GUSTAVO ANTÔNIO NELSON BALDAN[1].
(orientador)
RESUMO: Este estudo analisa a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Ordenamento Jurídico Brasileiro, com o propósito precípuo de verificar sua compatibilidade com os princípios da responsabilidade penal subjetiva e sua possível equiparação ao instituto do dolo eventual. Consiste em uma pesquisa de natureza teórica, com abordagem qualitativa e método dedutivo, planejada a partir de revisão doutrinária e jurisprudencial, bem como análise crítica das implicações jurídicas decorrentes da adoção da referida teoria. De início, são explorados os fundamentos do dolo no ordenamento jurídico brasileiro e as espécies de dolo direto e eventual. Na sequência, examina-se a origem da Willful Blindness Doctrine no sistema da common law, sua evolução histórica e os critérios estabelecidos para sua aplicação. O estudo aponta que, em que pese a teoria tenha sido incorporada à jurisprudência brasileira como desdobramento do dolo eventual, subsistem divergências doutrinárias quanto à sua legitimidade, observando especialmente os riscos de banalização da responsabilidade penal. A pesquisa evidencia a necessidade de cautela para a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, exigindo a presença de pressupostos bem definidos para evitar a responsabilidade objetiva e[2] a violação aos princípios constitucionais penais.
Palavras-chave: Cegueira Deliberada; Dolo Eventual; Responsabilidade Penal.
ABSTRACT: This study analyzes the application of the Theory of Deliberate Blindness in the Brazilian Legal System, with the primary purpose of verifying its compatibility with the principles of subjective criminal responsibility and its possible equivalence to the concept of eventual intent. It consists of theoretical research, with a qualitative approach and deductive method, planned based on doctrinal and jurisprudential review, as well as critical analysis of the legal implications arising from the adoption of the aforementioned theory. First, the fundamentals of intent in the Brazilian legal system and the types of direct and eventual intent are explored. Next, the origin of the Willful Blindness Doctrine in the common law system, its historical evolution, and the criteria established for its application are examined. The study points out that, although the theory has been incorporated into Brazilian jurisprudence as an offshoot of eventual intent, there are still doctrinal differences regarding its legitimacy, especially considering the risks of trivializing criminal liability. The research highlights the need for caution in applying the Willful Blindness Doctrine, requiring the presence of well-defined assumptions to avoid strict liability and the violation of constitutional criminal principles.
Key-words: Willful Blindness; Eventual Intent; Criminal Liability.
1 INTRODUÇÃO
A Teoria da Cegueira Deliberada, também conhecida como Conscious Avoidance Doctrine, Willful Blindness Doctrine ou Teoria do Avestruz, surgiu com o propósito de suprir lacunas na responsabilização penal de indivíduos que, diante de indícios evidentes de ilicitude, optam por não aprofundar seu conhecimento sobre a conduta criminosa, buscando, de forma consciente, manter-se em aparente ignorância. Trata-se de um mecanismo que visa coibir a prática de se beneficiar da própria torpeza, equiparando o desconhecimento proposital ao conhecimento real do fato ilícito para fins de imputação penal.
Em que pese a teoria possuir o intuito de propor o combate à condutas ilícitas encobertas por uma postura de aparente ignorância, a aplicação indiscriminada e desmedida desse instituto, apenas sob a ótica de estar se assegurando a justiça, pode acarretar sérias violações a direitos e garantias fundamentais, sobretudo diante da linha tênue que a separa da vedada responsabilização penal subjetiva, reforçando a importância de estudo aprofundado sobre seus limites e compatibilidade.
Diante desse cenário, o presente trabalho tem como objetivo principal analisar a Teoria da Cegueira Deliberada e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro, examinando sua conceituação, origem, evolução histórica, elementos caracterizadores e pressupostos para sua incidência, bem como críticas e riscos de sua aplicação excessiva.
Inicialmente são explorados os fundamentos do dolo no ordenamento jurídico brasileiro e as espécies de dolo direto e eventual. Após examina-se a origem da Teoria no sistema da common law, sua evolução histórica e incorporação no ordenamento jurídico pátrio. Na sequência analisa-se a aplicação da teoria como desdobramento do dolo eventual e as críticas surgidas com a referida equiparação, observando especialmente os riscos de banalização da responsabilidade penal. Por fim, é feito um levantamento dos critérios a serem observados para a correta aplicação da teoria.
Consiste em uma pesquisa de natureza teórica, com abordagem qualitativa e método dedutivo, desenvolvida a partir de revisão doutrinária e jurisprudencial, bem como análise crítica das implicações jurídicas decorrentes da adoção da referida teoria.
2 FUNDAMENTOS DO DOLO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
De proêmio, de suma importância destacar que no ordenamento jurídico brasileiro, foi-se adotado o conceito analítico de crime, e, portanto, o crime é analisado como um fato jurídico penalmente relevante, que se compõe em fato típico, ilicitude e culpabilidade.
O primeiro elemento no conceito analítico do crime é o fato típico que se caracteriza com uma conduta humana que se amolda à descrição da norma penal incriminadora, produzindo um resultado naturalístico – quando exigido – e nexo de causalidade.
