RESUMO: Este estudo teve como objetivo analisar o direito ao silêncio como uma garantia constitucional e sua aplicação no interrogatório seletivo, abordando as diferenças entre o direito ao silêncio absoluto e o direito de não responder às perguntas no contexto processual penal. Para isso, foram estabelecidos três objetivos específicos: 1) examinar a natureza do direito ao silêncio e suas implicações no processo penal; 2) discutir a concepção do interrogatório seletivo e a presunção de inocência; 3) analisar a diferenciação entre o direito ao silêncio e o direito de não responder a perguntas, destacando as consequências práticas dessa distinção por meio da jurisprudência. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica narrativa, com abordagem indutivo-lógica. O STF já validou a ideia de que o réu tem a faculdade de escolher de maneira estratégica quais perguntas responder, sem que isso viole seu direito à defesa. Essa interpretação do direito ao silêncio busca equilibrar a proteção ao réu com a necessidade de promover uma defesa ampla, sem que o réu seja forçado a fornecer informações que possam prejudicá-lo. O STJ também ratificou essa interpretação, evidenciando que o direito ao silêncio seletivo deve ser respeitado no interrogatório, fortalecendo a proteção ao acusado e garantindo sua liberdade de escolha em relação às perguntas que deseja responder.
Palavras-chave: Direito ao silêncio. Interrogatório seletivo. Defesa.
1. INTRODUÇÃO
O processo penal é um instrumento fundamental na busca pela verdade real e na promoção da justiça, sendo regido por um conjunto de normas e princípios que buscam equilibrar os direitos do acusado e as necessidades da investigação. Entre os momentos processuais mais importantes, destaca-se o interrogatório, fase em que o réu tem a oportunidade de se manifestar sobre os fatos que lhe são imputados. Nesse instante, o interrogatório no processo penal tem como objetivo obter informações do acusado sobre os fatos que lhe são atribuídos. No entanto, é essencial que essa fase respeite as garantias constitucionais, principalmente no que se refere à proteção contra a autoincriminação (nemo tenetur se detegere). O direito ao silêncio surge justamente como uma forma de assegurar que o réu não seja compelido a se manifestar de maneira que prejudique sua defesa. Entretanto, a utilização do direito ao silêncio não é absoluta e levanta questões sobre quando e como o réu pode optar por se calar, sem que isso implique em prejuízo à sua defesa ou à busca pela verdade (Cavalcanti, 2019; Couceiro, 2014).
O conceito de direito ao silêncio, embora muitas vezes confundido com o direito de não responder a perguntas, possui distinções importantes que impactam a forma como o interrogatório é conduzido no processo penal. O direito ao silêncio é a faculdade de se abster de qualquer manifestação no interrogatório, enquanto o direito de não responder a perguntas se refere à escolha do réu em não se pronunciar sobre determinadas questões durante o interrogatório. A diferenciação entre essas duas prerrogativas é crucial para a compreensão da dinâmica do processo penal e do papel do acusado na produção de provas (Pereira, 2012).
O interrogatório seletivo, por sua vez, é prática que visa permitir que o réu escolha sobre quais questões deseja se manifestar, sem comprometer sua defesa. Essa modalidade de interrogatório propõe uma flexibilidade na forma como o réu interage com a investigação, permitindo-lhe escolher quais informações pode ou não revelar. O interrogatório seletivo busca garantir que o acusado tenha o controle sobre o que será exposto no processo, respeitando sua posição de vulnerabilidade diante do Estado e a necessidade de uma defesa efetiva (Santos, 2021; Saddy, 2023).
O debate sobre a aplicação do direito ao silêncio e do interrogatório seletivo no processo penal brasileiro é extremamente relevante, pois envolve a tensão entre os direitos do acusado e a busca pela verdade processual (Bottino, 2019). O direito ao silêncio e a escolha de não responder a perguntas são essenciais para a proteção do réu, mas também levantam a questão de como a busca pela verdade pode ser realizada sem que se infrinja a dignidade e os direitos fundamentais do acusado. A forma como o interrogatório seletivo é conduzido tem implicações diretas na justiça do processo e na efetividade da defesa (Dias et al., 2019). Nessa perspectiva, esta pesquisa tem como pergunta a seguinte problemática: “como o direito ao silêncio e o direito de não responder às perguntas se articulam no contexto do interrogatório penal, e quais são os arcabouços jurídicos do interrogatório seletivo no ordenamento jurídico brasileiro?”. Assim sendo, o objetivo geral deste trabalho é analisar o direito ao silêncio como uma garantia constitucional e sua aplicação no interrogatório seletivo, abordando as diferenças entre o direito ao silêncio absoluto e o direito de não responder às perguntas no contexto processual penal.
Os objetivos específicos são: 1) examinar a natureza do direito ao silêncio e suas implicações no processo penal; 2) discutir a concepção do interrogatório seletivo e a presunção de inocência; 3) analisar a diferenciação entre o direito ao silêncio e o direito de não responder a perguntas, destacando as consequências práticas dessa distinção via jurisprudência. A metodologia foi de revisão bibliográfica narrativa, por investigação indutivo-lógica.
