RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a teoria da coculpabilidade do Estado e defender sua aplicação como circunstância atenuante na dosimetria da pena no Direito Penal brasileiro. A pesquisa parte do problema da seletividade penal e da marginalização de uma parcela da população, que tem sua capacidade de autodeterminação faticamente limitada pela omissão estatal em garantir direitos fundamentais. A metodologia utilizada foi a de revisão bibliográfica e análise crítica da doutrina e da jurisprudência. A hipótese defendida é que, ao ignorar o contexto de vulnerabilidade social do agente, o Estado aplica uma sanção desproporcional, violando a isonomia material e a individualização da pena. Conclui-se que o reconhecimento da coculpabilidade, com base no art. 66 do Código Penal, é um instrumento essencial para a promoção de uma justiça penal mais equânime e alinhada aos preceitos constitucionais.
Palavras-chave: Teoria da coculpabilidade. Marginalização. Seletividade Penal. Individualização da Pena. Princípio da Isonomia. Atenuante Genérica.
1. INTRODUÇÃO
O postulado constitucional da individualização da pena impõe que a sanção penal seja calibrada de acordo com o grau de culpabilidade do agente, entendido como o juízo de reprovação social que recai sobre sua conduta. A teoria da coculpabilidade sustenta que este juízo não pode desconsiderar a influência de fatores exógenos, especialmente as omissões do Estado, na formação da vontade do indivíduo. Sujeitos expostos a um histórico de vulnerabilidade social, caracterizado pela ausência de oportunidades e pela negação de acesso a direitos básicos, possuem um âmbito de autodeterminação faticamente limitado.
A análise da culpabilidade, nesse contexto, exige a ponderação sobre a exigibilidade de conduta diversa em face das circunstâncias adversas a que o agente foi submetido. Ignorar essa realidade resultaria na aplicação de uma igualdade meramente formal, incompatível com o princípio da isonomia material. Desta forma, a aplicação da coculpabilidade como circunstância atenuante na fixação da pena não busca justificar o delito, mas adequar a resposta estatal à responsabilidade compartilhada na gênese da conduta criminosa.
2. SELETIVIDADE E ESTADO PUNITIVO
Quando um crime violento ocorre, a sociedade se indigna e exige uma resposta imediata do Estado. Essa pressão popular alimenta o fortalecimento do Direito Penal simbólico, que busca transmitir à opinião pública a impressão de que a segurança está sendo restaurada por meio do endurecimento das leis e do aumento das punições.
O Estado, então, cede a essa demanda e adota medidas repressivas no combate à criminalidade violenta, caracterizadas por uma inflação legislativa, penas mais severas e a supressão de garantias fundamentais. Essas ações atingem principalmente as classes sociais mais desfavorecidas, exacerbando a superpopulação carcerária e a desumanidade na execução das penas. Embora o aumento no número de presos acima da capacidade carcerária produza resultados imediatos, como a sensação de justiça sendo feita, não há uma preocupação efetiva por parte do governo em combater as reais causas socioeconômicas que levam os indivíduos a se envolverem com o crime.
Esse ciclo vicioso de punição sem prevenção perpetua a marginalização e a exclusão social, sem oferecer alternativas concretas para a reintegração dos indivíduos à sociedade. É necessário repensar o modelo punitivo vigente, adotando abordagens que priorizem a educação, a inclusão social e a promoção de oportunidades, visando à redução da criminalidade de forma eficaz e humana, mas ainda havendo a devida retribuição.
2.1 Os discursos da mídia e da sociedade
O que se pode observar, diante dessa postura, é que seus discursos retratam apenas a face superficial do crime e deixam oculta a base do problema, contribuindo, assim, para a perpetuação de valores que apenas agravam a situação de desigualdade social e marginalização de parcela da população.
Com efeito, a invisibilidade social de grupos marginalizados é um fenômeno comum. A atenção pública e estatal, entretanto, costuma ser mobilizada apenas quando as consequências da exclusão se manifestam em atos criminosos. O caso de um jovem em situação de rua, por exemplo, ilustra essa dinâmica: sua existência passa despercebida até que o ato de violência o coloca no centro do debate público. Nesse momento, a resposta predominante foca na repressão e no endurecimento das leis penais, em vez de abordar as causas estruturais da marginalização.