O fato típico se subdivide em quatro pressupostos, quais sejam: conduta, que se trata de ação ou omissão voluntária; resultado, que corresponde a uma modificação perceptível no mundo exterior nos crimes materiais, ou, nos crimes formais e de mera conduta, à simples ofensa ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado; nexo causal, que é o elemento que liga a conduta comissiva ou omissiva ao resultado; e, por fim, tipicidade, que é a adequação do fato criminoso à descrição legal.
É nesse primeiro momento em que é possível auferir a existência de dolo na conduta praticada pelo agente. O dolo, consistente na vontade de concretizar as características objetivas do tipo, trata-se de um elemento subjetivo implícito da conduta, presente no fato típico de crime doloso.
No ordenamento jurídico penal brasileiro, a configuração do dolo é explicada por diferentes teorias. Para o dolo direto, adota-se a teoria da vontade, segundo a qual o agente pratica a conduta com a intenção de alcançar o resultado ilícito. Já em relação ao dolo eventual, aplica-se a teoria do consentimento, pela qual o agente, embora não deseje diretamente o resultado, assume o risco de produzi-lo, demonstrando conformidade com a sua possível ocorrência.
Para Estefam (2025, p. 238) “O dolo possui os seguintes elementos: a) cognitivo ou intelectual (representação), que corresponde à consciência da conduta, do resultado e do nexo causal entre eles; b) volitivo, vale dizer, vontade de realizar a conduta e produzir o resultado”.
O elemento cognitivo ou intelectual acima conceituado, diz respeito à representação mental que o agente faz da sua conduta. Significa que o agente possui plena consciência dos fatos, qual o possível resultado e compreende o nexo causal entre sua conduta e o possível resultado. Ao passo que o elemento volitivo está relacionado à vontade do agente de praticar a conduta e de causar o resultado ilícito propriamente dito. É nesta esfera que se verifica a real intenção do agente, o “querer”, isso significa que, não basta apenas o elemento cognitivo ou intelectual – a consciência de que a ação pode gerar um resultado ilícito – é necessário que o agente aja com o propósito de alcança-lo, retratando o dolo direto, ou, ao menos, assuma o risco de produzi-lo, caso em que se configura o dolo eventual.
A aferição do dolo é indispensável à justa imputação penal, na medida em que permite avaliar se o agente, ao praticar determinado comportamento, estava ciente da ilicitude de sua ação e desejava ou aceitava as consequências dela decorrentes. Em razão disso, o dolo atua como verdadeiro filtro axiológico, compatibilizando a aplicação do Direito Penal com os valores do Estado Democrático de Direito.
2.1 Conceito e espécies de dolo: direto e eventual
À luz da definição previamente apresentada, o dolo trata-se de uma manifestação da vontade humana voltada à prática de uma conduta típica ilícita e culpável. O Código Penal, em seu art. 18, inciso I, considera como sendo crime doloso, aquele em que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
Nos dizeres de Capez (2022, p. 112):
É a vontade e a consciência de realizar os elementos constantes do tipo legal. Mais amplamente, é a vontade manifestada pela pessoa humana de realizar a conduta. Dolo é o elemento psicológico da conduta. Conduta é um dos elementos do fato típico. Logo, dolo é um dos elementos do fato típico.
Como elemento subjetivo essencial nos crimes dolosos, o dolo, pode ser classificado em diversas espécies conforme a intensidade da vontade e o grau de consciência do agente em relação ao resultado. Destacam-se como mais relevantes o dolo direto e o dolo eventual.
O dolo direto, é a mais pura definição de dolo, sua vertente mais clássica. Nessa modalidade o agente deseja evidentemente o resultado, ou assume o risco de produzi-lo. Destarte o agente busca, com vontade firme e dirigida, alcançar intencionalmente o resultado ilícito pretendido. Para Nucci (2024, p. 168), o dolo direto:
É a vontade do agente dirigida especificamente à produção do resultado típico, abrangendo os meios utilizados para tanto. Exemplo: o agente quer subtrair bens da vítima, valendo-se de grave ameaça. Dirigindo-se ao ofendido, aponta-lhe um revólver, anuncia o assalto e carrega consigo os bens encontrados em seu poder. A vontade se encaixa com perfeição ao resultado. É, também, denominado dolo de primeiro grau.
Na categoria do dolo direto, este se subdivide em duas espécies: dolo direto de primeiro grau e dolo direto de segundo grau.
De acordo com Nucci (2024, p. 168) “O dolo direto de primeiro grau é a intenção do agente, voltada a determinado resultado, efetivamente perseguido, abrangendo os meios empregados para tanto”. Noutras palavras o dolo direto de primeiro grau, ocorre quando o agente tem como objetivo primordial a produção de um resultado específico, direcionando sua vontade de forma consciente para alcançá-lo, e ainda utilizando os meios necessários para tanto. Ao passo que o dolo direto de segundo grau, ocorre quando o agente possui a plena intenção de produzir um resultado específico – assim como no dolo direto de primeiro grau – mas, ao empregar os meios necessários à concretização do resultado, acaba ocasionando outros efeitos, que apesar de não desejados diretamente, são previstos como consequências inevitáveis da conduta praticada pelo agente. Nos ensinamentos de Estefam (2022, p. 290), o dolo direto de segundo grau caracteriza-se da seguinte forma:
O dolo, ademais, abrange não só o objetivo perseguido pelo sujeito (dolo de primeiro grau), mas também os meios escolhidos para a consecução desse fim e as consequências secundárias inerentemente ligadas aos meios escolhidos (dolo de segundo grau ou dolo de consequências secundárias).
