RESUMO: O presente artigo acadêmico analisa o regime jurídico da posse e porte de armas de fogo no ordenamento brasileiro, examinando criticamente os institutos estabelecidos pela Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) e suas regulamentações. Aborda-se a distinção técnico-jurídica entre posse e porte, os procedimentos de autorização, as consequências penais da inobservância dos requisitos legais, as especificidades da guia de tráfego para transporte de armas e a viabilidade jurídica da posse ou porte compartilhado. A análise contempla aspectos materiais e processuais do direito penal aplicável à matéria, considerando a evolução normativa e os princípios constitucionais incidentes. Conclui-se pela necessidade de aprimoramento da técnica legislativa e de interpretação sistemática das normas, de modo a garantir segurança jurídica aos cidadãos e eficácia ao controle estatal sobre armas de fogo.
INTRODUÇÃO
A regulamentação jurídica das armas de fogo constitui tema de singular relevância no contexto normativo brasileiro, notadamente após a edição da Lei nº 10.826/2003, denominada Estatuto do Desarmamento. Trata-se de matéria que transcende a mera discussão sobre política criminal, alcançando desdobramentos constitucionais relacionados à segurança pública e às liberdades individuais.
O sistema normativo brasileiro estabelece rigoroso controle sobre armas de fogo, instituindo distinções fundamentais entre os institutos da posse e do porte, cada qual com pressupostos e consequências jurídicas próprias. A compreensão técnica destas distinções revela-se essencial para a adequada aplicação do direito penal, tanto em sua dimensão material quanto processual.
O presente estudo propõe-se a examinar os aspectos jurídico-penais atinentes à autorização para posse de arma de fogo, as implicações legais resultantes da conduta de portar arma sem a devida autorização estatal, a necessidade de documentação específica para o transporte de arma de fogo pelo possuidor regularizado, bem como a possibilidade jurídica de compartilhamento da posse ou do porte.
A análise desenvolve-se sob perspectiva dogmática, considerando os pressupostos técnico-jurídicos estabelecidos pela legislação vigente, pela doutrina especializada e pela jurisprudência consolidada. Parte-se da premissa de que o controle sobre armas de fogo constitui exercício legítimo do poder de polícia estatal, voltado à proteção da incolumidade pública, sem descurar, contudo, da necessidade de observância das garantias fundamentais dos cidadãos.
TIPIFICAÇÃO PENAL E ASPECTOS PROCESSUAIS
1. Aspectos Legais da Autorização para Posse de Arma de Fogo
1.1. Normativa da política de armas no Brasil
A regulamentação das armas de fogo no Brasil passou por significativas transformações ao longo das últimas décadas, refletindo diferentes concepções político-criminais sobre o controle de armamentos pela população civil. O marco legislativo contemporâneo do controle de armas no país é a Lei nº 10.826/2003, o Estatuto do Desarmamento, que instituiu um sistema nacional integrado de cadastro e registro de armas de fogo, estabelecendo rigorosos mecanismos de controle sobre a aquisição, posse e porte de armamentos no território nacional.
Essa norma inaugurada em 2003 buscava promover o desarmamento da população civil como estratégia de segurança pública, mediante a criminalização de condutas relacionadas à posse e ao porte irregulares de armas de fogo e o incentivo à entrega voluntária de armamentos. A consecução desse objetivo materializou-se por meio de diversas campanhas de desarmamento e pela previsão de punições mais severas para os crimes relacionados a armas de fogo.
1.2. Dos decretos flexibilizadores ao recrudescimento do controle
A interpretação e a aplicação do Estatuto do Desarmamento sofreram significativas modulações por meio de decretos regulamentadores que, a depender da orientação política dos governos, ora flexibilizaram, ora restringiram o acesso a armas de fogo pela população civil. Essa oscilação normativa reflete a tensão constante entre diferentes concepções de segurança pública e de direitos individuais.