Diante desse panorama, o cenário de exclusão social evidencia como a vulnerabilidade ao crime está diretamente ligada às privações sociais. A falta de acesso a oportunidades, educação e direitos básicos, por exemplo, eleva a probabilidade de certos grupos sociais cometerem delitos. Assim, o comportamento criminal pode ser interpretado não como uma escolha isolada, mas como uma consequência de deficiências estruturais que a sociedade não consegue solucionar de forma eficaz.
A sociedade, ao falhar em oferecer oportunidades equitativas, compartilha a responsabilidade pelas consequências da criminalidade. Para entender essa dinâmica, é fundamental considerar a vulnerabilidade de certos indivíduos, cuja autonomia é limitada por condições sociais adversas. Nesse ponto, torna-se válido trazer os ensinamentos de Zaffaroni e Pierangeli:
Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em conseqüência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação da culpabilidade. Costuma-se dizer que há aqui, uma coculpabilidade, com a qual a própria sociedade deve arcar (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 525).
A partir desse conceito de coculpabilidade, torna-se evidente que a análise da criminalidade deve ir além do ato individual. O criminoso que não teve acesso a oportunidades — em oposição àquele que age por escolha — deve ser visto sob uma nova perspectiva. São indivíduos que, ao serem negligenciados pelo Estado e marginalizados pela sociedade, se tornam vítimas da própria estrutura social. Portanto, é inegável que o Estado possui uma parcela de culpa no aumento da violência e na prática de delitos por essa fatia mais vulnerável da população.
Além disso, a seletividade do direito penal é inegável. O sistema penal direciona seus esforços e recursos, principalmente, para o combate à criminalidade violenta. Essa resposta se manifesta por meio de inflação legislativa, penas mais severas e até mesmo a supressão de garantias fundamentais. Enquanto isso, os crimes de colarinho-branco continuam em grande parte impunes, apesar dos recentes avanços.
Essa dinâmica repressiva e seletiva é explicada por Claus Offe (1984, p. 122-123). Em sua obra, o autor afirma que o Estado atua de forma seletiva e oculta por meio da intervenção penal. Isso ocorre porque o crime, ao contrariar os interesses do capitalismo, provoca uma resposta oficial e repressiva do Estado.
3. NEOLIBERALISMO E CRIMINALIDADE
O aparato penal e a política criminal, em vez de se apresentarem como mecanismos neutros de justiça, estão, na verdade, moldados para manter as desigualdades sociais. O sistema penal atua de forma a aplicar sanções de maneira visivelmente diferenciada, de acordo com a posição social do indivíduo. Aqueles que não se adequam aos padrões estabelecidos são submetidos a condições prisionais degradantes, onde têm sua dignidade e seus direitos fundamentais violados. Essa seletividade é, de certa forma, legalmente legitimada, pois opera sob um discurso de prevenção e retribuição. Contudo, sabe-se que o sistema penal brasileiro não atinge esses objetivos, mas sim executa uma política de segregação eficaz.
Essa dinâmica seletiva e a violência do sistema são analisadas por Zaffaroni (1991), que argumenta que o sistema penal é arquitetado para que a legalidade do processo exerça seu poder com um alto grau de arbitrariedade seletiva, sempre direcionada aos setores mais vulneráveis. Essa prática deslegitima o sistema, especialmente quando se observa que sua atuação é violenta e estigmatizante.
Além disso, como observa Nill Christie, a criminalidade gera lucros para uma parcela da população, que ele denomina de “indústria do controle do crime”. Essa indústria não só lucra com a situação, como também atua como um instrumento de controle sobre aqueles que podem desestabilizar o sistema. Essa dinâmica pode ser observada em medidas como a expansão de mercados de segurança privada e os discursos em prol da privatização de prisões. Tais iniciativas são superficiais, pois não tratam as causas profundas do problema, e ainda reforçam a segregação e a estigmatização, perpetuando a desigualdade. Em essência, o Estado, ao negligenciar seu papel de defender os mais vulneráveis e de garantir direitos fundamentais, contribui para que as desigualdades se perpetuem e que a população marginalizada continue sendo penalizada por suas condições de vida.