Assim, é possível concluir que o dolo direto de segundo grau se configura quando o agente, ao perseguir um resultado intencionalmente desejado, assume efeitos colaterais inevitáveis decorrentes de sua conduta. Esses efeitos não constituem sua meta principal, mas são previsíveis como consequências certas ou altamente prováveis.
No que diz respeito ao dolo eventual, este, está previsto na parte final do inciso I, do artigo 18, do Código Penal, que diz: “...assumiu o risco de produzi-lo”, retratando a Teoria do Assentimento. Neste cenário, diferentemente do dolo direto, o agente não deseja diretamente alcançar o resultado ilícito, mas assume o risco, isto é, assume a possibilidade de sua ocorrência, aceitando as possíveis consequências de sua conduta. Na visão de Greco (2025, p. 236) “Fala-se em dolo eventual quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito.”
Partindo desta premissa, subtende-se que o dolo eventual se trata de uma vontade indireta, onde o agente atua com consciência do possível resultado ilícito que sua conduta pode ocasionar e, ainda assim, decide prosseguir com sua ação. O agente não quer causar o resultado ilícito, mas não se importa caso este venha a acontecer.
3 WILLFUL BLINDNESS DOCTRINE
A Teoria da Cegueira Deliberada, conhecida como Conscious Avoidance Doctrine (Doutrina da Evitação da Consciência), Willful Blindness Doctrine (Teoria da Cegueira Deliberada), ou ainda Teoria do Avestruz, surgiu com o intuito de responsabilizar criminalmente indivíduos que deliberadamente evitam obter conhecimento e consciência da ilicitude de uma situação fática, fingindo não enxergar o potencial ilícito da conduta criminosa, com o objetivo de beneficiar-se de sua própria torpeza.
Acerca desta teoria, preleciona Lima (2016, p. 326):
Por força dessa teoria, aquele que renuncia a adquirir um conhecimento hábil a subsidiar a imputação dolosa de um crime responde por ele como se tivesse tal conhecimento. Basta pensar no exemplo de comerciante de joias que suspeita que alguns clientes possam estar lhe entregando dinheiro sujo para a compra de pedras preciosas com o objetivo de ocultar a origem espúria do numerário, optando, mesmo assim, por criar barreiras para não tomar ciência de informações mais precisas acerca dos usuários de seus serviços.
A Teoria da Cegueira Deliberada, sustenta-se no pressuposto de que o desconhecimento proposital de um fato criminoso deve ser tratado, para fins penais, como se houvesse o conhecimento real do referido fato criminoso. Esse desconhecimento proposital surge no momento em que o agente, diante de robustos indícios de ilicitude, opta por não investigar a realidade dos fatos, justamente para manter uma aparência de ignorância, a fim de eximir-se da responsabilidade penal.
Dito isso, o que se extrai notadamente é que o agente delibera conscientemente por não obter conhecimento da ilicitude de fato criminoso que por vezes, encontra-se escancarado diante de seus olhos. Isso significa dizer que, o agente possui plena ciência de que algo pode ser ilícito, mas escolhe criar obstáculo voluntário ao conhecimento, objetivando evitar o enquadramento penal e consequente punição.
Os adeptos desta teoria a denominam como a “Teoria do Avestruz”, justamente porque o agente que, propositalmente, evita o conhecimento da ilicitude de um fato criminoso, ainda que este esteja bem diante de seus olhos, comporta-se como um avestruz que, diante de um perigo eminente ao seu redor, esconde sua cabeça na terra, visando precipuamente, camuflar-se em relação à situação de risco.
A metáfora do avestruz, para referir-se à agentes que buscam eximir-se da responsabilidade penal através da ignorância intencional, traduz a ideia de que o desconhecimento voluntário e proposital não pode servir como um escudo à responsabilização penal, haja vista que representa evidente tentativa de não enxergar uma realidade criminosa escancarada.
3.1 Raízes históricas e primeiras aplicações da Teoria da Cegueira Deliberada:
Os primeiros resquícios do que viria a se tornar a Teoria da Cegueira Deliberada, surgiram no Direito Anglo-Saxão, sistema jurídico que se baseia precipuamente em precedentes, decisões judiciais e costumes.
Precisamente, o primeiro caso concreto que foi possível vislumbrar a incidência de um entendimento que corroborava para a compreensão do que hoje se entende pela Willful Blindness Doctrine, foi o ocorrido na Inglaterra, no ano de 1861, caso Regina vs Sleep.