Entre 2019 e 2022, o governo federal editou diversos decretos que ampliaram substantivamente o acesso a armas de fogo no Brasil. O Decreto nº 9.847/2019 inaugurou uma nova política de armamento, flexibilizando diversos requisitos para aquisição, registro e porte de armas de fogo. Dentre as principais alterações promovidas por esse decreto, destacam-se: a ampliação dos limites quantitativos de armas e munições que poderiam ser adquiridas; a facilitação do acesso a armamentos de maior calibre; e a presunção da efetiva necessidade para determinadas categorias profissionais.
Essa política de flexibilização encontrou resistência em setores da sociedade civil e em órgãos de controle, culminando em ações de controle de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. A controvérsia centrava-se, primordialmente, na alegação de que os decretos extrapolavam o poder regulamentar, inovando no ordenamento jurídico e contrariando o espírito restritivo do Estatuto do Desarmamento.
A partir de 2023, com a alternância governamental, o Decreto nº 11.615/2023 promoveu uma significativa reversão da política anterior, estabelecendo parâmetros mais restritivos para o acesso a armas de fogo. Este novo instrumento normativo restabeleceu limitações mais severas quanto à quantidade e aos tipos de armas que podem ser adquiridas por civis, revogou a presunção de veracidade das declarações de efetiva necessidade e reforçou os mecanismos de controle estatal sobre o comércio e a circulação de armamentos.
1.3. Requisitos atuais para autorização de posse de arma de fogo
No ordenamento jurídico brasileiro, a posse de arma de fogo constitui situação jurídica caracterizada pela manutenção da arma em local determinado, geralmente no interior da residência ou estabelecimento comercial do proprietário. Trata-se de instituto juridicamente distinto do porte, este caracterizado pelo transporte ou condução da arma fora dos limites da residência ou local de trabalho.
A Lei nº 10.826/2003 estabelece, em seu art. 4º, os requisitos para a concessão de autorização de posse, entre os quais destacam-se: comprovação de idoneidade, mediante apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais; demonstração de ocupação lícita e residência certa; capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas por profissionais credenciados; e declaração de efetiva necessidade.
Merece particular atenção o requisito da “efetiva necessidade”, que, conforme o § 3º do art. 15 do Decreto nº 11.615/2023, “não é presumida e deverá demonstrar os fatos e as circunstâncias concretas justificadoras do pedido, como as atividades exercidas e os critérios pessoais, especialmente os que demonstrem indícios de riscos potenciais à vida, à incolumidade ou à integridade física, própria ou de terceiros”.
Essa exigência representa uma significativa alteração em relação ao regime anterior, que previa a presunção de veracidade da declaração de efetiva necessidade para determinadas categorias profissionais. A nova regulamentação estabelece que a avaliação desse requisito deve ser fundamentada em elementos objetivos que comprovem a necessidade da arma para fins de defesa pessoal, exigindo-se do requerente a demonstração concreta das circunstâncias de risco que justificariam a autorização.
O § 2º do mesmo artigo limita a aquisição a até duas armas de fogo para defesa pessoal, mediante comprovação da efetiva necessidade para cada aquisição, e até cinquenta munições por arma, por ano. Essa limitação quantitativa busca harmonizar o direito individual à defesa com o interesse público na restrição da circulação de armas de fogo, em consonância com a orientação restritiva do Estatuto do Desarmamento.
1.4. Procedimento administrativo para obtenção do Certificado de Registro de Arma de Fogo
O procedimento para obtenção da autorização de posse segue rito administrativo próprio, regulamentado pelo Decreto nº 11.615/2023 e normas complementares. Inicia-se com requerimento formal à autoridade competente, seguido da apresentação da documentação comprobatória dos requisitos legais, realização de exames técnico e psicológico, e pagamento das taxas correspondentes.