Diversos estudiosos da economia e da criminologia apontam uma correlação direta entre o crescimento da criminalidade e a ascensão do desemprego, fenômeno amplificado pelas políticas neoliberais. Após a fase de industrialização que consolidou o capitalismo, trazendo progresso em vários setores, surgiram problemas conjunturais e estruturais. A lógica da política neoliberal busca reduzir ao máximo a quantidade de trabalhadores e aumentar a produção e o lucro. Com a revolução tecnológica (e agora com o avança da inteligência artificial), uma grande quantidade de pessoas se encontra desempregada, consideradas de mão de obra inútil na visão capitalista, que valoriza o capital em detrimento do ser humano.
O neoliberalismo, ao priorizar a eficiência econômica e a maximização do lucro, implementa políticas que reduzem a intervenção estatal, promovendo a flexibilização das leis trabalhistas e a precarização das condições de trabalho. Essas medidas resultam em uma massa de trabalhadores vulneráveis, sem acesso a direitos básicos e sem perspectivas de ascensão social. A exclusão social gerada por esse modelo econômico cria um terreno fértil para o crescimento da criminalidade, uma vez que indivíduos marginalizados buscam alternativas para suprir suas necessidades básicas.
Além disso, a revolução tecnológica, ao automatizar processos produtivos, elimina postos de trabalho, deixando uma parcela significativa da população sem ocupação. Essa "mão de obra inútil", na visão capitalista, é descartada, sem considerar as implicações sociais e humanas dessa exclusão. A falta de oportunidades legítimas de trabalho leva muitos a recorrerem à criminalidade como meio de sobrevivência.
Portanto, a relação entre neoliberalismo, desemprego e criminalidade é intrínseca. O modelo neoliberal, ao desconsiderar as necessidades sociais e humanas, contribui para a marginalização de indivíduos, tornando-os suscetíveis à criminalidade. É imperativo repensar esse modelo econômico, buscando alternativas que promovam a inclusão social, o acesso a direitos e a dignidade humana.
3.1 Uma estratégia penal de gestão da miséria
Essa gama de excluídos e sem emprego não tem nenhuma utilidade para a sociedade de consumo. Em face disso, o Estado utiliza uma estratégia penal de gestão da miséria, que se baseia na criminalização da pobreza exteriorizada por uma repressão policial e judicial.
Como se sabe, mesmo após a passagem do Estado liberal para o Estado providência (ou Estado Social), não se verifica uma intervenção e preocupação social por parte do Estado de forma efetiva aqui no Brasil.
Cabe lembrar, que o nosso país nunca passou pela experiência de um Estado do bem-estar social, tendo sido criado um Estado Penal alternativamente (SABADELLI, 2006).
Pode-se dizer, então, que a população brasileira não experimentou concretamente as promessas do Estado social, havendo uma substituição da perspectiva absenteista pela intervencionista, haja vista ter sido o intervencionismo devidamente instaurado no viés penal, como bem observado por Rosa e Silveira filho (2008).
O avanço da política criminal preteriu políticas públicas de fomento da melhoria de vida da população em geral, atuando, sobremaneira, através da maximização do direito penal e pela supressão de garantias processuais, ajustada e fomentada de acordo com a opinião pública. O Estado em conseqüência da própria impotência econômica frente à mão-invisivel do mercado é adaptado a implementação da penalização ainda mais agressiva. É o que explica Rosa e Silveira filho (2008, p.26):
Ademais, é certo que as diretrizes neoliberais, pregando austeridade orçamentária e o fortalecimento dos direitos do capital, acompanhado da contenção dos gastos públicos e redução da cobertura social, necessitam englobar o tratamento punitivo como forma de conter a insegurança e marginalidade: ao lado da mão-invisível do mercado no âmbito econômico, há que se utilizar a mão-de-ferro do Estado no campo penal, para a contenção dos deserdados, excluídos, indesejados, não consumidores.
Para piorar a situação, o Estado se utiliza de outros instrumentos, mais particularmente os meios de comunicação de massa, que atuam formando a opinião pública no sentido do fortalecimento penal, sob a égide que apregoa o endurecimento das leis e o aumento da punição.
O próprio direito em si (com destaque para o direito penal), como já falado, possui intrinsecamente uma ideologia que se exterioriza através dos discursos confeccionados pelas classes dominantes, servindo como um instrumento para legitimar e reproduzir essa desigualdade entre as classes. A igualdade formal da lei em relação aos indivíduos se sobrepõe sobre a igualdade material que deveria existir.