2. DO DIREITO AO SILÊNCIO
Nos ordenamentos democráticos – o que inclui o brasileiro –, o direito ao silêncio é reconhecido ao acusado e constitui uma regra fundamental dos sistemas penais, já que a propensão instintiva de tratar a pessoa acusada de crime como o conhecimento mais decisivo do juiz penal é contrabalançada justamente pelo direito ao silêncio. É comum que, na prática judicial penal, os órgãos de investigação se vejam tentados a extrair a verdade da pessoa submetida ao processo (Cavalcanti, 2019), e com esse fenômeno os ordenamentos sempre tiveram que lidar. Culpa ou inocência à parte, o acusado possui conhecimentos cuja revelação no processo seria suficiente a garantir o resultado justo; assim, obter seu saber sempre foi uma aspiração constante desde a antiguidade (Cavalcanti, 2019).
Isso explica por que as formas como os sistemas processuais disciplinam o depoimento do acusado representam um aspecto qualificador, com uma base no qual se distingue entre os modelos acusatório e inquisitório. O último justificou plenamente o uso sistemático da força para extorquir declarações do interrogado. Em oposição, o modelo garantista do processo acusatório é centrado no nemo tenetur se detegere, máxima enunciada por Thomas Hobbes e incorporada ao direito inglês desde o século XVI, cujos fundamentos políticos e jurídicos se consolidam e se difundem na Europa com o Iluminismo, quando a crítica ao Ancien Régime se dirige, entre outras coisas, contra os institutos da tortura e do juramento do réu (Couceiro, 2014). Esse vem a ser um modelo adotado por grande parte do globo atual (inclusive pelo Brasil).
O fundamento do direito ao silêncio é eminentemente político. Com base no pressuposto de que é inaceitável impor ao acusado que se torne um acusador de si mesmo, quando se pretende obter o seu depoimento, é proibida qualquer forma geral de coação à sua liberdade moral, mesmo que isso implique sacrificar a apuração do fato criminoso e ainda excluir uso de declarações que poderiam ser valiosas no plano probatório (Cavalcanti, 2019). A aversão iluminista aos institutos do Ancien Régime — que no processo inquisitório e na tortura expressavam os principais símbolos daquele sistema institucional – originou a ideia de que seria contra natureza obter do acusado as informações necessárias para condená-lo, pois exigir que o acusado se torne o seu próprio acusador, ofende a dignidade do ser humano (Couceiro, 2014).
O direito ao silêncio expressa aspecto característico de modernas democracias em matéria penal: o repúdio à delação como uma fonte de conhecimento, em função do respeito à dignidade e à liberdade moral daqueles que se encontram na condição de investigado/processado (Pereira, 2012). Não por menos, existem diferenças entre o que se vê e se entende como direito ao silêncio e, em tempo, o direito de não responder a questões (seletividade no silêncio). Cabe, antes de entrar na discussão de ambos, compreender como o direito ao silêncio é tratado no ordenamento brasileiro em comparação com a composição internacional.
2.1. DIREITO AO SILÊNCIO: BRASIL E ESFERA INTERNACIONAL
Questões políticas anteriormente mencionadas encontram sua sólida projeção jurídica na regulamentação internacional e constitucional referente à justiça penal. Contudo, vale ressaltar que, na prática judiciária, a salvaguarda do direito ao silêncio ainda encontra dificuldades em se enraizar plenamente e também não garante à sua implementação margens satisfatórias de efetividade (Couceiro, 2014). Por exemplo, o
artigo 14, n. 3, letra g do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[1] assegura a todo indivíduo acusado de um crime o direito “de não ser forçado a depor contra si mesmo ou a confessar-se culpado”. Além disso, embora não haja referência explícita na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a jurisprudência da Corte Europeia de Estrasburgo reconhece pacificamente a todo acusado o direito de permanecer em silêncio e de não se autoincriminar, como núcleo central da noção de “processo justo” consagrada no artigo 6 da CEDH, cuja razão de ser é proteger o investigado de eventuais coações abusivas da autoridade, que possam resultar em erros judiciais porquanto acredita-se que o uso de provas que constituem o fruto de confissões obtidas sob tortura resulte em forte presunção de injustiça do processo (Santos, 2021). Mesmo reconhecimento também há no Estatuto de Roma, na forma a seguir transcrita: “g) A não ser obrigado a depor contra si próprio, nem a declarar-se culpado, e a guardar silêncio, sem que o mesmo seja tido em conta na determinação da sua culpa ou inocência” (Tribunal Penal Internacional, 1998).
No contexto constitucional brasileiro, o direito ao silêncio encontra mais de uma referência. Ele se centra, antes de tudo, numa inviolabilidade da defesa em qualquer estado e grau do processo (LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado), pois o direito de não responder constitui uma “manifestação irrenunciável do direito de defesa” do acusado (Cavalcanti, 2019). Além disso, o direito ao silêncio é, mais amplamente, ligado ao direito do acusado ao respeito de sua liberdade moral, o que implica a necessidade de voluntariedade de seu eventual contributo declarativo no processo (Bacellar Filho et al., 2011).
Finalmente, a presunção de inocência, isto é, “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, exclui deveres de colaboração por parte do acusado, que é livre para decidir se realiza ou não atividades probatórias, se apresenta contra-argumentos para refutar as provas, se limita-se a negar as acusações ou permanecer em silêncio (Saddy, 2023). Normativamente, o art. 186 do CPP dispõe a configuração do direito ao silêncio, a saber: “depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa” (Brasil, 1941).