Após a apresentação dos documentos que comprovem o atendimento aos requisitos legais, na hipótese de manifestação favorável, será expedida, pela Polícia Federal, em nome do interessado, a autorização para a aquisição da arma de fogo indicada, conforme previsto no § 6º do art. 15 do Decreto nº 11.615/2023. A autorização, quando concedida, materializa-se no Certificado de Registro de Arma de Fogo (CRAF), documento que legitima a posse.
O CRAF possui prazo de validade determinado, estabelecido no art. 24 do Decreto nº 11.615/2023, com possibilidade de renovação mediante comprovação da persistência dos requisitos legais. A expiração do prazo sem renovação implica a irregularidade da posse, com consequências administrativas e penais[1].
É relevante observar que o CRAF tem validade no território nacional e autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou dependências desta, ou, ainda, de seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou pela empresa, conforme dispõe o art. 23 do Decreto nº 11.615/2023.
2. Implicações Legais da Posse Irregular de Arma de Fogo
A posse de arma de fogo sem autorização configura crime previsto no art. 12 do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), que tipifica a conduta de “possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa”.
Para este crime, o legislador estabeleceu pena de detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, além de multa. Trata-se de um crime de perigo abstrato, ou seja, não se exige a comprovação de risco concreto à sociedade, bastando a mera conduta de possuir irregularmente a arma de fogo para que o crime se configure. O bem jurídico tutelado é a segurança pública e a incolumidade coletiva.
A jurisprudência é pacífica no sentido de que o crime em análise é de perigo abstrato, sendo irrelevante o fato de a arma ser antiga, estar desmuniciada ou parcialmente ineficaz (STJ, HC 595.567) A despeito deste entendimento, o Supremo Tribunal Federal já admitiu a incidência do princípio da insignificância na posse de pequena quantidade de munição desacompanhada de armamento capaz de deflagrá-la (STF, RHC 143.449/MS) e a atipicidade da conduta de posse de arma de fogo e munições ineficazes (STJ, REsp 1.451.397).
É importante distinguir a posse irregular (art. 12) do porte ilegal de arma de fogo (art. 14), sendo este último caracterizado pelo transporte da arma fora dos limites da residência ou local de trabalho, com pena mais severa de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, além de multa. Esta distinção é fundamental no momento da tipificação penal e influencia diretamente nas consequências processuais e penais.
Trata-se de crime de médio potencial ofensivo – submetido ao rito sumário previsto no art. 394, § 1º, II, do Código de Processo Penal –, em que, as depender das circunstâncias do caso concreto, é aplicável o acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal) e a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), não sendo cabível o trâmite no rito sumaríssimo do Juizado Especial Criminal (art. 61 da Lei do Rito Sumaríssimo) nem a benesse da transação penal (art. 76 a citada Lei do Juizado citado).
Ressalta-se que a regularização da arma de fogo junto ao órgão competente é o caminho legal para evitar as graves consequências penais da posse irregular, que vão além da possível condenação criminal, incluindo a perda do objeto e a impossibilidade de obter o certificado de registro de arma de fogo por determinado período.
3. Portar Arma de Fogo sem Autorização
A conduta de portar arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal, como citado acima, configura tipo penal específico, previsto no artigo 14 da Lei nº 10.826/2003, com a seguinte redação: “Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Assim como o delito e posse irregular de arma de fogo, trata-se de crime de perigo abstrato, cuja consumação independe de resultado naturalístico. O legislador presume, de modo absoluto, que a conduta de portar ilegalmente arma de fogo representa perigo à incolumidade pública, bem jurídico tutelado pela norma penal.
Os elementos objetivos do tipo penal caracterizam-se pela pluralidade de núcleos, abrangendo diversas condutas equiparadas. O tipo subjetivo consiste no dolo, compreendido como consciência e vontade de portar a arma sem autorização ou em desacordo com determinação legal. Não se admite a modalidade culposa, por ausência de previsão legal.