Weber (1944), em sua obra, afirma que “o direito formal racional” é um produto da sociedade capitalista moderna que atua como um agente formador dessa sociedade possibilitando a perpetuação de determinadas crenças e valores. Destaca, ainda, que o direito formal possibilita, mas não garante uma maior parcialidade nas decisões judiciais. Além disso, discorre sobre a possibilidade de imparcialidade e de decisões fundamentadas em fatores éticos, políticos e subjetivos.
Podemos concluir, então, diante dessas considerações, que o direito penal e seus agentes agem de forma repressiva (mesmo que de modo involuntário) movimentados pelos valores e crenças que vigoram na sociedade, a fim de conter o aumento dos delitos com medidas sancionatórias, mas apenas porque falhou anteriormente em inúmeros aspectos.
Dessa forma, com vistas a mascarar os problemas sociais decorrentes da política neoliberal, bem como para controlar a parcela da população que sofre com os resultados negativos dessa política, o modelo neoliberal age suprimindo o Estado econômico, enfraquecendo o Estado social e fortalecendo o Estado penal. Ou seja, minimiza-se o Estado social e maximiza-se o Estado penal a fim de responder as consequências provocadas pela desregulamentação econômica e o desmedido aumento da pobreza.
Diante desse cenário, percebe-se patentemente a culpa do Estado e da sociedade na perpetuação das desigualdades existentes, na marginalização e criminalização da pobreza. SARLET (2010, p. 60) afirma que "o mínimo existencial abrange não apenas a garantia de sobrevivência física com dignidade, mas também as condições materiais essenciais para o exercício da liberdade e da cidadania". Portanto, é razoável entender que o estado de pobreza não se limita apenas a uma privação de bens materiais, mas sim uma abstenção até mesmo do mínimo existencial que lhe deveria ser assegurado para conferir à pessoa humana sua dignidade e verdadeira faculdade de autodeterminação.
3.2 Conexão com o princípio da coculpabilidade
É nesse ponto que se pode observar uma conexão com o princípio Jurídico da Coculpabilidade. O Direito Penal deve reconhecer esse princípio em hipóteses casuístas, tendo em vista a perda de liberdade de autodeterminação imposta a significativo fragmento da população. O reconhecimento dessa liberdade deve ser recebido no mundo jurídico-penal como respeito ao princípio mor da dignidade humana e aos valores da igualdade e justiça, haja vista que na nossa sociedade impera a mera liberdade e igualdade formal.
O agente que comete o delito deve ter seu grau de liberdade avaliado de forma concreta. Deve-se levar em consideração se sua percepção, quanto ao seu espaço de decisão, encontra-se, de certa forma, limitado ou não pelas condições socioeconômicas em que ele se encontra e se encontrou durante a maior parte da vida, para, assim, fazer-se uma análise se o grau de reprovabilidade de sua conduta é proporcional a pena imposta, levando-se em conta tais fatores.
4. A INFLUÊNCIA DO MEIO SOCIAL NA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO
Importante questão de debate é sobre a formação do criminoso na sociedade. O discurso que mais se escuta é de que o comportamento deliquente é resultado meramente de uma opção daquele indivíduo. No entanto, vale trazer à baila algumas considerações para mostrar que muitas vezes esses discursos são preconceituosos e até mesmos dissociados da razão.
Em determinado período histórico, chegou-se a afirmar que pessoas com características específicas seriam deliquentes natos e sobre isso, trago o texto de Lombroso:
Não foi meramente uma ideia, mas um flash de inspiração. Na visão do crâneo, eu comecei a ver tudo de repente iluminado por um vasto plano sob um céu incandescente, o problema da natureza do criminoso - um ser atávico, que reproduz na sua pessoa os instintos ferozes da humanidade primitiva e dos animais inferiores. Assim foram explicados anatomicamente as enormes mandíbulas, altos ossos das bochechas, arcos superciliares proeminentes, linhas solitárias nas mãos, tamanho exagerado das órbitas, orelhas em forma de alça ou sensíveis encontradas em criminosos, selvagens e macacos, insensibilidade a dor, visão extremamente aguda, tatuagem, ociosidade excessiva, amor por orgias, impulso excessivo ao mal pelo próprio prazer, o desejo não só de matar a vítima, mas de mutilar seu corpo, rasgar sua carne e beber seu sangue. (LOMBROSO, 1911).
