Resumo: O presente artigo examina a interconexão entre as mudanças climáticas e o Direito do Trabalho, analisando o impacto do aquecimento global nas relações laborais. O estudo se fundamenta na Constituição Federal, que estabelece o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e nas normas internacionais da ONU e da OIT, que protegem o trabalhador contra riscos ambientais. A análise foca na vulnerabilidade dos trabalhadores em atividades a céu aberto e critica a exclusão do adicional de insalubridade para essa categoria. Argumenta-se que a exposição ao calor, intensificada pelo aquecimento global, agrava a condição de insalubridade. Adicionalmente, o texto discute o racismo ambiental, evidenciando que as ocupações mais prejudicadas pelo calor são frequentemente desempenhadas por grupos sociais vulneráveis. Por fim, o artigo aborda a remuneração por produção, citando a Orientação Jurisprudencial (OJ) da SDI-1 do TST, que reconheceu o direito de cortadores de cana ao pagamento de horas extras, mitigando os riscos de exaustão e reforçando os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Mudanças Climáticas. Racismo Ambiental. Insalubridade. Dignidade da Pessoa Humana.
Abstract: This article examines the interconnection between climate change and Labor Law, analyzing the impact of global warming on labor relations. The study is grounded in the Federal Constitution, which guarantees the right to an ecologically balanced environment, and in international norms from the UN and the ILO, which protect workers from environmental risks. It argues that heat exposure, intensified by global warming, exacerbates the unhealthy condition. Additionally, the text discusses environmental racism, highlighting that occupations most affected by heat are often performed by socially vulnerable groups. Finally, the article addresses piecework compensation, citing the Jurisprudential Guidance (OJ) from the SDI-1 of the TST, which recognized the right of sugarcane cutters to overtime pay, mitigating the risks of exhaustion and reinforcing the principles of human dignity and the social value of labor. Keywords: Labor Law. Climate Change. Environmental Racism. Unhealthy Working Conditions. Human Dignity.
1. Introdução
O presente artigo explora a interseção crucial e crescente entre as mudanças climáticas e o Direito do Trabalho, investigando como o aquecimento global impacta, de forma direta e desproporcional, as relações laborais. Embora as consequências ambientais do desenvolvimento predatório sejam amplamente reconhecidas, a sua conexão com as condições de trabalho, especialmente em atividades a céu aberto, ainda demanda maior atenção jurídica. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, estabelece o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, um princípio que se irradia por todo o ordenamento e impõe ao Estado e à sociedade o dever de garantir condições laborais seguras e dignas, alinhadas aos princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho (art. 1º, III e IV, da CF/88).
Apesar do arcabouço normativo internacional e nacional, com instrumentos da ONU e da OIT e as Normas Regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho, como a NR nº 01, persiste uma lacuna na proteção efetiva dos trabalhadores mais vulneráveis. O foco deste estudo é, justamente, a crítica à exclusão das atividades a céu aberto do rol de insalubridade da NR nº 15, uma decisão que ignora o agravamento da exposição ao calor e outros agentes insalubres em um cenário de temperaturas recordes. Esta análise vai além, ao evidenciar que a vulnerabilidade climática no trabalho está intrinsecamente ligada a uma forma de racismo ambiental, na qual grupos sociais marginalizados são os mais afetados.
Ademais, o artigo debate a incompatibilidade da remuneração por produção com as condições extremas de trabalho, citando a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que, por meio da Orientação Jurisprudencial (OJ) da SDI-1 nº 235, reforçou a proteção ao trabalhador rural, mitigando os riscos de exaustão e reconhecendo o direito a horas extras. Este trabalho, portanto, busca demonstrar que o Direito do Trabalho deve ser reavaliado à luz das novas urgências climáticas, garantindo que a sustentabilidade não seja apenas ambiental, mas também social, e que a proteção do trabalhador, em especial o mais vulnerável, seja uma prioridade inegociável.
1.1. A Urgência da Interconexão: Mudanças Climáticas e Relações Laborais.
A interconexão entre mudanças climáticas e Direito do Trabalho, embora latente há décadas, emerge hoje com uma urgência sem precedentes. A intensificação dos fenômenos climáticos extremos, como ondas de calor prolongadas, secas severas e inundações catastróficas, tem reconfigurado não apenas o meio ambiente, mas também as dinâmicas sociais e econômicas que moldam as relações laborais. Se antes o debate ambiental era frequentemente dissociado das questões trabalhistas, o cenário atual exige uma fusão dessas pautas, reconhecendo que a degradação ambiental se traduz diretamente em riscos e vulnerabilidades para a força de trabalho global.