2.2. DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
A relação do direito ao silêncio com a garantia da presunção de inocência, que é constitucional, tem várias implicações. A presunção de inocência do acusado é um princípio fundamental da jurisdição penal. Ela está consagrada não apenas no CPP, mas também no art. 6 § 2 da CEDH, no art. 14 § 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e no art. 48 da Carta dos Direitos, no TPI; enfim, nos maiores diplomas internacionais da matéria.
Além disso, é uma garantia reconhecida no direito internacional, pois a ideia de que a presunção de inocência constitui uma prática do direito internacional em matéria de justiça penal vem ganhando cada vez mais força. A presunção de inocência tem o objetivo político de proteger os indivíduos contra o possível arbítrio da autoridade, orientando as relações entre o cidadão e a justiça para concepção limitada do poder, privilegiando os espaços de liberdade reconhecidos ao primeiro. Para Vale & Santos (2017), a Constituição sintetiza uma regra de tratamento e uma regra de julgamento. A regra de tratamento deve ser lida como uma limitação imposta pelo Constituinte ao legislador em relação às medidas restritivas de liberdade pessoal adotadas antes da sentença final de condenação, em que se proíbe que a limitação da liberdade pessoal no curso do processo penal tenha funções preventivas semelhantes às resultantes da aplicação da pena (consideradas devidas excepcionalidades) (Vale e Santos, 2017).
Já como uma regra de julgamento, a presunção de inocência não serve só para indicar o critério resolutivo de um fato incerto no processo penal, deixando o acusado imune a consequências desfavoráveis quando a prova da culpa for insuficiente ou contraditória no final do julgamento; também serve para definir uma maneira precisa de conceber a busca e a coleta de provas, cujos aspectos fundamentais se resumem à obrigação da acusação de provar a culpa; à separação da função de coleta das provas da função de julgar; à faculdade do acusado de contestar as provas desfavoráveis e apresentar as provas em sua defesa, sem nenhum dever de colaboração com a autoridade responsável; no direito do próprio acusado de garantir que elementos que constituem responsabilidade não sejam considerados como pressupostos face à exclusão probatória injustificada (Vale e Santos, 2017).
Portanto, é a presunção de inocência que orienta métodos de verificação, ajustando-os ao método contraditório na formação da prova, agora explicitamente consagrado na Constituição de 88 (Brasil, 1988). Aliás, como fator de compensação da assimetria intrínseca do processo penal, a presunção de inocência constitui próprio pressuposto do contraditório, que é essencialmente uma oposição paritária entre acusação e defesa para convencer o terceiro, no caso, o Estado Juiz. Já outras características tradicionais da jurisdição, como imparcialidade do juiz, inviolabilidade da defesa, princípio do juiz natural, a obrigação de fundamentação – são efetivamente garantidas no âmbito penal apenas se a presunção de inocência constituir o ponto de partida de todo o sistema processual (Vale e Santos, 2017).
Contudo, exatamente como estrela polar de procedimentos judiciais destinados a permitir a punição de uma pessoa, a presunção de inocência foi reconhecida como regra fundamental também na jurisprudência brasileira, quando direitos fundamentais começaram a ser considerados como uma espécie de código comum de valores, ainda na década de 1970, em meados à ditadura (Tutikian, 2009). Não é um conceito novo, nem mesmo sem lastro, e está diretamente associada com valores como o direito ao silêncio e interrogatório (seletivo ou não).
3. DO INTERROGATÓRIO SELETIVO
O interrogatório, enquanto ato processual de indiscutível relevância, constitui-se em uma das formas mais incisivas e delicadas de apuração da verdade no âmbito judicial. Trata-se de momento em que o réu, por meio de declarações espontâneas, responde a perguntas formuladas com a intenção de elucidar os fatos delituosos que lhe são imputados, bem como as circunstâncias que cercam o delito (Tanaka et al., 2009). Embora o réu seja livre para prestar seu "depoimento pessoal", não se pode deixar de reconhecer que, em essência, esse ato possui finalidade implícita de instigar a confissão, sobretudo quando o acusado está efetivamente envolvido na infração. Para Lima (2018), apesar de ser direito do réu e garantia processual, assume função investigativa, conduzindo o magistrado, por meio de pergunta, a identificar contradições ou omissões que possam corroborar com a acusação ou, eventualmente, revelar a inocência do acusado.
Em sua dinâmica, o interrogatório busca essencialmente a confissão do réu, uma vez que, como pontuado por Tutikian (2009), o momento é propício para que o acusado se manifeste sobre o delito que lhe é atribuído. Para o réu inocente, que não cometeu o crime de que é acusado, o interrogatório representa uma oportunidade para refutar as imputações de maneira clara e sem dificuldades substanciais, uma vez que a sua versão será respaldada pelas verdades dos fatos. O acusado poderá, portanto, negar a acusação com total convicção, sem que isso prejudique sua posição perante o juízo. No entanto, como observam Bacellar Filho et al. (2011), a situação se complica consideravelmente quando o réu é culpado. Neste caso, o acusado se vê compelido a adotar postura evasiva, engendrando série de argumentos falaciosos e contradições que, ao final, se revelam como vestígios palpáveis, fornecendo indícios valiosos para a formação da convicção do juiz. O interrogatório, assim, também pode ser visto como procedimento estratégico (Almeida, 2014).