Como se percebe, havia uma significativa generalização e preconceito nesse sentido. Não obstante, posteriormente a revolução industrial foi que se passou a considerar aspectos mais abstratos sobre a problemática do crime e da delinquência, levando-se em conta aspectos ambientais e circunstanciais relativos aos problemas enfrentados na época.
Apesar de ser um assunto muito debatido em vários campos de estudo, atualmente a genética comportamental mostra-se tendente a inferir que não só o ambiente e nem somente o DNA é que formarão a personalidade de determinada pessoa. Deve-se ter em mente que a personalidade de um indivíduo, na verdade, resulta de uma somatória de fatores. Os fatores biológicos (genéticos) e os agentes ambientais em que se insere a pessoa complementam-se resultando na personalidade individual de cada ser humano, de modo que a genética pode predispor alguém a ser mais vulnerável alguma situação, contudo, o ambiente social terá um papel primordial para que esse individual tenha ou não determinadas condutas.
Sobre isso:
De qualquer forma, já se tem certeza de que os genes são capazes de influenciar o comportamento humano. Já foram encontrados genes que tornam as pessoas mais vulneráveis a comportamentos agressivos ou a sofrer transtornos psíquicos. Também foram detectados genes relacionados à orientação sexual e a vícios como alcoolismo e tabagismo.
A presença desses genes, entretanto, não significa que a pessoa obrigatoriamente desenvolverá o comportamento ligado a ele. O que existe é uma predisposição, geralmente influenciada pelas experiências pessoais, familiares e pelo ambiente em que a pessoa vive. Ter predisposição genética à depressão, por exemplo, não basta para a pessoa ficar deprimida, pois os mesmos genes são encontrados também em pessoas não deprimidas.[1] (BALLONE; MENEGUETTE, 2013)
E continua o texto falando sobre a conjugação entre a genética e o meio ambiente, que é o que chamamos de fenótipo:
De maneira geral, o estado em que se apresenta o indivíduo num dado momento deve ser entendido como uma conjugação entre seu patrimônio genético e a influência ambiental a que se submeteu. Em outras palavras, uma somatória daquilo que ele trouxe para a vida com aquilo que a vida lhe deu. Podemos assim, considerar a personalidade como sendo composta de elementos constitucionais ou genotípicos e de elemento ambientais ou paratípicos. O resultado final do indivíduo, tal como se encontra no momento atual, será o seu fenótipo.
Sendo assim, há de se dizer que os fatores externos influenciadores da formação do indivíduo são determinantes desde o seu nascimento. Sua família, seu ambiente escolar, a religião, o próprio meio social e cultural são os meios mais eficazes de controle social primário[2], qual seja, a formação do indivíduo dentro do contexto social em que se insere. Não obstante, esses meios de controle social, muitas vezes, mostram-se ineficazes, influenciando negativamente na formação da personalidade do indivíduo.
Importante nesse momento trazer os ensinamentos de Ana M. Bahia Bock, sobre o processo de socialização:
A socialização é um processo de internalização (apropriação) do mundo social, com suas normas, valores, modos de representar os objetos e situações que compõem a realidade objetiva; é o processo de constituição de uma realidade subjetiva que se forma a partir das primeiras relações do indivíduo com o meio social (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1995, p. 208)
Diante dessas influências tanto de ordem genética e de ordem externa do ambiente social, o indivíduo fará suas escolhas com base nesses influxos. O “certo” e o “errado” vai variar de pessoa para pessoa.
Sendo assim, A capacidade de autodeterminação, e consequentemente o juízo de reprovação sobre a conduta, deve ser analisada de forma distinta quando se trata de um indivíduo que não teve acesso a uma formação moral sólida e a um ambiente social saudável.
5. A APLICAÇÃO DA COCULPABILIDADE COMO IMPERATIVO DE JUSTIÇA
A Coculpabilidade seria a parcela de culpa que teria o Estado diante do cometimento de algumas infrações pelas pessoas que foram, sobremaneira, deixadas de lado pelo próprio Estado, em relação a educação, saúde e relativamente a outros direitos fundamentais, tendo sido na maior parte da sua vida (ou até mesmo durante toda a vida) marginalizadas.
