da capacidade analítica dos estudantes. Exerce a função de Perito Judicial em Tribunais das Regiões Norte e Nordeste, elaborando laudos e pareceres técnicos em grafoscopia, documentoscopia, papiloscopia e numismática. Essa atuação envolve a análise científica de documentos e assinaturas, exigindo rigurosidade técnica e atualização constante, a fim de garantir provas confiáveis e suporte às decisões judiciais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, André Jales Falcão. O Direito Penal Brasileiro sob a Perspectiva da Sociologia e da Psicanálise: uma crítica estrutural ao poder de punir Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2025, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69886/o-direito-penal-brasileiro-sob-a-perspectiva-da-sociologia-e-da-psicanlise-uma-crtica-estrutural-ao-poder-de-punir. Acesso em: 19 nov 2025.
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