A pena cominada para o delito de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido consiste em reclusão de dois a quatro anos, e multa. Trata-se de crime grave, submetido ao rito sumário previsto no art. 394, § 1º, I, do Código de Processo Penal, mas que não é alcançado pela definição legal de crime hediondo, tampouco sujeito aos benefícios da Lei nº 9.099/95, por expressa vedação legal, sendo cabível o acordo de não persecução penal previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, a depender das circunstâncias do caso concreto.
Merece destaque a distinção entre o porte ilegal de arma de uso permitido (art. 14) e o porte ilegal de arma de uso restrito (art. 16). Este último, caracterizado pela especial potencialidade lesiva do instrumento, sujeita-se a regime punitivo mais severo, com pena de reclusão de três a seis anos, e multa.
O transporte irregular de arma regularmente registrada, por possuidor autorizado, mas sem a respectiva guia de tráfego, suscita controvérsia quanto à tipificação. Predomina o entendimento de que tal conduta configura o crime do art. 14, por caracterizar modalidade de porte não autorizado, com amparo no verbo “transportar” estabelecido no tipo penal.
Contudo, surgem questionamentos quando ocorre mero transporte de arma de fogo de um local para outro, com a justificativa de tratar-se de mero ilícito administrativo, quando demonstrada a regularidade da posse e a ausência de dolo específico de portar ilegalmente a arma.
4. Guia de Tráfego e Porte de Trânsito para Transporte de Arma de Fogo
A guia de tráfego constitui documento administrativo específico, destinado a autorizar o transporte de arma de fogo pelo possuidor regularizado, fora dos limites da residência ou estabelecimento comercial. Sua natureza jurídica é de autorização administrativa especial e temporária, complementar ao certificado de registro.
A necessidade da guia de tráfego fundamenta-se na distinção legal entre posse e porte. O possuidor autorizado não detém, automaticamente, o direito de portar a arma, necessitando de autorização específica para o transporte, mesmo que eventual e temporário.
O Decreto nº 11.615/2023, em seu art. 21, estabelece que, “na hipótese de mudança de domicílio ou outra situação que implique o transporte da arma de fogo, o proprietário deverá solicitar à Polícia Federal ou ao Comando do Exército guia de tráfego para as armas de fogo cadastradas no Sinarm ou no Sigma, respectivamente, na forma estabelecida em ato conjunto do Diretor-Geral da Polícia Federal e do Comandante do Exército”.
O referido decreto, em seu art. 33, estabelece que o porte de trânsito será concedido pelo Comando do Exército, mediante emissão da guia de tráfego, a caçadores excepcionais, atiradores desportivos, colecionadores e representantes estrangeiros em competição internacional oficial de tiro realizada no território nacional.
O porte de trânsito autoriza o trânsito com armas de fogo registradas nos acervos dessas pessoas, desmuniciadas, acompanhadas da munição acondicionada em recipiente próprio, e tem validade em trajeto preestabelecido, por período determinado, e de acordo com a finalidade declarada no registro, na forma estabelecida pelo Comando do Exército.
A ausência de guia de tráfego ou de porte de trânsito, quando exigível, configura, em princípio, o crime de porte ilegal de arma de fogo, tipificado no art. 14 da Lei nº 10.826/2003. Nesse ponto que, como delineado alhures, surgem questionamentos quando ocorre mero transporte de arma de fogo de um local para outro, com a justificativa de tratar-se de mero ilícito administrativo.
Nesse ponto, impositivo ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 148.516/SC, entendeu que a conduta do colecionador, atirador e caçador autorizado, de transportar arma de fogo sem levar consigo a guia de tráfego (porte de trânsito), da sua casa até o clube de tiro que frequenta, ou mesmo em local que não é caminho entre esses lugares, não configura ilícito penal, ante o princípio da proporcionalidade.