O conceito de "desenvolvimento predatório" mencionado no resumo do artigo reflete uma lógica econômica que priorizou o crescimento a qualquer custo, ignorando os limites planetários e as externalidades sociais. Exemplo disso são os discursos de grandes líderes mundiais apontando a questão do aquecimento global como algo criado por cientistas que não traduzem a realidade, como se fosse algo falacioso/cético.
Esse modelo resultou não apenas na crise climática atual, mas também na criação de condições de trabalho precárias, especialmente para aqueles que se encontram na base da pirâmide social. A conexão entre a devastação ambiental e as condições de trabalho se manifesta, por exemplo, na exposição a poluentes, na perda de terras férteis que impulsiona migrações forçadas e, de forma central para este estudo, na exposição a temperaturas extremas.
O Direito do Trabalho, em sua essência, busca proteger a parte mais vulnerável da relação de emprego. Contudo, essa proteção tradicionalmente se concentrou em riscos "clássicos" do ambiente de trabalho – como acidentes com máquinas, exposição a produtos químicos ou jornadas exaustivas em ambientes fechados. O aquecimento global introduz uma nova dimensão de risco, uma "ameaça invisível" que se manifesta de forma difusa e sistêmica. Para muitos trabalhadores, especialmente aqueles que dependem de atividades a céu aberto, o clima se tornou um agente insalubre persistente e cada vez mais intenso, desafiando a capacidade das normas atuais de proteger efetivamente sua saúde e dignidade.
É nesse contexto que o artigo busca aprofundar a discussão sobre a necessidade de uma reavaliação do Direito do Trabalho, não apenas como um conjunto de normas reativas, mas como um arcabouço proativo, capaz de antecipar e mitigar os impactos das mudanças climáticas sobre a força de trabalho. Esta abordagem é imperativa para garantir que o compromisso constitucional com um meio ambiente ecologicamente equilibrado (Art. 225, CF/88) se harmonize com os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho (Art. 1º, III e IV, CF/88), assegurando que a transição para uma economia mais sustentável seja justa e equitativa para todos os trabalhadores.
1.2. O Problema da Lacuna Normativa e a Vulnerabilidade Acentuada
Apesar da existência de um robusto arcabouço normativo, tanto em nível internacional quanto nacional, uma "lacuna na proteção efetiva" persiste, evidenciando a inadequação das ferramentas legais atuais frente aos desafios impostos pelo aquecimento global. A crítica central deste estudo recai sobre a exclusão das atividades a céu aberto do rol de insalubridade da Norma Regulamentadora nº 15 (NR-15). Essa exclusão é particularmente problemática porque ignora a realidade física e biológica do trabalho sob o sol, onde a exposição a temperaturas elevadas, radiação solar e desidratação representa um risco concreto e crescente à saúde dos trabalhadores.
O aquecimento global não é uma projeção distante. É uma realidade vivida por milhões de trabalhadores diariamente. A elevação das temperaturas médias, a frequência de ondas de calor e a alteração dos padrões climáticos transformam o ambiente externo em um local de trabalho potencialmente perigoso. Para categorias como cortadores de cana, trabalhadores da construção civil, catadores de materiais recicláveis e outros profissionais que atuam sob o sol, o calor excessivo não é apenas um desconforto, mas um fator que pode levar à exaustão, desidratação, insolação, doenças renais e cardiovasculares, e, em casos extremos, até à morte. A decisão de suprimir o adicional de insalubridade para essas atividades, portanto, não apenas desconsidera uma condição de risco óbvia, mas também desvaloriza a saúde e a vida desses trabalhadores.
A discussão sobre a NR-15 é emblemática da necessidade de adaptação do Direito do Trabalho aos novos paradigmas ambientais. A norma, embora fundamental para a segurança e saúde no trabalho, foi concebida em um contexto diferente, onde a magnitude do impacto climático ainda não era plenamente compreendida. A sua revisão, neste ponto, não seria apenas uma atualização técnica, mas um reconhecimento de que os "agentes insalubres" devem incluir os riscos decorrentes das alterações climáticas.
Além disso, destaca-se uma dimensão crucial da vulnerabilidade climática no trabalho: o racismo ambiental. Esta é uma faceta da injustiça social onde grupos marginalizados, frequentemente compostos por pessoas negras, indígenas, de baixa renda e com menor grau de instrução, são desproporcionalmente expostos aos impactos ambientais negativos, incluindo os riscos climáticos no ambiente de trabalho. Essas populações, muitas vezes sem outras opções de subsistência, são empurradas para ocupações mais expostas e precárias, perpetuando um ciclo de vulnerabilidade e desigualdade. A discussão do racismo ambiental no contexto das relações laborais sob o impacto do aquecimento global revela a complexidade da justiça social e ambiental, exigindo uma abordagem jurídica que não apenas reconheça, mas combata essas estruturas de opressão.