Isso implica no interrogatório seletivo que, segundo Franca Filho (2018), é a estratégia adotada pelo acusado de optar pelo silêncio durante interrogatório, assim respondendo apenas às perguntas de seu advogado e, eventualmente, dos jurados. Essa escolha é uma prerrogativa do réu, especialmente em casos de crimes comuns, em que, em alguns momentos, pode ser vantajoso manter-se em silêncio, evitando as possíveis reações intempestivas do juiz, que poderia restringir atuação da defesa e impedir a formulação de questionamentos essenciais para a defesa do réu, entre outros (Steiner, 2020). Tanto é prerrogativa do acusado que, para boa parte da doutrina pátria, o interrogatório é muito mais um meio de defesa do que um meio de prova.
4. DO ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA
O direito ao silêncio no Brasil, cuja gênese remonta à Idade Média e ao início do Renascimento é versão nacional do privilégio contra autoincriminação consagrado no direito anglo-americano. Sua finalidade não é a consagração de um suposto direito ao engano, como ainda é sustentado por algumas doutrinas, mas sim a salvaguarda contra as práticas históricas de assédio e intimidação perpetradas pelo Estado, bem como atos de natureza inquisitorial (Cavalcanti, 2019).
Nisso, o princípio também se manifesta na tutela da integridade física do réu, ao facultar expressamente sua não participação na construção da prova de culpa. E isso, sob a ótica do entendimento desta autoria, revela-se particularmente relevante para o controle efetivo da qualidade e da fidedignidade das provas produzidas, bem como no rigor da motivação das decisões judiciais, em especial aquelas que, de fato, conduzem à condenação (Couceiro, 2014).
Por tais motivos, ao longo de muitos anos, de fato, a temática do direito ao silêncio foi exaustivamente debatida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em diversas ocasiões, sendo assentado, assim, que não se opõe ao princípio da inviolabilidade de conversas telefônicas ou à gravação de diálogos entre presos e policiais. Contudo, o direito ao silêncio (habeas corpus nº 69.818, de 11.03.1992) não poderia constituir fundamento para anular um processo, salvo se o silêncio fosse a única base para a condenação, como sustentado por outras provas (HC nº 75.616, de 7.10.1997). Adicionalmente, o STF asseverou que a recusa do réu em fornecer autógrafos a exame não configuraria crime de desobediência (HC nº 77.135, de 8.9.1998) e, mais ainda, que o réu estaria amparado em seu direito de mentir, sociopoliticamente (não juridicamente) nas suas declarações (HC nº 75.257, de 17.6.1997).
Em 1999, no julgamento do HC nº 78.708-1 SP, o STF enfrentou, pela primeira vez, questão do direito à informação sobre direito ao silêncio. Ao caso, investigadores policiais receberam uma denúncia de tráfico de drogas ocorrido dentro de um prédio na cidade de São Paulo, o que levou à prisão de um indivíduo denominado "Álvaro", cuja descrição física correspondia àquela fornecida pelo informante. Este indivíduo, ao ser abordado, carregava em sua posse quatro microdoses de LSD (ácido lisérgico dietilamida, substância ilícita), além de, em seguida, revelar o local onde guardava maconha. Durante a investigação, o acusado também indicou a residência de outro indivíduo, "Ricardo", onde foram apreendidas mais drogas, resultando na prisão de "Ricardo" e na apreensão de mais substâncias ilícitas (STF, 1999). Esse conjunto de circunstâncias evidenciou que a conduta do acusado configurava tráfico de drogas, sendo ele condenado à pena de três anos de prisão, conforme preceituava o art. 12 da Lei 6.368/1976, até então em vigor. A defesa, no entanto, sustentou que a sentença era inválida, pois se baseava em provas ilícitas, derivadas das informações fornecidas pelo réu à polícia antes de ser informado sobre o seu direito ao silêncio. A prisão de Álvaro ocorreu às 12h40min de 11 de setembro de 1997, sendo que somente após 10 horas, enquanto se digitavam registros de prisão, o acusado foi informado sobre o seu direito constitucional de permanecer em silêncio. A defesa invocou a tese de que, se o acusado for informado, durante a elaboração do relatório policial, sobre seu direito constitucional de permanecer em silêncio e optar por exercer esse direito, nada do que ele possa ter dito antes ou depois do momento de sua prisão pode ser utilizado contra ele na sentença, salvo se o tiver dito anteriormente, no momento da sua prisão, quando foi adequadamente informado sobre esse direito (SFT, 1999).
Na ocasião, o STF entendeu que a omissão da comunicação do direito ao silêncio no momento adequado acarretaria nulidade, resultando na desconsideração das informações obtidas e das provas derivadas de forma ilícita. Contudo, para que a nulidade seja reconhecida, é imperioso que se demonstre que a violação do direito ao silêncio tenha efetivamente prejudicado o acusado, que poderia optar pelo silêncio ou por fornecer versão dos fatos, com consequência positiva ou negativa, no exercício do princípio da ampla defesa (STF, 1999).