Este caso, possuía a finalidade de revisar a condenação de Sleep, um ferrageiro, que embarcou em um navio parafusos de cobre, dentre os quais havia alguns marcados com uma simbologia de flecha, indicativo de que eram de propriedade estatal. Sleep foi condenado em primeiro grau e recorreu sob os fundamentos de que não possuía o conhecimento de se tratava de parafusos de propriedade estatal. Assim, diante das alegações de desconhecimento da procedência ilícita, o Tribunal acatou sua tese defensiva, sobretudo porque não havia quaisquer informações de que o Júri tivesse levado em consideração o elemento subjetivo do tipo, no que dizia respeito ao conhecimento de que os bens possuíam os símbolos de flecha, ou ainda que Sleep tivesse se abstido de maneira intencional de auferir conhecimento.
Consoante ao entendimento adotado pelo Tribunal no julgamento deste caso, ao revogar a condenação de Sleep, ficou subtendido que caso houvesse maiores informações quanto a potencial consciência da procedência ilícita dos bens embarcados, ou que ainda este, tivesse de maneira deliberada e intencional buscado criar obstáculos ao conhecimento do ilícito praticado, a decisão de condenação, poderia ter sido mantida.
As próximas sentenças que se seguiram ao caso supramencionado, partiram pela mesma linha de raciocínio, fornecendo cada vez mais força e embasamento para a equiparação da cegueira intencional ao conhecimento, e no final do século XIX, houve pacificação na doutrina inglesa acerca da mencionada equiparação.
A teoria ganhou tamanha força que passou a ser reconhecida e adotada nas decisões das Cortes americanas, sendo, portanto, incorporada no âmbito jurídico Norte-Americano. Apareceu pela primeira vez no direito Estadunidense, no ano de 1899, no caso Spurr v. United States, onde a condenação do sr. Spurr – condenado por ter certificado cheques emitidos por cliente, que não possuía saldo suficiente em sua conta bancária – estava sendo revisada.
Neste caso em específico, os jurados foram instruídos a absolver o réu se as provas não fossem suficientes para os convencê-los de que o réu sabia que os cheques não possuíam fundos no banco quando ele os certificou, e em caso contrário, foram instruídos a condena-lo, se as provas se mostrassem claras à compreensão de que o réu deliberadamente ignorou os fatos.
Se as provas falharem em satisfazer suas mentes claramente e para além de uma dúvida razoável, que o réu de fato sabia, ao tempo em que certificou os cheques mencionados na inicial acusatória, que Dobbins e Dazey não tinham em depósito junto ao banco recursos suficientes para cobrir os cheques certificados, então vocês devem absolvê-lo, exceto se vocês estiverem convencidos pelas provas para além de uma dúvida razoável que ele deliberadamente, planejadamente e agindo de má fé – estas palavras querem dizer substancialmente a mesma coisa – fechou seus olhos ao fato e propositadamente absteve-se de questionar ou investigar com o propósito de evitar conhecer. (tradução livre). (Spurr v. United States, 174 U.S. 728, 1899).
Apesar de a Teoria da Cegueira Deliberada possuir mais afinidade com o sistema Common Law, haja vista este sistema pautar-se exclusivamente em costumes e jurisprudências e não em normas e regras escritas, a Teoria também foi aplicada em países cujo sistema dominante é o Civil Law, que se baseia em doutrinas, leis e textos, como é o caso do Brasil.
3.2 Aplicação da Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro
A aplicação inaugural da teoria da cegueira deliberada no âmbito do direito penal brasileiro, ocorreu na empreitada criminosa que envolveu furto no Banco Central em Fortaleza, no mês de agosto do ano de 2005. Na ocasião, uma organização criminosa escavou um túnel de aproximadamente 75 metros de extensão, até o cofre da Instituição Financeira, logrando êxito na subtração de mais de R$ 164 milhões.
Entre os desdobramentos investigativos, foi verificado que, no dia subsequente ao crime de furto no Banco Central, indivíduos que participaram da infração penal foram à uma concessionária revendedora de automóveis e adquiriram onze veículos, efetuando o pagamento com dinheiro em espécie.
Ao não indagarem sobre a proveniência dos recursos utilizados para a aquisição dos automóveis, tampouco não reportarem a conduta suspeita às autoridades, os proprietários da concessionária adotaram postura conscientemente omissiva, com a finalidade aparente de evitar deliberadamente o conhecimento sobre a prática criminosa. Assim, foram denunciados e condenados em primeira instância pela prática do crime de lavagem de dinheiro.
Contudo, em que pese o entendimento do Magistrado de primeiro grau, de que os proprietários da concessionária possuíam elementos suficientes para identificar a origem ilícita do dinheiro utilizado para a aquisição dos onze veículos, o que permitia, portanto, a condenação destes, o Tribunal Regional Federal entendeu de modo contrário, e os absolveu, afastando a possibilidade de aplicação da Teoria da Cegueira Intencional, conforme trecho do acórdão:
Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, à responsabilidade penal objetiva; não há elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL (5ª Região). Apelação Criminal 5520 CE 2005.81.00.014586-0. Relator Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira. (BRASIL, 2008).