Por fim, a questão da remuneração por produção, como demonstrado pela Orientação Jurisprudencial (OJ) da SDI-1 nº 235 do TST para os cortadores de cana, ressalta como as práticas de trabalho e os modelos de remuneração podem exacerbar os riscos climáticos. A pressão para produzir mais para garantir um sustento adequado leva os trabalhadores a excederem seus limites físicos, especialmente em condições de calor extremo, comprometendo gravemente sua saúde. A intervenção jurisprudencial, ao reconhecer o direito a horas extras, aponta um caminho para mitigar esses riscos e reafirmar os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho, mesmo diante da resistência de modelos produtivos que priorizam a lucratividade em detrimento do bem-estar humano.
Este trabalho, portanto, se propõe a aprofundar essas questões, argumentando que o Direito do Trabalho deve evoluir para se tornar um "Direito Climático do Trabalho", onde a sustentabilidade não seja apenas uma pauta ambiental, mas uma diretriz transversal que permeie todas as dimensões da proteção laboral e social.
2. O Impacto Climático e a Proteção do Trabalhador
As consequências do aquecimento global já são sentidas em nosso cotidiano. Praias perdem grandes extensões de areia, geleiras derretem em ritmo acelerado e as temperaturas nos desertos superam a marca de 50ºC. As causas para esse desequilíbrio ambiental estão diretamente ligadas a um desenvolvimento predatório que ignora a sustentabilidade.
A Constituição Federal (CF/88) garante o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as gerações atuais e futuras, atribuindo essa responsabilidade tanto ao Estado quanto à sociedade (art. 225, caput, da CF/88). A legislação também define a função social das empresas como um dever de desenvolvimento sustentável e preservação ambiental. Esse princípio visa resguardar a dignidade da pessoa humana, conforme os artigos 1º, III; 6º; 170, III e VI; e 186, II e IV da CF/88.
A preocupação com as condições climáticas não é recente. A Organização das Nações Unidas (ONU), desde 1972, discute o problema com seus Estados-membros, estabelecendo normas e princípios. A Declaração de Estocolmo (1972) e a Declaração do Rio-92 (1992) são exemplos de marcos normativos nesse debate. Atualmente, a Agenda 2030 estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com destaque para os ODS 3, 4, 8, 12, 13 e 17, que tratam diretamente da proteção climática.
No âmbito do trabalho, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) também manifestou sua preocupação com atividades de risco ambiental. A OIT elaborou diversos diplomas internacionais com normas de proteção para governos, empregadores e empregados. Algumas das convenções mais relevantes incluem a 136, 139, 148, 155, 161, 167, 170, 174, 176, 184 e 187, além das recomendações 114, 118, 144 e 147.
Em relação ao dever de proteção ambiental das empresas, o Princípio 22 dos Princípios de Ruggie estabelece a obrigação de reparar danos causados. Similarmente, a Declaração Tripartida de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social aponta, no item 37 e seguintes, que empresas multinacionais devem garantir o mais alto nível de segurança e saúde, considerando sua experiência e riscos especiais.
2.1. O Aquecimento Global e Seus Impactos Concretos no Brasil e no Mundo
A seção "O Impacto Climático e a Proteção do Trabalhador" já introduz a realidade do aquecimento global, mas para expandir, é crucial aprofundar os dados e projeções científicas que corroboram essa afirmação, especialmente no contexto brasileiro e global, e como eles se traduzem em riscos diretos para o ambiente de trabalho.
O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), por exemplo, demonstra com clareza o aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos. No Brasil, essas projeções incluem:
a) Aumento de Ondas de Calor: Regiões como o Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste do Brasil já experimentam um número crescente de dias com temperaturas acima da média histórica. Isso afeta diretamente trabalhadores rurais, da construção civil e urbanos expostos, como entregadores e coletores de lixo.
b) Secas e Escassez Hídrica: A redução na disponibilidade de água afeta a agricultura, a geração de energia e a saúde pública, com impactos indiretos e diretos nos trabalhadores. A perda de safras, por exemplo, pode levar ao desemprego e à migração.
c) Eventos Extremos de Chuva: Enquanto algumas regiões sofrem com a seca, outras são atingidas por chuvas torrenciais, causando inundações e deslizamentos de terra. Esses eventos não apenas destroem infraestruturas, mas também impedem o acesso ao trabalho, colocam em risco a vida dos trabalhadores e criam novas demandas por trabalho de recuperação em condições perigosas.