Por fim, cumpre destacar que a guia de tráfego e o porte de trânsito não se confundem com a autorização para o porte de arma de fogo e munições, esta regulamentada pelo art. 10 da Lei nº 10.826/2003. Enquanto as primeiras constituem autorização temporária e específica para transporte eventual, a segunda representa autorização permanente para o porte habitual, sujeita a requisitos mais rigorosos e concedida com maior restrição.
5. O Crime de Posse ou Porte Ilegal de Arma de Fogo de Uso Restrito (art. 16)
O art. 16 da Lei nº 10.826/2003 tipifica a conduta de “possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Este dispositivo apresenta peculiaridade notável em relação aos tipos penais anteriormente analisados: unifica em um único tipo penal as condutas de posse e porte, quando se tratar de arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito. Essa opção legislativa evidencia a maior reprovabilidade atribuída às condutas envolvendo armamentos dessa natureza, independentemente do local em que se encontrem.
A Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) alterou o art. 16, introduzindo um segundo parágrafo que estabelece pena mais severa para condutas envolvendo armas de fogo de uso proibido: “Se as condutas descritas no caput e no § 1º deste artigo envolverem arma de fogo de uso proibido, a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos”. Essa modificação acentuou a gradação punitiva com base na periculosidade do armamento, estabelecendo clara distinção entre armas de uso restrito e de uso proibido.
A classificação de uma arma como de uso restrito ou proibido (assim como aquelas de uso permitido, delito previsto no art. 12), entretanto, não decorre diretamente da lei, mas sim dos decretos que a regulamentam. Esse modelo normativo, que delega ao regulamento a definição de elemento constitutivo do tipo penal, suscita questionamentos doutrinários quanto à observância do princípio da legalidade estrita em matéria penal.
Como já mencionado, as oscilações na política de armas, materializadas nos sucessivos decretos regulamentadores do Estatuto do Desarmamento, produziram significativas alterações na classificação das armas de fogo quanto à sua permissibilidade. Essas modificações impactam diretamente a tipificação penal, podendo conduzir a situações em que uma mesma conduta, envolvendo o mesmo armamento, receba enquadramentos típicos distintos conforme o decreto vigente à época dos fatos.
O Decreto nº 9.847/2019 adotou critérios substancialmente mais permissivos na classificação das armas de fogo. Conforme seu art. 2º, eram consideradas de uso permitido as armas de fogo semiautomáticas ou de repetição que atendessem a determinados parâmetros de potência, expressos em energia cinética na saída do cano. Especificamente, classificavam-se como de uso permitido as armas de porte cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, não atingisse, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules.
Já o Decreto nº 11.615/2023 estabeleceu critérios mais restritivos para a classificação das armas de uso permitido. De acordo com seu art. 11, são de uso permitido as armas de fogo de porte, de repetição ou semiautomáticas, cuja munição comum tenha, na saída do cano de prova, energia de até trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules, e suas munições. Essa redução substancial do limite energético implicou a reclassificação de diversos armamentos, que migraram da categoria de uso permitido para a de uso restrito.
Tal alteração repercute diretamente na esfera penal, na medida em que a mesma conduta – possuir ou portar determinada arma de fogo – pode configurar tipos penais distintos conforme o decreto vigente à época dos fatos. A título exemplificativo, a posse não autorizada de uma pistola cujo projétil atinja energia cinética de mil libras-pé poderia configurar o crime do art. 12 (posse irregular de arma de uso permitido) sob a égide do Decreto nº 9.847/2019, mas caracterizaria o delito do art. 16 (posse de arma de uso restrito) após a vigência do Decreto nº 11.615/2023.
Essa situação suscita complexas questões de direito intertemporal, sobretudo considerando o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, XL, da Constituição Federal). Nesse caso, eventual reclassificação mais benéfica ao réu deve retroagir, por força do princípio da retroatividade da lex mitior.