Este caso, ganhou relevância doutrinária ao ensejar a condenação em primeiro grau, de agentes secundários com base em uma construção teórica (Teoria da Cegueira Deliberada) até então inédita no país.
Sabe-se que o ordenamento penal brasileiro é estruturado na responsabilidade penal subjetiva, que possui como parâmetro a imprescindibilidade de comprovação de dolo em quaisquer de suas modalidades, ou ainda a comprovação de culpa.
Em que pese a Teoria da Cegueira Deliberada levar por si só, a um caminho do que se compreende por responsabilidade penal objetiva – a qual prescinde de comprovação de dolo e culpa – e considerando ainda que o ordenamento jurídico pátrio adota expressamente a subjetividade para a responsabilização penal, a Conscious Avoidance Doctrine, tem sido, no Brasil, adotada em julgamentos das mais diversas infrações penais, sendo classificada como um desdobramento do instituto do dolo eventual.
4 A TEORIA COMO DESDOBRAMENTO DO DOLO EVENTUAL
A Willful Blindness Doctrine foi incorporada no ordenamento jurídico pátrio como um desdobramento do instituto do dolo eventual, com a finalidade exclusiva em suprir lacunas existentes no que diz respeito ao dolo e a culpa, visando responsabilizar indivíduos que não possuem consciência explicita do fato criminoso, mas que podendo atingir a consciência da ilicitude da infração, deliberadamente optam por não a obter.
Neste sentido, ao correlacionar a figura da cegueira deliberada ao instituto de dolo eventual, surgiu-se uma possibilidade em responsabilizar agentes que constroem sua ignorância de maneira proposital.
Acerca da equiparação desta teoria ao instituto do dolo eventual, leciona André Luis Callegari (2020):
Ao contrário do entendimento aplicado pelos tribunais pátrios, a cegueira deliberada não se presta à equiparação de uma conduta ao dolo eventual, eis que esse último tem requisitos próprios que não se confundem com a teoria da cegueira deliberada, como, por exemplo, a postura indiferente ao resultado projetado.
Dito de outro modo, a cegueira deliberada não trabalha com assunção ou aceitação de um altamente provável resultado. A teoria apenas atua como suporte legal para o alargamento do conceito de conhecimento, permitindo a sua satisfação pela representação subjetiva de uma alta probabilidade, ou, em nossa pátria, a suspeita da efetiva representação. E, para isso, a teoria terá pressupostos próprios.
Observa-se, portanto, que a classificação da Teoria da Cegueira Deliberada como um desdobramento do dolo eventual, embora tenha ganhado destaque em sua aplicação prática, não pode ser considerada de forma absoluta e incontroversa. Isso porque, a partir de uma análise criteriosa, é possível identificar elementos característicos e autônomos próprios inerentes a teoria em si, os quais não se confundem com os pressupostos exigidos para a classificação do dolo eventual.
Enquanto no instituto do dolo eventual o agente prevê o possível resultado e consente com a sua ocorrência, ainda que não vise exclusivamente a consumação do ato delituoso, isto é, nos dizeres de Jescheck (apud GRECO, 2025, p. 236) “o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e se conforma com ela”, na Teoria da Cegueira Deliberada o réu suspeita fortemente de que algo ilícito está acontecendo, não possui consciência explicita ou direta da infração penal, mas as circunstâncias ao seu redor apontam para ilicitude, e mesmo com essa possível situação ilícita estampada, este, opta deliberadamente por não obter a consciência direta e explicita do fato criminoso para não ser responsabilizado penalmente.
Por outro lado, há entendimentos bem consolidados no sentido de que a Teoria tem se equiparado, ao dolo em sua modalidade indireta ou eventual. Entende Greco (2022, p. 586) que:
Ultimamente, tem-se concluído pelo dolo eventual nos casos da chamada cegueira deliberada, que ocorre nas hipóteses em que o agente, mesmo diante de situações gritantes, onde a probabilidade de ter ocorrido uma infração penal é enorme, insiste em levar a efeito o seu comportamento, desconsiderando esse fato.
Imprescindível destacar que a inclusão desta Teoria no ordenamento jurídico pátrio apresenta controvérsias, não havendo uma verdade absoluta que a ampare em todos os seus desdobramentos. Essa teoria pode implicar uma flexibilização dos critérios tradicionais da responsabilidade subjetiva, ampliando o risco de imputação penal inclusive àqueles que, em determinadas circunstâncias, não detinham efetiva consciência ou intenção delitiva, conforme esclarece Vallés (2013).
Neste sentido, nota-se que a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no ordenamento jurídico pátrio, como fundamento para condenações penais, exige demasiada cautela. A equiparação dessa teoria ao dolo eventual, permitindo sua aplicabilidade em determinadas infrações penais, evidencia aspectos relevantes, especialmente no que se refere à necessidade de se assegurar a justiça, não permitindo com que o agente que age deliberadamente para evitar o conhecimento de fato criminoso, permaneça impune. Ao passo que, a utilização dessa teoria sem a cautela necessária e de forma indiscriminada pode resultar na indevida flexibilização dos requisitos da responsabilidade subjetiva, e consequentemente ampliar a imputação penal de indivíduos que, na realidade, não detinham intenção delitiva.