Esses fenômenos não são apenas questões ambientais abstratas, eles representam riscos ocupacionais concretos e iminentes. A exposição ao calor excessivo, por exemplo, não causa apenas desconforto, mas uma série de problemas de saúde, como insolação, exaustão térmica, desidratação, e pode agravar condições cardiovasculares e renais preexistentes. Estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) têm demonstrado que a elevação das temperaturas médias globais leva à perda de bilhões de horas de trabalho anualmente, especialmente em setores como agricultura e construção, onde a produtividade diminui significativamente em condições de calor extremo.
Além da saúde física, o calor excessivo e o estresse térmico afetam a capacidade cognitiva, a concentração e o humor dos trabalhadores, aumentando o risco de acidentes e erros no trabalho. Há, portanto, uma relação direta entre a crise climática e a segurança e saúde ocupacional.
2.2. A Proteção Constitucional e a Função Social da Propriedade no Contexto Climático
A Constituição Federal de 1988 é o pilar da proteção ambiental e social no Brasil. O artigo 225, ao assegurar o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, eleva essa pauta à categoria de direito fundamental de terceira dimensão, essencial para a qualidade de vida das presentes e futuras gerações. Essa prerrogativa constitucional não se restringe à proteção da fauna, flora ou da qualidade do ar e da água. Ela se estende a todas as esferas da vida, incluindo o ambiente de trabalho. Um ambiente de trabalho degradado pelas intempéries climáticas é, intrinsecamente, um ambiente desequilibrado.
Conectada a essa visão ambientalista, a CF/88 também consagra a função social da propriedade (artigos 5º, XXIII, e 170, III), estendendo-a à função social da empresa. Este princípio implica que a atividade econômica e a propriedade não devem servir apenas aos interesses individuais ou lucrativos, mas também aos interesses coletivos e sociais. No contexto das mudanças climáticas, isso significa que as empresas têm o dever não apenas de mitigar seus próprios impactos ambientais, mas também de proteger seus trabalhadores dos efeitos do aquecimento global.
Os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da valorização social do trabalho (art. 1º, IV) são os fundamentos da República Federativa do Brasil e, como tal, irradiam seus efeitos por todo o ordenamento jurídico, incluindo as relações de trabalho. Em um cenário de crise climática, esses princípios ganham uma nova camada de significado: a dignidade do trabalhador é violada quando ele é obrigado a laborar em condições de risco extremo devido a temperaturas insuportáveis, sem proteção adequada. A valorização social do trabalho exige que o ambiente de trabalho seja seguro e saudável, independentemente dos desafios climáticos.
A intersecção desses artigos constitucionais forma a base para argumentar que o Estado e, por extensão, as empresas têm um dever inalienável de adaptar as condições de trabalho para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas. Não se trata apenas de cumprir uma legislação pontual, mas de honrar os fundamentos mais profundos do pacto social brasileiro.
2.3. O Papel das Organizações Internacionais: ONU e OIT na Proteção Climática do Trabalhador
A preocupação com as condições climáticas e seus reflexos no trabalho é, como bem apontado pelo artigo, um tema de longa data no cenário internacional. A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) têm sido vozes proeminentes nesse debate, produzindo uma vasta gama de instrumentos normativos e diretrizes.
2.3.1. A ONU e a Agenda Climática Global
A atuação da ONU no campo ambiental remonta à Declaração de Estocolmo (1972), que já reconhecia a interdependência entre o homem e o meio ambiente e a responsabilidade coletiva pela sua proteção. Posteriormente, a Declaração do Rio-92 (1992) consolidou o conceito de desenvolvimento sustentável, enfatizando a necessidade de conciliar desenvolvimento econômico, proteção ambiental e equidade social. Embora não focadas diretamente no trabalho, essas declarações lançaram as bases para a compreensão de que a saúde humana, incluindo a do trabalhador, está intrinsecamente ligada à saúde do planeta.
