Poucos termos circulam com tanta frequência nos espaços de decisão judicial quanto o “devido processo legal”. A fórmula — ao mesmo tempo solene e genérica — tornou-se sinônimo automático de legitimidade. Pronunciá-la confere à decisão uma aparência de correção, como se sua simples menção fosse suficiente para validar o procedimento. Essa prática, no entanto, criou um paradoxo: quanto mais se invoca o princípio, menos se pergunta pelo que o torna real. Seu nome tornou-se um hábito — e seu conteúdo, um silêncio.
A tese que proponho desafia essa tradição. Em vez de conceber o devido processo legal como um princípio-guarda-chuva ou uma cláusula-matriz, penso-o como uma figura emergente. Ele não antecede as garantias processuais; é o resultado da forma como essas garantias se organizam. Não é a fonte da legitimidade, mas sua imagem final. Não comanda — acontece. E só acontece quando o processo atinge uma disposição funcional suficientemente coerente para projetá-lo como forma visível.
Essa leitura exige um deslocamento da gramática jurídica. O devido processo legal não deve mais ser tratado como um princípio de densidade própria, mas como um princípio-figura — uma forma jurídica que apenas aparece quando certos vetores normativos se conectam em rede. Ele não opera por si. Não possui conteúdo autônomo. Sua validade depende da projeção gerada por um arranjo interno: uma malha de garantias em equilíbrio funcional. Sem articulação, não há projeção. Sem projeção, não há figura. E sem figura, o nome que se invoca é apenas isso — nome.
Para dar forma a essa proposição, proponho uma tipologia funcional dos princípios constitucionais processuais, dividida em três categorias: princípios-fonte, princípios-nó e princípios-figura.
Os princípios-fonte são aqueles dotados de densidade normativa primária. Contraditório, imparcialidade, motivação, razoável duração do processo — todos eles possuem conteúdo normativo próprio, reconhecido doutrinária e jurisprudencialmente. Mesmo isolados, impõem limites e produzem efeitos. São eixos estruturantes da legitimidade. Sua ausência, por si, desestabiliza o processo.
Os princípios-nó ocupam uma função menos evidente, mas decisiva: são os pontos de conexão entre garantias distintas. Boa-fé, oralidade, isonomia, paridade de armas, ampla defesa e cooperação processual são exemplos. Eles não existem para produzir efeitos autônomos, mas para articular os elementos normativos principais em um campo coerente. Funcionam como ligamentos da estrutura, viabilizando a comunicação entre as partes da rede. Quando operam, a malha se fecha; quando falham, o sistema se fragmenta.
O devido processo legal, por sua vez, pertence a uma terceira categoria: a dos princípios-figura. Não possui densidade própria. Não irradia efeitos isolados. Sua função não é estruturar diretamente o processo, mas revelar, como imagem projetada, o estado de coerência da rede normativa. Quando os princípios-fonte e os nós se articulam com estabilidade, a figura aparece — o devido processo se forma. Quando não, sua ausência não pode ser compensada pela simples menção ao seu nome. O nome sobrevive; a figura desaparece.
A consequência dessa construção é radical: a validade do processo passa a depender da forma projetada, e não da invocação formal dos princípios. O processo não é devido porque menciona o devido processo legal. Ele é devido quando, na estrutura que o compõe, é possível reconhecer uma figura coerente com os fins constitucionais que o legitimam.
A ideia de que o devido processo legal é uma figura — e não um comando — exige a introdução de uma categoria analítica ausente da dogmática tradicional: a de morfogênese normativa. Diferente da visão que concebe o princípio como uma entidade substancial, essa teoria compreende o devido processo como uma forma que emerge quando uma estrutura mínima de coerência funcional se estabelece entre os elementos do sistema processual.
Não se trata de metáfora. A morfogênese, aqui, é tomada em sentido técnico: o devido processo legal não é um dado, mas uma forma variável, dependente da articulação entre garantias. É o modo como certas conexões se estabilizam que permite a emergência da figura. Sem essas conexões — sem a curvatura estrutural gerada por princípios em operação conjunta — o processo pode seguir formalmente válido, mas será normativamente ilegítimo. Haverá estrutura, mas não forma. Nome, mas não figura.
Esse deslocamento nos permite reinterpretar a própria ideia de validade. Tradicionalmente, verifica-se a presença de princípios por enunciação — se estão invocados no texto da decisão, ou se foram nominalmente considerados pelo julgador. A teoria aqui defendida propõe outro critério: a coerência topológica. Em outras palavras, o que importa não é a presença declarada dos princípios, mas o modo como eles se posicionam, se tensionam e se articulam entre si para formar uma estrutura que projete a figura reconhecível do processo devido.