No HC, o acusado permaneceu em silêncio durante o interrogatório formal, optando por não declarar que forneceu informações à polícia sem ter sido previamente informado sobre o direito ao silêncio, optando, ao invés disso, por apresentar sua versão dos fatos. Dessa forma, entendendo que a escolha foi pela intervenção ativa, e não pelo direito ao silêncio, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a ordem (STF), mas essa primeira abertura resultou em diversas outras discussões na jurisprudência, incluindo uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a saber:
HABEAS CORPUS. FURTO. DETERMINAÇÃO DE COMPARECIMENTO AO INSTITUTO DE CRIMINALÍSTICA PARA COLHEITA DE IMAGEM. DIREITO AO SILÊNCIO. PRINCÍPIO DA NÃO AUTOACUSAÇÃO (NEMO TENETUR SE DETEGERE). CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O direito à liberdade, fundamental e elemento imprescindível à dignidade da pessoa humana, é tutelado pela Magna Carta no caput do art. 5º. Entretanto, apesar de fundamental, não é absoluto, inclusive em face da existência de outros direitos e garantias de mesma natureza que demandam, consequentemente, ponderação de valores, harmonização ou concordância prática. 2. Nesse mesmo diapasão, o direito ao silêncio (nemo tenetur se detegere), ainda que não expresso na Carta Magna, desponta como garantia essencial da pessoa humana, assegurando ao acusado o direito de não produzir provas em seu desfavor. 3. "Nesse aspecto, competindo ao Órgão ministerial formar o convencimento do juiz acerca da materialidade e autoria delitiva aptas a condenação, ficou consagrado o princípio do nemo tenetur se detegere. Apesar da ausência de previsão expressa do princípio da não autoacusação na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, ficou assegurada a presunção de inocência e o direito absoluto de não ser torturado. Contudo, o Pacto de São José da Costa Rica o consagrou como direito fundamental no art. 8º, § 2º, g, dispondo que ninguém é obrigado a depor contra si mesmo nem a se declarar culpado" (HC 97.509/MG). 4. A Lei 10.792/03, seguindo esta nova sistemática, alterou o conteúdo do comando normativo do art. 186 do CPP estabelecendo que "Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa". 5. No caso dos autos, a determinação ao paciente de apresentar-se ao Instituto Criminalística para a fim de submeter-se a perícia de confecção de imagens consiste, indubitavelmente, constrangimento ilegal e inconstitucional, agravada, ainda, pela ameaça concreta à liberdade de locomoção, em face da imposição de pena de prisão na hipótese de negativa de comparecimento em 5 dias. 6. Ordem concedida para o fim de, expedindo-se salvo conduto, assegurar ao paciente o direito de não ser obrigado a comparecer ao Instituto de Criminalística para fornecer sua imagem. Decisão: vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), Gilson Dipp, Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia Filho votaram com o Sr. Ministro Relator (STJ. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. Min. Relator. Jorge Mussi. HC 179486 / GO. Julgado: 14/06/2011. Dje: 27/06/2011).
O STJ reconheceu que a determinação para o paciente comparecer ao Instituto de Criminalística para a coleta de imagem configurava um constrangimento ilegal, em razão da violação do princípio da não autoacusação (nemo tenetur se detegere), o que assegura ao acusado o direito de não produzir provas contra si mesmo; idem ao que se entende como direito ao silêncio. Já em 2014, tema relativo ao direito à informação sobre o direito de permanecer em silêncio ganhou cenário de apreciação do STF e do STJ, mais precisamente com o HC 122.279, originário do Rio de Janeiro, relatado pelo Eminente Ministro Gilmar Mendes.
O caso envolvia um soldado do Exército Brasileiro que, em uma escola militar, subtraiu aparelho celular de outro militar. Após prestar sua versão como testemunha, na qual estava compelido a dizer a verdade, o acusado solicitou ao responsável pela apuração da investigação policial militar que desconsiderasse suas palavras iniciais e fizesse a devida confissão do delito. Com base exclusivamente na confissão do réu, o Ministério Público Militar o denunciou, imputando àquele a prática do crime militar previsto no artigo 240 do Código Penal Militar, correspondente ao furto simples. O Ministério Público Federal, por sua vez, optou pela interposição de recurso ordinário, no qual levantou a hipótese de rejeição da denúncia, por falta de justa causa, argumentando que uma nova denúncia deveria ser apresentada, acompanhada de outras fontes de prova (STF, 2014). O STF confirmou a importância do direito ao silêncio, como pedra angular no sistema de proteção dos direitos individuais, citando ainda o HC 78.708, de 1999. Nessa ocasião, o STF entendeu ainda que a ausência de advertência sobre direito ao silêncio implica que qualquer prova obtida do acusado seja considerada nula, seja durante interrogatório formal, seja em "conversa informal", escrita clandestina ou não (HC 80.949/2001). Outros casos também foram relevantes, mais recentes, como é o caso do direito ao silêncio na condição de testemunha, in verbis:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. EXTENSÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO SOBRE FATOS QUE POSSAM INCRIMINAR A TESTEMUNHA. PACIENTE QUE SOFREU, AO LONGO DAS INVESTIGAÇÕES, QUEBRA DE SIGILO FISCAL E BUSCA E APREENSÃO DOMICILIAR NÃO PODE SER TRATADO COMO TESTEMUNHA COMUM. CONCESSÃO ORDEM A DETERMINAR O TRANCAMENTO DO PROCESSO SOBRE SUPOSTO CRIME DE FALSO TESTEMUNHO, UMA VEZ QUE, MATERIALMENTE, O DEPOIMENTO DO ACUSADO FOI COLHIDO NA CONDIÇÃO DE INVESTIGADO, E NÃO DE TESTEMUNHA. RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. 1. O direito ao silêncio é uma garantia constitucional civilizatória, que reconhece a necessidade do Estado ter outras formas de obtenção, independentemente da palavra do réu, para alcançar a verdade. 2. A regra é que a testemunha não tem o direito de ficar calada, todavia, quando esta é formalmente arrolada nessa condição, mas tratada materialmente como um investigado, também deverá incidir a garantia constitucional. 3. Sem a comprovação do aviso do direito ao silêncio, nulo está o depoimento do paciente, e não há sentido em se admitir que ele possa ser processado pelo crime do art. 342 do Código Penal. 4. Recurso ordinário em HC conhecido e provido para determinar o trancamento do processo em relação à acusação de falso testemunho Decisão: vistos e relatados estes autos em que são partes acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator. (STJ. Superior Tribunal de Justiça. 6T. RHC 88030/RJ. Min Relator. Rogerio Schietti Cruz. Julgado 06/04/2021, Dje: 06/04/2021).