Mais recentemente, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), oferece um mapa claro para a integração das pautas ambiental e trabalhista. Destacam-se aqui os seguintes ODS e suas conexões com a temática do artigo:
a) ODS 3 (Saúde e Bem-Estar): Busca assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos em todas as idades, o que é diretamente impactado pelas condições climáticas no ambiente de trabalho.
b) ODS 4 (Educação de Qualidade): Relaciona-se indiretamente ao empoderamento dos trabalhadores e à sua capacidade de defender seus direitos em face de riscos ambientais.
c) ODS 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico): Propõe promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos. Este é um dos pilares mais relevantes, pois o "trabalho decente" deve incluir condições seguras e saudáveis, livres dos riscos agravados pelo clima. A meta 8.8, por exemplo, visa "proteger os direitos do trabalho e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores".
d) ODS 12 (Consumo e Produção Responsáveis): Promove o consumo e a produção sustentáveis, o que implica em cadeias de valor que não precarizem o trabalho nem degradem o meio ambiente, mitigando as causas do aquecimento global.
e) ODS 13 (Ação Contra a Mudança Global do Clima): Propõe medidas urgentes para combater as mudanças climáticas e seus impactos. Este ODS é a espinha dorsal da necessidade de adaptação em todos os setores, incluindo o laboral.
f) ODS 17 (Parcerias e Meios de Implementação): Enfatiza a importância da colaboração entre governos, setor privado e sociedade civil, essencial para enfrentar os desafios complexos que o clima impõe ao mundo do trabalho.
A Agenda 2030, portanto, não é apenas um guia ambiental, mas um conjunto integrado que reconhece a inseparabilidade entre bem-estar social, econômico e ambiental, fornecendo uma base sólida para a construção de um Direito do Trabalho mais resiliente e sensível ao clima.
2.3.2. A OIT e a Segurança e Saúde no Trabalho em Face dos Riscos Ambientais
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), como fórum tripartite que reúne governos, empregadores e trabalhadores, tem se debruçado sobre a relação entre meio ambiente e condições de trabalho de forma mais direta. Seus diplomas internacionais, sob a forma de convenções e recomendações, fornecem um vasto arsenal normativo para a proteção do trabalhador contra riscos ambientais.
Entre as convenções mais relevantes para a discussão do impacto climático, destacam-se:
a) Convenção nº 155 (Segurança e Saúde dos Trabalhadores, 1981): Esta convenção é um marco, pois estabelece uma política nacional coerente sobre segurança e saúde no trabalho, que deve ser aplicada a todos os ramos de atividade econômica. Em seu artigo 4º, exige que a política nacional "levará em conta as principais esferas de atividade em que os riscos são mais elevados". Com o avanço das mudanças climáticas, os riscos associados ao calor extremo e fenômenos meteorológicos se tornam "os mais elevados" em muitas atividades. Ademais, é considerada como Convenção Fundamental, devendo ser respeitada por todos os Estados-membros, independente de ratificação.
b) Convenção nº 148 (Proteção dos Trabalhadores Contra os Riscos Profissionais Devidos à Contaminação do Ar, ao Ruído e às Vibrações no Meio Ambiente de Trabalho, 1977): Embora focada em agentes específicos, a abordagem de proteção contra "contaminação do ar" pode ser estendida para incluir riscos atmosféricos decorrentes de condições climáticas extremas.
c) Convenção nº 136 (Proteção Contra Riscos de Intoxicação Provocados pelo Benzeno, 1971) e nº 170 (Produtos Químicos, 1990): Embora tratem de substâncias, mostram a preocupação da OIT com a exposição a agentes nocivos, uma lógica que deve ser transposta para agentes físicos como o calor.
d) Convenção nº 161 (Serviços de Saúde no Trabalho, 1985): Exige o estabelecimento de serviços de saúde ocupacional que identifiquem e avaliem riscos, incluindo aqueles novos ou agravados pelas condições ambientais.
As recomendações da OIT, como a Recomendação nº 114 (Proteção dos Trabalhadores Contra as Radiações, 1960), a nº 118 (Proteção Contra os Riscos Profissionais na Utilização de Benzol, 1963), a nº 144 (Proteção Contra os Riscos Profissionais Devidos à Contaminação do Ar, ao Ruído e às Vibrações no Meio Ambiente de Trabalho, 1977) e a nº 147 (Sobre as Instalações e o Meio Ambiente nos Portos, 1977), complementam as convenções, oferecendo orientações mais detalhadas para a implementação de medidas de proteção.
A OIT também tem abordado as "transições justas" para economias verdes, reconhecendo que a descarbonização não pode abandonar trabalhadores. Esse conceito de transição justa é fundamental para o "Direito do Trabalho sob o Sol", pois sugere que as adaptações climáticas no mundo do trabalho devem ser planejadas e implementadas de forma a garantir a segurança, a saúde e a subsistência dos trabalhadores. Em 2017, a OIT adotou as "Diretrizes sobre Trabalho Decente para as Transições Justas para Economias e Sociedades Ambientalmente Sustentáveis para Todos", que explicitamente reconhecem a necessidade de proteger os trabalhadores dos impactos climáticos.