4.1 Críticas doutrinárias à equiparação da Teoria da Cegueira Deliberada com o dolo eventual
Em que pese a Willful Blindness Doctrine ter sido incorporada no ordenamento jurídico brasileiro como desdobramento do instituto do dolo eventual – equiparação predominante na jurisprudência brasileira – há doutrinadores que entendem não haver compatibilidade entre o instituto do dolo eventual e a teoria da cegueira deliberada em si. Para alguns essa equiparação significa a possibilidade de alargamento no conceito de dolo, violação ao princípio da legalidade ou ainda desproporcionalidade, haja vista se tratarem de institutos distintos.
A doutrina entende que esta teoria admite a possibilidade de condenação criminal quando houver dúvidas quanto ao efetivo desconhecimento por parte do acusado, da realidade fática de sua conduta, especialmente nos casos em que este, alega ignorar a ilicitude do ato praticado, mas fica demonstrado que essa ignorância fora intencionalmente provocada pelo próprio agente com o propósito de se esquivar da responsabilidade penal.
O posicionamento para a aderência a esta teoria gerou polêmicas doutrinárias, no sentido de que o uso indiscriminado da teoria, pode ampliar os riscos da imputação penal à indivíduos que diante de um cenário fático delituoso, de fato, não detinha intenção delitiva.
Para o advogado Spencer Toth Sydow (2017) a teoria da cegueira deliberada tende a favorecer a acusação em detrimento da defesa, pois, em sua avaliação, ela reduz as possibilidades de argumentação defensiva, comprometendo o equilíbrio entre as partes no processo penal. Em sua obra doutrinária, Sydow ainda sustenta que, com a aplicação da teoria da cegueira deliberada, o acusado perde a possibilidade de alegar desconhecimento, enquanto o Estado se vê dispensado do dever de produzir provas mais contundentes acerca do dolo.
Importa ressaltar que uma das principais objeções à adoção da teoria reside na preocupação de que esta possa enfraquecer a exigência probatória quanto ao dolo, especialmente no que se refere ao seu aspecto cognitivo.
Ao admitir a teoria, o sistema jurídico pode, por vezes, deixar de exigir provas concretas do dolo ou do conhecimento prévio da ilicitude por parte do acusado. Noutras palavras, bastaria demonstrar que o agente intencionalmente se colocou em uma situação de ignorância, o que para alguns doutrinadores é insuficiente para fundamentar uma condenação penal, precipuamente considerando que o dolo exige um elemento volitivo (querer) e um cognitivo (saber).
É justamente neste sentido que Renato de Mello Jorge Silveira (2016, p. 255-280), preconiza que através da ignorância intencional “não se faz, por assim dizer, necessária prova do dolo, ou do conhecimento prévio, como alude à literatura estrangeira, e dá-se um aparente contentamento com a percepção da autocolocação em estado de ignorância.”.
Conforme apontam Torres e Arruda (2017), há uma fragilidade na teoria e nas discussões que a vinculam ao aspecto volitivo do dolo eventual – isto é, à assunção do risco de gerar um resultado a partir de determinada conduta. Isso porque o dolo exige não apenas o querer, mas também um mínimo de conhecimento sobre o possível resultado. Não se pode assumir o risco de algo totalmente desconhecido. Assim, haverá sempre alguma percepção, ainda que mínima, sobre as consequências negativas da ação.
O jurista Pierpaolo Bottini (2013), professor e advogado criminalista, manifesta igualmente preocupação quanto à acrítica incorporação da teoria estrangeira ao ordenamento jurídico pátrio. Sobre o tema, leciona:
Tal incorporação — como dito — parece preocupante, uma vez que caracterizará como dolosos comportamentos ontológica e normativamente diferentes. Será dolosa a ação típica na qual o agente conheça o contexto no qual atua e queira o resultado, bem como aquela na qual o sujeito não queira o resultado e nem mesmo conheça a criação do risco porque criou mecanismos que lhe impediram a ciência deste. Ainda que ambos sejam reprováveis, caracterizar os dois da mesma forma sobrecarrega o instituto do dolo e afeta a proporcionalidade na aplicação da norma penal.
Entende Bottini (2013) ainda, que “talvez melhor que equiparar o dolo eventual à cegueira deliberada, seja a criação legislativa de novas modalidades de imputação subjetiva, para além do dolo e da culpa, com patamares distintos de punição para cada categoria”.
Vários estudiosos compartilham do entendimento de que não se deve tratar a ignorância deliberada como hipótese de dolo. Argumenta-se, nesse sentido, que a teoria foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro de maneira acrítica, sem a devida consideração às notórias diferenças existentes entre o nosso sistema e aqueles adotados por países que aplicam tal concepção, especialmente considerando que sua origem está vinculada ao modelo jurídico da common law.