A jurisprudência do RHC 88030 /RJ envolve a extensão do direito ao silêncio a uma pessoa que, embora tenha sido formalmente arrolada como uma testemunha, foi tratada materialmente como investigado ao longo das investigações, incluindo, assim, as medidas como a quebra de sigilo fiscal e a busca e apreensão domiciliar. O tribunal reconheceu que, nessa situação, toda a garantia constitucional do direito ao silêncio, normalmente aplicável ao acusado, também se estende à testemunha tratada como investigada. Nisso, o ponto central da decisão é que o direito ao silêncio, previsto na Constituição, não se limita só ao réu, mas se estende também à pessoa que, embora formalmente arrolada como testemunha, esteja sendo tratada como investigado; aqui abrindo espaço para a seletividade procedimental (STJ, 2021). Veja-se, pois, que o direito ao silêncio é matéria de significativa controvérsia e relevância em face dos tipos e escopos de decisões e isso fica mais notório na mais recente delas: a relação entre o direito ao silêncio e o direito de não responder, tratado pelo RHC 213849 AgR:
PENAL E PROCESSO PENAL. DIREITO AO SILÊNCIO. EXERCÍCIO SELETIVO. POSSIBILIDADE. CERCEAMENTO. NULIDADE DO INTERROGATÓRIO RECONHECIDA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. O direito constitucional ao silêncio deve ser exercido pelo acusado da forma que melhor lhe aprouver, devendo ser compatibilizado com a sua condição de instrumento de defesa e de meio probatório. 2. A escolha das perguntas que serão respondidas e aquelas para as quais haverá silenciamento, harmoniza o exercício de defesa com a garantia da não incriminação. 3. Agravo provido para reconhecer a nulidade dos interrogatórios em razão do cerceamento do direito ao silêncio seletivo. Decisão: após o voto do Ministro Ricardo Lewandowski (Relator), que negava provimento ao agravo regimental, e dos votos divergentes dos Ministros Edson Fachin e André Mendonça, que davam provimento ao agravo para o fim de prover o recurso ordinário reconhecendo a nulidade dos interrogatórios, pediu vista dos autos o Ministro Gilmar Mendes. Segunda Turma, Sessão Virtual de 1.3.2024 a 8.3.2024. Decisão: A Turma, por maioria, deu provimento ao agravo regimental para o fim de prover o recurso ordinário reconhecendo a nulidade dos interrogatórios, nos termos do voto do Ministro Edson Fachin, Relator para o acórdão, vencido o Ministro Ricardo Lewandowski (Relator). Não participou deste julgamento o Ministro Dias Toffoli por suceder a cadeira do Ministro Ricardo Lewandowski na Turma. Segunda Turma, Sessão Virtual de 5.4.2024 a 12.4.2024 (STF. Supremo Tribunal Federal. RHC 213849 AgR, Min. Relator. Ricardo Lewandowski, Min. Relator Acord. Edson Fachin, Segunda Turma. Julgado: 15/04/2024, Dje: 15/05/20224).
O julgado em questão discute a interpretação do direito ao silêncio no contexto penal, particularmente no que se refere à possibilidade de "silenciamento seletivo" por parte do acusado durante o interrogatório. STF reconhece que o direito constitucional ao silêncio, previsto no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, não deve ser absoluto ou exercido de forma irrestrita. Ao contrário, deve ser compatibilizado com o exercício do direito de defesa e com a necessidade de evitar a autoincriminação. Isso significa que o acusado tem a faculdade de escolher de forma seletiva as perguntas que deseja responder e aquelas para as quais opta por permanecer em silêncio. No caso analisado, tribunal discutiu se recusa do acusado em responder a determinadas perguntas, em processo de silenciamento, prejudicaria a validade do interrogatório; o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, inicialmente negou provimento ao agravo, mas foi vencido pelos votos dos Min. Edson Fachin e André Mendonça, que reconheceram o cerceamento do direito ao silêncio seletivo, que levou à nulidade dos interrogatórios realizados. A decisão final foi proferida pela maioria dos ministros da Segunda Turma, que, em consonância com os votos divergentes, deu provimento ao agravo regimental para anular interrogatórios, por entenderem que o direito ao silêncio, quando exercido de maneira seletiva, é uma garantia fundamental do acusado e deve ser respeitado para assegurar a sua ampla defesa (STF, 2024).