2.3.3. Os Princípios de Ruggie e a Responsabilidade Empresarial
Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU (Princípios de Ruggie), endossados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2011, estabelecem um marco de "proteger, respeitar e remediar". O Princípio 22, ao determinar a obrigação das empresas de reparar danos causados ou contribuídos por suas atividades, é diretamente aplicável aos impactos das mudanças climáticas no trabalho. Se uma empresa, por sua operação, contribui para o aquecimento global, ela também tem a responsabilidade de mitigar os riscos que esse fenômeno impõe aos seus trabalhadores.
Complementarmente, a Declaração Tripartida de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social da OIT (revisada em 2017) reforça essa perspectiva. No item 37 e seguintes, ela enfatiza que as empresas multinacionais devem assegurar os mais altos níveis de segurança e saúde ocupacional, utilizando sua experiência e recursos para identificar e mitigar riscos, incluindo os ambientais. Isso significa que as empresas não podem se eximir da responsabilidade de proteger seus funcionários contra o calor excessivo ou outros efeitos climáticos adversos, independentemente de onde operam.
Em conjunto, a atuação da ONU e da OIT oferece uma sólida fundamentação para a defesa de um Direito do Trabalho que internalize os desafios climáticos, exigindo ações concretas de governos e empresas para proteger a vida e a saúde dos trabalhadores.
3. Proteção do Trabalhador e o Racismo Ambiental
Embora não haja uma norma brasileira específica sobre a atenção dos empregadores às mudanças climáticas, é possível aplicar as Normas Regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho. A NR nº 01, por exemplo, determina que os perigos externos sejam considerados na elaboração do Programa de Gerenciamento de Risco (PGR).
Um ponto crítico é a supressão das atividades a céu aberto do rol de insalubridade da NR nº 15. Mesmo sem o adicional de insalubridade, a proteção do empregado exposto ao sol continua sendo dever do empregador, por força da própria NR nº 15 e da NR nº 09. A decisão de suprimir o pagamento é controversa, pois a incidência dos agentes insalubres não diminuiu. Pelo contrário, com as temperaturas elevadas, a exposição à luz solar tornou-se ainda mais prejudicial à saúde do trabalhador, justificando o pagamento do adicional de insalubridade em grau mais elevado, conforme a teoria dos adicionais.
Em razão dos riscos, as atividades a céu aberto não são disputadas por grande parte da sociedade. Exigindo mais esforço físico do que intelectual. Com baixos salários, elas são frequentemente desempenhadas por pessoas em situação de vulnerabilidade, como cortadores de cana, catadores de material reciclável e trabalhadores rurais. Em sua maioria, são pessoas pobres, negras, com baixo grau de instrução, que não escolheram essas ocupações, mas sim foram empurradas para elas pela falta de outras opções para sustentar a si e suas famílias. Essa realidade evidencia o racismo ambiental existente.
A remuneração por produção, embora prevista no artigo 78 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), agrava o problema. Em condições de intenso calor, o desgaste do trabalhador é muito maior. Sentindo-se obrigado a trabalhar exaustivamente para alcançar o salário mínimo, o trabalhador compromete sua saúde. No caso dos cortadores de cana, a remuneração por produção gerava um desgaste físico tão grande que, em muitos casos, resultava em longas jornadas e, até mesmo, em óbito por exaustão.
Com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho (art. 1º, III e IV da CF/88), a remuneração por produção para os cortadores de cana foi mitigada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), garantindo-lhes condições de trabalho mais justas e seguras. Na forma da OJ-SDI1-235, o TST reconheceu que os cortadores de cana têm direito ao pagamento das horas extras e do respectivo adicional, em caso de trabalho sobrejornada.
3.1. As Normas Regulamentadoras (NRs) e a Interpretação dos Riscos Climáticos
O ordenamento jurídico brasileiro possui instrumentos que, por uma interpretação teleológica e sistemática, podem e devem ser aplicados para proteger os trabalhadores dos impactos do aquecimento global. As Normas Regulamentadoras (NRs), editadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, são ferramentas essenciais nesse sentido.
A NR nº 01 (Disposições Gerais), por exemplo, estabelece as diretrizes para o Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO) e para o Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR). Um ponto crucial desta norma é a obrigatoriedade de se considerar os "perigos externos" na elaboração do PGR. É inegável que os fenômenos climáticos extremos, como ondas de calor e radiação solar intensa, configuram perigos externos que impactam diretamente a saúde e a segurança dos trabalhadores. A interpretação desses "perigos externos" deve, portanto, incluir os riscos decorrentes das mudanças climáticas, exigindo que os empregadores avaliem, monitorem e implementem medidas de controle para mitigar a exposição dos trabalhadores a esses fatores.