6. Posse ou Porte Compartilhado de Arma de Fogo
A possibilidade jurídica de compartilhamento da posse ou do porte de arma de fogo constitui tema de singular complexidade no ordenamento brasileiro. A Lei nº 10.826/2003 não contempla expressamente o instituto do compartilhamento, estabelecendo, ao contrário, a pessoalidade das autorizações de posse e porte.
O artigo 4º, § 1º, do Estatuto do Desarmamento dispõe que “O Sinarm expedirá autorização de compra de arma de fogo após atendidos os requisitos anteriormente estabelecidos, em nome do requerente e para a arma indicada, sendo intransferível esta autorização”. A interpretação literal do dispositivo, conjugada com os requisitos pessoais estabelecidos no artigo 4º, sugere a impossibilidade de compartilhamento formal da posse.
Contudo, o ordenamento jurídico contempla situações específicas que poderiam configurar modalidades de compartilhamento material, ainda que não formalmente reconhecidas como tal. Uma hipótese relaciona-se ao ambiente doméstico. O detentor de autorização de posse para defesa residencial compartilha, em certa medida, a disponibilidade da arma com os demais residentes no imóvel, embora a responsabilidade legal permaneça individualizada.
Outra hipótese refere-se ao ambiente empresarial. O artigo 7º da Lei nº 10.826/2003 estabelece que as armas de fogo utilizadas pelos profissionais de segurança privada de instituições que prestem ou exerçam segurança privada serão de propriedade, responsabilidade e guarda das respectivas empresas, autorizando, implicitamente, o compartilhamento controlado entre os vigilantes habilitados, ainda que sob a responsabilidade formal da empresa.
Não se descura que a legislação possa contemplar outras situações em que seja possível vislumbrar posse ou porte compartilhado de arma de fogo e munições, como pode ocorrer em ambientes desportivos, configurando modalidade de compartilhamento institucional.
Registra-se, no ponto, que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.887.922-PR, entendeu que o crime de porte ilegal de arma de fogo, seja de uso permitido ou restrito, na modalidade transportar, admite participação, balizando a condenação do agente com amparo no artigo 29 do Código Penal.
Feitas tais considerações, é possível vislumbrar que qualquer modalidade de compartilhamento não autorizado pode configurar, dependendo das circunstâncias concretas, os crimes de posse ou porte ilegal (artigos 12, 14 e 16 da Lei nº 10.826/2003) ou, ainda, o crime de omissão de cautela (artigo 13 da mesma lei).
Do ponto de vista processual, o compartilhamento não autorizado suscita questões relevantes sobre a individualização da conduta e a responsabilidade penal. Em regra, responde pelo crime aquele que efetivamente detém a posse material da arma no momento da apreensão, possível a participação, como mencionado, sem prejuízo da responsabilização do proprietário formal, quando demonstrada sua participação ou conivência.
CONCLUSÃO
A análise jurídico-penal do regime de posse e porte de armas de fogo no Brasil revela sistema normativo complexo, caracterizado por rigoroso controle estatal e clara distinção entre os institutos da posse (manutenção da arma em local determinado) e do porte (condução da arma fora dos limites residenciais ou laborais).
A autorização para posse de arma de fogo constitui ato administrativo vinculado, condicionado à comprovação de requisitos legais objetivos, como idoneidade, capacidade técnica e aptidão psicológica, mas também a elemento subjetivo de apreciação administrativa, consistente na demonstração de efetiva necessidade. A concessão materializa-se no Certificado de Registro de Arma de Fogo, documento distinto, embora complementar, ao registro da arma no SINARM.
As implicações legais de possuir ou portar arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal são significativas, configurando crimes de perigo abstrato, tipificados nos artigos 12, 14 e 16 da Lei nº 10.826/2003. A jurisprudência consolidada reconhece a constitucionalidade dessa tipificação, fundamentada na proteção à incolumidade pública.