Diante disso, deve-se ter em conta a capacidade de autodeterminação desses indivíduos no seu julgamento para que este não seja julgado da mesma forma e intensidade que as pessoas que deteve condições privilegiadas em todos os aspectos já mencionados. Essas pessoas ao serem julgadas da mesma forma, estaria-se afrontando diretamente a justiça social e a própria igualdade, princípio expresso na nossa Constituição Federal.
No nosso ordenamento jurídico o que deve vigorar é a igualdade material. Nessa situação podemos perceber que o princípio da igualdade é na verdade tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que de suas desigualdades, havendo, dessa forma uma afronta visível a esse princípio quando se julga uma pessoa marginalizada pelo Estado e outra que teve várias oportunidades do mesmo modo.
Caso na individualização da pena haja um juízo de reprovação na mesma intensidade, apenas estaríamos falando em isonomia formal, afrontando diretamente a nossa Constituição e seu objetivo precípuo.
Sobre essa a teoria, pode-se observar o posicionamento favorável de Juarez Cirino dos Santos:
Hoje, como valorização compensatória da responsabilidade de indivíduos inferiorizados por condições sociais adversas, é admissível a tese da co-culpabilidade da sociedade organizada responsável pela injustiça das condições sociais desfavoráveis da população marginalizada, determinantes de anormal motivação de vontade nas decisões da vida. Em sociedades pluralistas, as alternativas de comportamento individual seriam diretamente dependentes do status social de cada indivíduo, com distribuição desigual das cotas pessoais de liberdade determinação conforme a respectiva posição de classe na escala social: indivíduos de status social superior, maior liberdade; indivíduos de status social inferior, maior determinação. Em conclusão, se a motivação anormal da vontade em condições sociais adversas, insuportáveis e insuperáveis pelos meios convencionais pode configurar situação de conflito de deveres jurídicos, então o conceito de inexigibilidade de comportamento diverso encontra, no flagelo real das condições sociais adversas que caracteriza a vida do povo das favelas e bairros pobres da áreas urbanas, a base de uma nova hipótese de exculpação supralegal, igualmente definível como escolha do mal menor- até porque, em situações sem alternativas, não existe espaço para culpabilidade. (SANTOS, 2012, p. 497)
A concretização de toda essa análise ocorre na fase da dosimetria da pena, momento em que o postulado da individualização exige do julgador uma análise que transcenda a mera formalidade legal. O instrumento jurídico para isso é a circunstância atenuante inominada, prevista no artigo 66 do Código Penal, que permite ao juiz considerar “circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”. A coculpabilidade se encaixa perfeitamente nesse conceito, permitindo que a pena seja calibrada de forma mais justa e igualitária, legitimando materialmente o princípio da isonomia.
Contudo, a aplicação prática da teoria enfrenta significativa resistência na jurisprudência, que frequentemente impõe um elevado ônus probatório à defesa. O argumento central dos tribunais é que a aplicação da atenuante requer a demonstração clara e específica da responsabilidade estatal no caso concreto, não bastando uma alegação genérica de miserabilidade.
Este posicionamento é exemplificado pela decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) no Acórdão 1197738. Nele, a relatora Nilsoni de Freitas Custódio afirmou ser "incabível a aplicação da atenuante genérica descrita no art. 66 do CP, com base na teoria da coculpabilidade, quando a argumentação é genérica, não sendo demonstrada eventual omissão estatal relevante, apta a justificar a prática de ilícitos penais por parte da ré". Tal exigência, embora vise a segurança jurídica, muitas vezes torna a aplicação da teoria inviável, ignorando que a omissão do Estado é, por natureza, difusa e estrutural.
Embora a teoria da coculpabilidade tenha respaldo na doutrina, sua aplicação prática enfrenta resistência na jurisprudência. Essa resistência pode ser atribuída à dificuldade de comprovação da omissão estatal e à necessidade de uma análise detalhada das circunstâncias do caso concreto. Contudo, é imprescindível que o sistema de justiça penal esteja atento às condições sociais e estruturais que influenciam o comportamento delitivo, buscando uma aplicação da pena que seja verdadeiramente justa e eficaz.