Além disso, a NR nº 09 (Avaliação e Controle das Exposições Ocupacionais a Agentes Físicos, Químicos e Biológicos), embora voltada para agentes específicos, oferece uma estrutura metodológica para a avaliação de riscos. No caso do calor, por exemplo, a norma já prevê critérios para a avaliação da exposição a temperaturas elevadas em ambientes fechados. Por analogia, ou por uma expansão interpretativa, esses métodos podem ser adaptados para avaliar o estresse térmico em atividades a céu aberto, considerando a radiação solar direta e outros fatores climáticos. A sua aplicação deve ir além do reconhecimento de insalubridade, englobando a prevenção e o controle de exposições.
O ponto mais controverso, e que o artigo bem destaca, é a NR nº 15 (Atividades e Operações Insalubres), que lista os agentes insalubres e os respectivos limites de tolerância para a caracterização do direito ao adicional de insalubridade. Historicamente, a Portaria nº 3.214/78, que aprovou a NR-15, previa em seu Anexo III que as atividades ou operações realizadas ao ar livre seriam consideradas insalubres se "caracterizadas pela exposição a calor excessivo". Contudo, essa previsão foi alterada posteriormente pela Portaria SEPT nº 1.359/2019, do extinto Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), que excluiu, de forma expressa, as atividades a céu aberto expostas unicamente a fontes naturais de calor, ou seja, o sol. Segundo essa modificação, somente as exposições provenientes de fontes artificiais de calor ou combinações específicas entre calor artificial e natural passaram a ser consideradas para fins de caracterização de insalubridade.
Essa exclusão desconsidera as condições extremas enfrentadas por trabalhadores em atividades a céu aberto, como no setor agrícola, na construção civil e em ocupações semelhantes, negligenciando riscos evidentes à saúde, como exaustão térmica, desidratação e outros agravos diretamente relacionados à exposição prolongada ao calor natural. Em tempos de mudanças climáticas e aumento global das temperaturas, a restrição normativa reforça a necessidade de uma revisão legislativa urgente, que leve em conta as condições reais de trabalho e assegure maior proteção a categorias laborais expostas a agentes naturais que impactam diretamente sua saúde e segurança.
Essa "supressão" é ainda mais problemática no atual contexto do aquecimento global. A incidência de agentes insalubres, especialmente o calor e a radiação solar ultravioleta, não diminuiu. Pelo contrário, aumentou. Argumentar que a exposição natural não gera insalubridade desconsidera que a "natureza" em si está sendo alterada por ações humanas, tornando-se um ambiente mais hostil.
A teoria dos adicionais preceitua que esses pagamentos visam compensar o trabalhador por condições de trabalho adversas à sua saúde. Assim, se o calor natural se tornou um agente mais agressivo e prejudicial em virtude das mudanças climáticas, ele deveria, sob essa teoria, justificar o pagamento do adicional em grau adequado. Nesse sentido, a lacuna existente na NR-15 representa um atraso significativo na adaptação do Direito às novas realidades científicas e sociais, exigindo uma reavaliação urgente para garantir a proteção de trabalhadores particularmente vulneráveis a essas condições.
3.2. A Tragédia do Racismo Ambiental no Cenário Laboral
O conceito de racismo ambiental, fundamental para a compreensão da vulnerabilidade climática no trabalho, transcende a mera desigualdade socioeconômica. Ele se refere à forma como as políticas, práticas e decisões institucionais resultam em desigualdades na exposição a riscos e impactos ambientais negativos, afetando desproporcionalmente grupos raciais e étnicos minoritários ou marginalizados. No Brasil, essa realidade se manifesta de forma gritante no mundo do trabalho, onde as ocupações mais prejudicadas pelo calor extremo e outros riscos ambientais são frequentemente desempenhadas por populações vulneráveis.