Essa coerência não exige rigidez. Pelo contrário: o que torna o princípio-figura reconhecível em diferentes contextos é precisamente sua plasticidade funcional. A figura se adapta, de modo legítimo, à configuração do campo onde emerge. Em processos penais, pode assumir um contorno mais garantista, moldado por direitos fundamentais como presunção de inocência e contraditório robusto. Em ações coletivas ou estruturais, tende a se tornar mais dialógica, orientada à efetividade e à simetria participativa. Em litígios administrativos, assume um perfil baseado em motivação e possibilidade de contestação. A figura varia — mas a forma precisa sempre resultar de uma rede funcional estável.
A plasticidade, no entanto, não é relativismo. O que se afirma não é que qualquer forma seja admissível, mas que apenas há figura legítima quando os princípios atuam de modo a projetá-la. Não basta a presença superficial dos vetores normativos. É preciso que eles estejam organizados com densidade, conexão e direção. O reconhecimento da figura, então, não se dá pela repetição dos termos constitucionais, mas pela leitura da forma projetada. E essa leitura é, fundamentalmente, uma leitura estrutural.
Tal perspectiva rompe com o formalismo performativo que hoje domina parte da prática judicial. Não basta declarar que o processo foi devido — é preciso demonstrar que ele se formou como tal. E essa formação não se dá por decreto, mas por arquitetura. Sem coerência funcional mínima, não há figura. E sem figura, não há legitimidade.
Do princípio-fetiche ao reconhecimento morfológico da legitimidade
A teoria relacional aqui proposta não é apenas descritiva. Ela é também crítica. Sua força está em oferecer um novo modelo de análise da validade processual — mas também em denunciar os limites do modelo vigente. A prática jurídica, em larga medida, ainda opera com um vocabulário que confunde enunciação com estrutura, forma com fórmula, nome com realidade. O devido processo legal tornou-se, nesse cenário, um princípio-fetiche: invocado como símbolo de legitimidade, mesmo quando a estrutura que lhe daria forma jamais se constituiu.
Esse fenômeno é especialmente perceptível nas decisões judiciais que mencionam o devido processo legal como argumento de reforço — e não como conclusão decorrente da análise funcional do procedimento. Menciona-se o princípio como selo, como emblema, como selo de autenticidade institucional. A referência se converte em ritual. E o ritual, ao substituir a análise da coerência estrutural, encobre a ausência da figura com o excesso de linguagem.
É contra o fetichismo performativo que a teoria do princípio-figura se insurge. O processo não é devido porque se diz que é — ele é porque se mostra como tal. E esse “mostrar” não é meramente simbólico, mas arquitetônico. Ele exige densidade, ligação, tensão e forma. Exige a presença dos princípios-fonte, a atuação dos princípios-nó e a projeção de um arranjo normativo que torne a figura visível, ainda que variável. Quando isso acontece, o devido processo se reconhece. Quando não, sua ausência não pode ser escondida pela força da retórica.
Essa virada também é propositiva. Ela oferece um novo critério de análise: o da legitimidade morfológica. A pergunta não é apenas se o processo cumpriu etapas formais ou se invocou as garantias constitucionais. A pergunta mais fundamental passa a ser: o processo, em sua estrutura interna, projetou uma figura coerente com os fins constitucionais da jurisdição? Se sim, é legítimo. Se não, não basta nomeá-lo. A imagem do justo não se impõe por decreto — ela se revela por coerência.
A teoria da emergência normativa do devido processo legal tem, portanto, implicações práticas e teóricas. Rompe com a ideia de que o princípio existe independentemente de sua articulação funcional. Exige um novo léxico, uma nova forma de leitura da legitimidade e uma nova consciência do papel dos princípios no campo processual. E, sobretudo, desloca a análise do conteúdo para a forma; do comando para a rede; do enunciado para a figura.
A forma é a nova medida da validade.
O devido processo legal não constitui o ponto de partida da natureza procedimental — ele é a forma visível que resulta da articulação das garantias que o compõem. Não se antecipa à estrutura: surge dela, como expressão de uma rede em estado de coerência funcional. Seu nome, quando invocado isoladamente, nada garante. É sua projeção como figura reconhecível que confere sentido legítimo ao nome que a designa.
É no instante — quando a estrutura se curva em direção à coerência — que o devido processo aparece. E apenas ali o processo pode ser dito, com propriedade, como devido.
Acadêmico de Direito na UFRJ
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROSO, RAFAEL REIS. Quando o princípio não precede, mas emerge: o devido processo legal como figura relacional. Para uma teoria topológica do devido processo legal como figura jurídica dependente de articulação principiológica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun 2025, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/68767/quando-o-princpio-no-precede-mas-emerge-o-devido-processo-legal-como-figura-relacional-para-uma-teoria-topolgica-do-devido-processo-legal-como-figura-jurdica-dependente-de-articulao-principiolgica. Acesso em: 14 ago 2025.
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