Este julgamento confirma uma interpretação mais ampla do direito ao silêncio, considerando-o não apenas como a opção de permanecer calado, mas também como uma ferramenta estratégica de defesa, em que o acusado pode exercer seletivamente esse direito para evitar autoacusação. Relevante entender ainda que ambos têm um mesmo fundamento jurídico: a proteção do acusado. A nulidade dos interrogatórios foi reconhecida por cerceamento do direito de defesa, em especial no que tange à preservação da não autoincriminação. Estão noção é acompanhada pelo é acompanhada pelo STJ, vide a seguir:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. 1. INTERROGATÓRIO JUDICIAL. SILÊNCIO SELETIVO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 2. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O fato de o juiz conduzir o interrogatório não significa que o réu está impossibilitado de responder apenas a algumas perguntas, em especial às da defesa, fazendo uso assim do silêncio seletivo. De fato, é cediço que quem pode o mais pode o menos. Assim, se é possível não responder a nenhuma pergunta, é possível também responder apenas a algumas perguntas. - Anote-se que o direito ao silêncio é consectário do princípio nemo tenetur se detegere, tratando-se, portanto, de garantia à não autoincriminação. Ademais, é assente que o interrogatório não é apenas meio de prova, mas especial instrumento de autodefesa, competindo, dessa forma, à defesa escolher a melhor estratégia defensiva. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. Decisão: Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Turma, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental. Os Srs. Ministros Ribeiro Dantas, Joel Ilan Paciornik, Messod Azulay Neto e João Batista Moreira (Desembargador convocado do TRF1) votaram com o Sr. Ministro Relator (Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. AgRg no HC 833704/SC. Min. Relator. Reynaldo Soares Da Fonseca. Julgado: 08/08/2023. Dje: 12/08/2023)
O julgamento do STJ também reconheceu que o réu tem a possibilidade de escolher as perguntas que deseja responder, especialmente as que julgar estratégicas para a sua defesa. A decisão do STJ destaca que a condução do interrogatório pelo juiz não impede o réu de fazer uso do "silêncio seletivo", ou seja, responder apenas algumas perguntas, de forma que acusado ainda mantenha a capacidade de autodefesa. A jurisprudência cita que, se o réu pode silenciar em relação a todas as perguntas, é igualmente possível que ele escolha se manifestar apenas em relação a algumas. A fundamentação do STJ também lembra que o direito ao silêncio é uma consequência do princípio "nemo tenetur se detegere" (ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo), o que implica o direito do acusado a não autoincriminação. Além disso, reforça que o interrogatório, como dito alhures, é um meio de defesa e não apenas uma coleta de provas, dando ao acusado a liberdade de escolher a melhor estratégia para sua defesa. Ao comparar com o julgamento do STF, ambos os tribunais reconhecem a possibilidade do silêncio seletivo, embora STF tenha abordagem mais detalhada, estabelecendo a nulidade dos interrogatórios quando o direito ao silêncio seletivo é cerceado; no caso do STF, a decisão foi tomada em situação onde o acusado foi impedido de exercer essa escolha, configurando cerceamento do direito à defesa, o que levou à nulidade do interrogatório. Em contraste, o STJ reconheceu a possibilidade do silêncio seletivo de forma mais direta e sem a necessidade de anulação do interrogatório, só afirmando que a estratégia de defesa é legítima.
Cabe aqui salientar a grande diferença entre ambos (em que pese a figura do acusado): o direito ao silêncio (previsto no art. 5º, LXIII, da CF) é mais abrangente, aproximando-se de direito material, e impede que o réu seja obrigado a produzir provas contra si, ou seja, é uma proteção contra a autoincriminação forçada; já o silêncio seletivo, por outro lado, seria um direito formal, mais próximo do processo penal, referindo-se à liberdade do acusado de escolher responder ou não a determinadas perguntas durante o interrogatório, sem que isso implique necessariamente em uma violação de seu direito constitucional de defesa. Esse direito está implícito no art. 5º, LV, pois assegura ao réu o direito de se defender das maneiras que lhe pareça mais adequada, o que inclui a escolha de não responder, assim, às perguntas que considere prejudiciais à sua defesa.
Nisso, importante entender, sobretudo, que “o interrogatório deve ser um ato espontâneo, livre de pressões ou torturas (físicas ou mentais).” (Lopes Júnior, 2019, p. 537). Nesse sentido, não há, hoje, qualquer disposição normativa que imponha o encerramento do interrogatório sem a plena e inquestionável oportunidade para que a defesa formule perguntas ao acusado, após o exercício do direito ao silêncio seletivo por este, uma vez que a legislação processual penal e os princípios constitucionais garantem a ampla defesa e a não autoincriminação (Lopes Júnior, 2019).
O artigo 186 do CPP é claro ao dispor que, uma vez devidamente qualificado e cientificado sobre o conteúdo integral da acusação, o acusado será informado, pelo magistrado, antes do início do interrogatório, acerca de seu direito ao silêncio. Este, por sua vez, poderá, de forma consciente e livre, optar por não responder a qualquer pergunta formulada, respondê-las integralmente ou, ainda, escolher só seletivamente aquelas às quais responderá. Tal previsão, além de assegurar o exercício do direito ao silêncio, também garante a prerrogativa de o acusado adotar estratégia de defesa conforme sua conveniência, escolhendo se (e ainda como) se manifestará diante das perguntas da acusação e da defesa (Lopes Júnior, 2019).