Em um Estado Democrático de Direito, é fundamental que a pena não seja apenas uma resposta punitiva, mas também um instrumento de promoção da justiça social e da dignidade humana. A aplicação da teoria da coculpabilidade, quando devidamente comprovada, pode contribuir para uma resposta penal mais equânime e sensível às desigualdades sociais que permeiam a realidade brasileira.
6. CONCLUSÃO
Diante do exposto, o presente estudo demonstrou que a seletividade penal e a ineficácia social do Estado criam uma realidade na qual a criminalidade é, em grande parte, um reflexo de falhas estruturais e sistêmicas. A análise da formação do indivíduo, influenciada por um ambiente social marcado pela desigualdade e pela ausência de direitos básicos, revela que a capacidade de autodeterminação não é um atributo universalmente homogêneo.
Nesse contexto, a teoria da coculpabilidade emerge como um instrumento jurídico e social fundamental. Seu reconhecimento no sistema penal, por meio da aplicação como atenuante genérica prevista no art. 66 do Código Penal, não visa justificar o delito ou eximir o indivíduo de sua responsabilidade, mas sim adequar a resposta estatal à realidade de uma responsabilidade compartilhada. A adoção desse princípio fortalece o princípio da individualização da pena, garantindo que o juízo de reprovação leve em conta as circunstâncias concretas da vida do agente.
Portanto, a implementação da coculpabilidade representa um avanço em direção à isonomia material, tratando de forma desigual aqueles que a sociedade já trata de forma desigual. Ao reconhecer a parcela de culpa do Estado nas omissões que resultam na marginalização e na criminalidade, o sistema de justiça pode alcançar uma aplicação da pena mais justa e humana, reorientando o foco da mera punição para a promoção de uma verdadeira justiça social.
REFERÊNCIAS
BALLONE, G. J.; MENEGUETTE, J. P. Teoria da Personalidade – Geral. PsiqWeb, 2013. Disponível em: [http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=131](http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=131). Acesso em: 10 jun. 2013.
BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 8. ed. Brasília: UNB, 1995.
HACHEM, Daniel Wunder. Mínimo existencial e direitos fundamentais econômicos e sociais: distinções e pontos de contato à luz da doutrina e jurisprudência brasileiras. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coord.). Direito público no Mercosul: intervenção estatal, direitos fundamentais e sustentabilidade. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 205-240.
LOMBROSO, Cesare. Introduction. In: LOMBROSO FERRARA, Gina. Criminal Man According to the Classification of Cesare Lombroso. New York: Putnam, 1911.
MOTA, Maurício. O crime segundo Lombroso. 2007. Disponível em: [http://criminologiafla.wordpress.com/2007/08/20/aula-2-o-crime-segundo-lombroso-texto-complementar](http://criminologiafla.wordpress.com/2007/08/20/aula-2-o-crime-segundo-lombroso-texto-complementar). Acesso em: 5 jun. 2013.
OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984.
ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um processo penal democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
SABADELL, Ana Lúcia. Prefácio. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia: Contribuição para a crítica da economia da punição. 1. ed. Tirant lo Blanch, 2021.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2022.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Carta aos brasileiros. 1977. Disponível em: <www.goffredotellesjr.adv.br>. Acesso em: 2 jan. 2008.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora UnB, 1991.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
[1] Texto extraído do site: <www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=131>. Acesso em: 10 jun. 2013.
[2] Norberto Bobbio, no verbete “controle social” traz sua definição: conjunto de meios e intervenção, quer positivos, quer negativos, acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que a caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos contrários ás mencionadas normas. (BOBBIO, MATTEUCI, PASQUINO, 1995, p.283)
Especialista em Direito Penal, Processual Penal e Processo Civil. Oficiala de Justiça do TJAL .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORREIA, CAROLINE CALDAS. Teoria da coculpabilidade do Estado: defesa de sua aplicação como atenuante no Direito Penal Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2025, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69838/teoria-da-coculpabilidade-do-estado-defesa-de-sua-aplicao-como-atenuante-no-direito-penal-brasileiro. Acesso em: 16 out 2025.
Por: João Paulo Batista de Carvalho
Por: MARCIO FERNANDO MENEZES DE SOUSA
Por: Júlia Nascimento Da Cas
Por: Vítor de Araújo Xavier
Precisa estar logado para fazer comentários.