Equiparar a teoria da cegueira deliberada ao dolo eventual, nos termos do artigo 18, inciso I, do Código Penal, implica admitir que situações em que o agente não possui representação concreta sobre a ocorrência do fato criminoso sejam tratadas da mesma forma que aquelas em que há efetiva ciência do ilícito e, consequentemente, controle sobre a realização da conduta típica. Contudo, conforme preconiza Robson A. Galvão da Silva e Christian Laufer (2015):
“Conhecimento potencial dos elementos do tipo objetivo” não configura o dolo eventual, diferentemente do que ocorre com o “conhecimento potencial da antijuridicidade” do fato, que enseja a culpabilidade. O mínimo de representação das circunstâncias do tipo objetivo deverá estar efetivamente presente no momento da conduta, não se aceitando que o agente pudesse “vir a ter esse conhecimento mínimo” exigido caso se esforçasse para tanto.
Diante do exposto, verifica-se que a aplicação da teoria da cegueira deliberada no Direito Penal brasileiro, especialmente quando equiparada ao dolo eventual, suscita relevantes críticas de ordem dogmática e principiológica. A principal preocupação reside na possibilidade de fragilização das garantias penais fundamentais, notadamente o princípio da legalidade e a exigência de demonstração clara do elemento subjetivo da conduta delituosa. A aceitação acrítica de um instituto oriundo da common law, sem a devida adaptação às premissas do sistema jurídico de civil law, pode conduzir a uma expansão indevida da responsabilidade penal subjetiva, comprometendo o rigor necessário à imputação do dolo.
5 CRITÉRIOS A SEREM OBSERVADOS PARA A APLICAÇÃO DA TEORIA
Em que pese a teoria da cegueira deliberada possuir relevância no ordenamento jurídico penal brasileiro, sua aplicação exige cautela e deve observar requisitos mínimos que garantam segurança jurídica e compatibilidade com os princípios constitucionais, especialmente o da culpabilidade.
Assim, torna-se essencial delimitar com precisão os pressupostos necessários para a utilização dessa teoria no contexto jurídico nacional, evitando abusos interpretativos e assegurando sua aplicação apenas em situações nas quais o agente, de forma consciente, se esquiva de confirmar a ilicitude evidente.
Neisser e Sydow (2017), entendem que para que seja possível a aplicação da teoria em território nacional, devem ser atendidos oito requisitos, a saber:
(1) O agente deve estar numa situação em que não tem conhecimento suficiente da informação que compõe o delito; (2) tal informação, apesar de insuficiente, deve estar disponível ao agente para acessar imediatamente e com facilidade; (3) o agente deve se comportar com indiferença por não buscar conhecer a informação suspeita relacionada à situação em que está inserido;(4) é preciso haver um dever de cuidado legal ou contratual do agente acerca de tais informações;(5) é necessário se identificar uma motivação egoística e ilícita que manteve o sujeito em situação de desconhecimento, por exemplo, o intuito de obter lucro;
(6) deve haver ausência de garantia constitucional afastadora de deveres de cuidado, por exemplo, sigilo de correspondência;(7) deve haver ausência de circunstância de isenção de responsabilidade advinda da natureza da relação instalada, por exemplo, o chefe determina que subordinado entregue um pacote em um local, sem abri-lo;(8) deve haver ausência de circunstância de ação neutra, ou seja, a parte agindo dentro das expectativas sociais, não se pode atribuir peso criminal a condutas normais.
Os oito pressupostos supracitados elencados pelos autores, funcionam como salvaguardas contra abusos interpretativos. Ao exigir determinados elementos, a aplicação da teoria passa a se dar de maneira restrita e criteriosa, preservando a segurança jurídica e evitando sua banalização no contexto penal brasileiro.
No cenário prático, nos crimes de lavagem de dinheiro, a jurisprudência brasileira tem reconhecido a possibilidade de aplicação da teoria em determinadas circunstâncias. No julgamento do AgRg no Recurso Especial n. 1.565.832/RJ, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou que:
Para que ocorra a aplicação da teoria da cegueira deliberada, deve restar demonstrado no quadro fático apresentado na lide que o agente finge não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida.
Ademais, em diversos outros julgamentos, tais como o do AREsp 2.157.427, também houve a aplicação da teoria, utilizando requisitos bem delimitados, a saber: 1) suspeita fundada de ilicitude; 2) deliberação para ignorar; 3) finalidade de manter-se na ignorância; 4) conduta equiparável ao dolo eventual.
In casu, aplicável ao caso a teoria da cegueira deliberada, segundo a qual pune-se o agente quando restar demonstrado que este, ciente ou suspeitando seguramente que esteja envolvido em negócios escusos ou ilícitos, deliberadamente toma medidas para se certificar de que não irá adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso, assemelhando-se ao dolo eventual.(AREsp 2.157.427, Ministro Joel Ilan Paciornik, DJe de 10/2/23.)
Em análise minuciosa de diversos casos em que fora aplicada a Teoria da Cegueira Deliberada, pode-se afirmar, que a sua aplicação exige a observância de ao menos três requisitos considerados essenciais: (i) a recusa deliberada em acessar informações relevantes, configurando verdadeira barreira ao conhecimento; (ii) a consciência de que tal omissão não é neutra, mas sim favorece a prática criminosa ao criar uma blindagem subjetiva; e (iii) a presença de indícios concretos que tornariam razoável suspeitar da ilicitude, exigindo do agente uma postura diligente para esclarecer os fatos.