Em consonância com o princípio da ampla defesa, consagrado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, o acusado tem o direito de se defender em todas as fases do processo de forma plena e irrestrita. Esse princípio permite que o réu escolha a melhor tática defensiva, seja optando por se calar, seja selecionando questões às quais decidirá responder, dentro dos limites da legalidade e da ética processual. De forma complementar, o princípio da presunção de inocência, garantido pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, resguarda o réu de qualquer presunção de culpa, reforçando a proteção ao direito ao silêncio como garantia contra a autoincriminação. A vedação à autoacusação, prevista no artigo 186 do CPP e também conhecida pela expressão "nemo tenetur se detegere", é um corolário do princípio da não autoincriminação, assegurando que ninguém seja compelido a produzir provas contra si mesmo (Brasil, 1941).
Ainda no contexto processual, o artigo 8º, § 2º, alínea g, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, consagra o direito de o acusado não ser obrigado a depor contra si mesmo nem a se declarar culpado, reforçando a posição internacional sobre a importância do direito ao silêncio, sem que isso possa ser interpretado em prejuízo do réu.
Por sua vez, o artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, também consagra que, durante a apuração de infrações, ninguém será submetido a tratamento que implique constrangimento ilegal, o que abrange o cerceamento do direito de defesa, como seria o caso da impossibilidade de o acusado adotar o silêncio seletivo durante o interrogatório. O direito ao silêncio, como uma das vertentes da ampla defesa, é incompatível com qualquer imposição que prejudique sua escolha de respostas ou a ausência delas. Dessa forma, o interrogatório, enquanto instrumento de defesa, confere ao acusado a prerrogativa de, conforme a estratégia de sua defesa, decidir se responderá a todas, a nenhuma ou apenas a algumas das perguntas formuladas. Tal prerrogativa, assegurada por diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, reflete a autonomia do acusado no processo, permitindo-lhe a plena utilização do direito ao contraditório e à ampla defesa, princípios essenciais no devido processo legal (artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal). Portanto, a possibilidade de exercer o silêncio seletivo não apenas respeita o direito à liberdade de autodefesa do acusado, mas também reflete o compromisso do ordenamento jurídico com a preservação da dignidade humana e a proteção contra abusos processuais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo 5º, inciso LXIII, assegura ao réu o direito de permanecer calado, visando protegê-lo da autoincriminação. No entanto, a aplicação desse direito, conforme abordado no julgamento do RHC 213849 AgR, vai além da simples escolha de permanecer em silêncio. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a validade do "silêncio seletivo", isto é, a faculdade do acusado de escolher de maneira estratégica quais perguntas deseja responder, sem que essa escolha constitua uma violação ao seu direito de defesa. Esse entendimento reflete uma interpretação mais flexível do direito ao silêncio, compatibilizando-o com a ampliação da defesa e o direito do acusado a não ser forçado a se incriminar.
O STF, ao reconhecer a nulidade dos interrogatórios realizados sem a devida observância do silêncio seletivo, fortalece a ideia de que o interrogatório não é apenas um instrumento probatório, mas também uma ferramenta de autodefesa do acusado. O direito de escolher quais perguntas irá responder é uma medida que visa proteger a integridade da defesa, prevenindo que o réu se veja forçado a oferecer informações prejudiciais à sua própria posição. A decisão foi unânime em reconhecer o cerceamento da defesa quando o direito ao silêncio seletivo não é respeitado, uma postura que reflete o entendimento de que o exercício pleno da defesa está intimamente ligado à possibilidade de evitar autoacusação.
Essa interpretação do direito ao silêncio, reforçada pelos julgados tanto do STF quanto do STJ, evidencia a importância de se equilibrar o direito à ampla defesa com a proteção contra a autoincriminação. No AgRg no HC 833704/SC, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ratificou que a condução do interrogatório pelo juiz não impede o réu de fazer uso do silêncio seletivo, permitindo-lhe responder apenas a perguntas que considere estratégicas e interessantes para sua defesa. Assim, a jurisprudência atual evidencia uma proteção robusta ao acusado, assegurando que ele tenha liberdade para escolher, dentro dos limites legais, como deve ser conduzido o seu interrogatório de mérito, sem que isso prejudique seu direito à defesa ampla, essencial em qualquer processo penal.
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[1] O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) é um tratado multilateral adotado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 16 de dezembro de 1966. Ele entrou em vigor em 23 de março de 1976 e visa garantir direitos civis e políticos fundamentais dos indivíduos. O pacto aborda diversos direitos, como o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, à liberdade de expressão, à liberdade de associação, o direito de participação no governo e a proibição de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante. Ele também assegura direitos a pessoas em situações de privação de liberdade, bem como protege os direitos das minorias. O Brasil assinou e ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos em 1968, com sua adesão formal ao tratado ocorrendo em 1992, após o processo de ratificação. A ratificação do pacto implica que o Brasil se comprometeu a respeitar os direitos ali descritos e a submeter-se ao monitoramento da ONU, especialmente do Comitê de Direitos Humanos, que avalia periodicamente a implementação dos direitos no país (Queijo, 2012).
Promotor de Justiça – Ministério Público da Paraíba. Mestre em Ciência Política (UFPB). Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Direito Penal e Processo Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMORIM, DMITRI NÓBREGA. O direito ao silêncio como garantia constitucional e interrogatório seletivo: revisitando a jurisprudência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2025, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69840/o-direito-ao-silncio-como-garantia-constitucional-e-interrogatrio-seletivo-revisitando-a-jurisprudncia. Acesso em: 17 out 2025.
Por: MARIA THEREZA GRANDENI PIRES
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Por: ELISABETE CUNHA CANO
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