O porte de trânsito e a guia de tráfego para transporte de arma de fogo pelo possuidor regularizado constitui exigência legal, fundamentada na distinção entre posse e porte. Sua ausência, quando exigível, configura, em princípio, o crime de porte ilegal, embora a jurisprudência tenha relativizado essa interpretação em circunstâncias específicas, reconhecendo, em determinados casos, a atipicidade da conduta ante o princípio da proporcionalidade.
A possibilidade de posse ou porte compartilhado de arma de fogo encontra limitações significativas no ordenamento brasileiro, que estabelece a pessoalidade das autorizações. Contudo, pode-se extrair do sistema normativo hipóteses específicas de compartilhamento material, notadamente no ambiente doméstico, empresarial e desportivo, embora mantida a individualização da responsabilidade legal, admitindo-se a figura do partícipe.
As alterações promovidas pelo Decreto nº 11.615/2023 representam significativa inflexão na política nacional de armas, reorientando-a em sentido mais restritivo. Destacam-se, dentre as principais modificações, a reclassificação de diversas armas da categoria de uso permitido para a de uso restrito, a restrição quantitativa de armas e munições passíveis de aquisição, a eliminação da presunção de veracidade das declarações de efetiva necessidade e a transferência do controle e fiscalização dos CACs do Comando do Exército para a Polícia Federal.
Essas alterações regulamentares produzem repercussões diretas na esfera penal, notadamente na tipificação das condutas relacionadas a armas de fogo. A reclassificação de armamentos pode conduzir à alteração do enquadramento típico de determinadas condutas, suscitando complexas questões de direito intertemporal e desafiando os operadores do direito a uma interpretação constitucionalmente adequada das normas penais.
O estudo evidencia a necessidade de aprimoramento da técnica legislativa e de interpretação sistemática das normas relativas ao controle de armas de fogo, de modo a conciliar o legítimo interesse estatal na proteção da incolumidade pública com as garantias fundamentais dos cidadãos, especialmente a segurança jurídica e a proporcionalidade na aplicação das sanções penais.
A evolução jurisprudencial sobre o tema demonstra tendência à interpretação teleológica e sistemática, em detrimento da interpretação meramente literal, reconhecendo a complexidade das situações concretas e a necessidade de avaliação contextualizada das condutas, especialmente nos casos limítrofes entre a regularidade e a irregularidade.
Conclui-se, portanto, que o regime jurídico-penal de controle de armas de fogo no Brasil caracteriza-se pelo rigor normativo e pela complexidade técnica, demandando dos operadores do direito compreensão precisa dos institutos e interpretação sistemática das normas, de modo a garantir a efetividade do controle estatal sem comprometer, desnecessariamente, direitos fundamentais dos cidadãos.
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[1] No ponto, cumpre destacar que o Superior Tribunal de Justiça, na Apn 686-AP, em sede de recurso repetitivo, firmou entendimento no sentido de que, uma vez realizado o registro da arma, o vencimento da autorização não caracteriza ilícito penal, mas mera irregularidade administrativa, que autoriza a apreensão da arma e a aplicação de multa. Todavia, nno AgRg no AREsp 885.281-ES, a Sexta Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça decidiu que o entendimento firmado na Apn 686-AP é restrito ao delito de posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12), não se aplicando aos crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14) nem ao porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16).
Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior – 2010. Pós-graduado em Processo Penal pela FADILESTE. Pós-graduado em Advocacia Criminal pelo CEI. Analista do Ministério Público de Minas Gerais com especialidade em Direito desde 2013
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVIM, Felipe Fernandes. Aspectos jurídico-penais do regime de posse e porte de armas de fogo no Brasil: requisitos, implicações e peculiaridades legais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2025, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69753/aspectos-jurdico-penais-do-regime-de-posse-e-porte-de-armas-de-fogo-no-brasil-requisitos-implicaes-e-peculiaridades-legais. Acesso em: 15 out 2025.
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