O primeiro requisito corresponde é a criação consciente de barreiras ao conhecimento, que ocorre quando o agente recusa deliberadamente acessar dados e indícios que deveriam despertar suspeitas. Essa omissão revela uma atitude proposital de ignorar a realidade, sendo essencial para configurar a cegueira deliberada.
O segundo requisito diz respeito à percepção de que essa postura não é inofensiva, mas ao contrário, contribui diretamente para a prática criminosa. Trata-se da consciência de que evitar o conhecimento funciona como um mecanismo de blindagem subjetiva, como ocorre ao aceitar recursos sem apurar sua origem, facilitando, por vezes, a ocultação de valores e caracterizando lavagem de dinheiro.
O terceiro requisito, por sua vez, exige a presença de indícios objetivos que tornem plausível a suspeita de ilicitude. Não basta uma dúvida abstrata, é necessário que existam indícios concretos de irregularidade, como o envolvimento de empresa patrocinadora em movimentações suspeitas ou investigações públicas. Isso impõe ao agente diligente, a obrigação de adotar medidas para buscar esclarecimentos dos fatos.
Assim, embora legítima no ordenamento jurídico penal brasileiro, a teoria deve ser aplicada com extrema cautela e apenas quando devidamente demonstrados seus pressupostos essenciais, de modo a evitar sua banalização e assegurar a conformidade com os princípios constitucionais. A adoção de critérios objetivos e rigorosos, como os apresentados pela doutrina e pela jurisprudência, é fundamental para garantir que apenas agentes que, de forma consciente e deliberada, optam por permanecer na ignorância diante de indícios evidentes de ilicitude, sejam responsabilizados penalmente.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho iniciou-se abordando os fundamentos do dolo no Direito Penal brasileiro, distinguindo suas espécies – dolo direto e dolo eventual – e ressaltando a importância de sua comprovação como requisito essencial para a responsabilização penal, em consonância com o princípio da culpabilidade. Em seguida, examinou-se a origem e evolução histórica da Teoria da Cegueira Deliberada, desde seus primeiros registros no sistema da common law até sua incorporação na jurisprudência nacional, destacando o marco do caso do furto ao Banco Central de Fortaleza, que evidenciou seus primeiros usos no Brasil.
No terceiro momento, discutiu-se a equiparação da teoria ao dolo eventual, apontando convergências e divergências doutrinárias. Verificou-se que, embora a jurisprudência brasileira frequentemente associe a cegueira deliberada ao dolo eventual, diversos autores alertam para as diferenças conceituais e os riscos de flexibilização indevida da responsabilidade subjetiva.
Posteriormente, foram expostas as principais críticas doutrinárias, que vão desde a potencial violação ao princípio da legalidade até o perigo de ampliação desproporcional do conceito de dolo, comprometendo garantias fundamentais do acusado. Por fim, foram apresentados critérios objetivos para a aplicação da teoria, com base na doutrina e jurisprudência, de modo a prevenir interpretações abusivas e assegurar a compatibilidade com o sistema penal brasileiro.
Diante da análise empreendida, constata-se que a Teoria da Cegueira Deliberada pode desempenhar um papel relevante no combate a condutas ilícitas mascaradas pela ignorância intencional, desde que sua aplicação seja restrita, fundamentada e acompanhada de rigor probatório. É imprescindível que a jurisprudência brasileira adote critérios claros e uniformes, como os apontados por Neisser e Sydow (2017), a fim de evitar que a teoria seja banalizada e utilizada como atalho para condenações sem a devida comprovação do dolo.
Como solução, propõe-se a positivação legislativa de parâmetros específicos para a aplicação da teoria no Direito Penal brasileiro, definindo seus elementos constitutivos e limites de incidência, de forma a preservar o equilíbrio entre a efetividade da persecução penal e a proteção das garantias individuais. Ademais, recomenda-se o aperfeiçoamento da formação técnica de magistrados e membros do Ministério Público sobre o tema, para que a aplicação da teoria seja pautada por critérios técnicos e pela observância estrita ao princípio da responsabilidade penal subjetiva, evitando-se interpretações ampliativas que comprometam a segurança jurídica.
REFERÊNCIAS
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[1] Mestre, orientador e professor do Curso de Direito do Centro Universitário de Jales (UNIJALES), Jales - SP.
Recebido: 16 de set. de 2025; Aceito: 24 de set. de 2025.
Acadêmica do Curso de Direito, do Centro Universitário de Jales (UNIJALES), Jales – SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, MILENA MIKAELY. A teoria da cegueira deliberada: entre o dolo eventual e a banalização da responsabilidade penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 out 2025, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69852/a-teoria-da-cegueira-deliberada-entre-o-dolo-eventual-e-a-banalizao-da-responsabilidade-penal. Acesso em: 27 out 2025.
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