3.2.1. Definição e Manifestação do Racismo Ambiental no Brasil
O racismo ambiental, cunhado nos Estados Unidos, tem paralelos alarmantes na realidade brasileira. Ele não é apenas a concentração de poluentes e degradação ambiental em territórios de populações marginalizadas, mas também a negação do acesso a recursos e a qualidade ambiental. No contexto laboral, isso significa que:
a) Distribuição Desigual de Riscos: As atividades mais expostas a riscos climáticos, como as mencionadas no artigo (cortadores de cana, catadores de material reciclável, trabalhadores da construção civil, trabalhadoras domésticas que atuam em áreas externas, e trabalhadores rurais em geral), são predominantemente ocupadas por pessoas negras, pardas e indígenas. Esses grupos, historicamente marginalizados, têm menos acesso à educação formal e a outras oportunidades de emprego, sendo compelidos a aceitar trabalhos precários e perigosos.
b) Vulnerabilidade Socioeconômica: A pobreza e a falta de escolaridade não são apenas fatores isolados, mas consequências de um sistema social que perpetua desigualdades raciais. Essa vulnerabilidade torna esses trabalhadores menos capazes de exigir melhores condições, de ter acesso a informações sobre riscos ou de buscar alternativas de emprego. A falta de voz política e representatividade também contribui para que suas demandas por proteção sejam ignoradas.
c) Ausência de Escolha: Esses trabalhadores não escolheram essas ocupações, mas sim foram empurradas para elas pela falta de outras opções para sustentar a si e suas famílias. Essa ausência de agência reforça a dimensão coercitiva do racismo ambiental, onde a estrutura social e econômica restringe as escolhas de subsistência a trabalhos de alto risco ambiental.
3.2.2. O Aprofundamento da Injustiça Climática
As mudanças climáticas não criam desigualdades do zero. Elas acentuam e aprofundam as injustiças sociais e raciais existentes. A elevação das temperaturas globais torna as condições de trabalho a céu aberto ainda mais insustentáveis, e são justamente as populações já vulneráveis que suportam o ônus maior. Este fenômeno é conhecido como injustiça climática, que evidencia como os impactos do clima recaem de forma desproporcional sobre aqueles que menos contribuíram para a crise e que possuem menos recursos para se adaptar.
A exposição crônica ao calor afeta a saúde de forma cumulativa, resultando em maior incidência de doenças renais, cardiovasculares e respiratórias em populações trabalhadoras já precarizadas. Acesso limitado a serviços de saúde de qualidade agrava ainda mais essa situação.
A diminuição da produtividade em dias de calor extremo leva à redução dos salários para trabalhadores remunerados por produção, criando um ciclo vicioso de pobreza e exposição. Muitas vezes, esses trabalhadores não têm acesso a equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados, água potável, pausas para descanso em locais sombreados ou seguro contra acidentes de trabalho, o que amplifica os riscos.
A compreensão do racismo ambiental no contexto laboral é essencial para a elaboração de políticas públicas e decisões jurídicas mais equitativas. Não basta apenas reconhecer a insalubridade, sendo preciso atuar nas raízes estruturais que levam certas populações a serem as mais expostas e menos protegidas. Isso exige uma abordagem multidisciplinar que envolva políticas de educação, saúde, moradia, trabalho e meio ambiente, sempre com uma lente antirracista.
3.3. A Remuneração por Produção e o Tribunal Superior do Trabalho: Um Precedente Essencial
A discussão sobre a remuneração por produção, especificamente no contexto de atividades que exigem grande esforço físico em condições climáticas adversas, é um ponto crucial do artigo. O Artigo 78 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê a remuneração por produção, mas essa modalidade, quando mal aplicada, pode se tornar um instrumento de exploração e de grave risco à saúde do trabalhador, especialmente em atividades a céu aberto.
3.3.1. A Pressão por Produtividade x Saúde do Trabalhador
A remuneração por produção, ao vincular o ganho do trabalhador diretamente à sua produção, cria uma pressão intrínseca para que ele trabalhe o máximo possível, muitas vezes ignorando seus próprios limites físicos. Em condições de calor intenso, o corpo humano sofre um estresse térmico significativo, exigindo pausas mais frequentes e hidratação constante. No entanto, a lógica da produção incentiva a supressão dessas pausas, levando à exaustão e à desidratação severa.
O exemplo dos cortadores de cana é emblemático. Historicamente, esses trabalhadores, predominantemente pobres e negros, eram submetidos a jornadas exaustivas sob o sol forte, visando atingir metas de corte que garantissem um salário mínimo. O resultado era um alarmante número de casos de mal súbito, acidentes de trabalho e até mortes por exaustão, configurando uma violação flagrante da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. A prática da queima da cana, além de contribuir para a poluição do ar, agravava as condições, elevando ainda mais a temperatura ambiente.
3.3.2. A Orientação Jurisprudencial (OJ) 235 da SDI-1 do TST: Um Marco Protetivo
Diante dessa realidade dramática, a jurisprudência, em especial a do Tribunal Superior do Trabalho (TST), teve um papel fundamental em mitigar os efeitos perversos da remuneração por produção. A Orientação Jurisprudencial (OJ) nº 235 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do TST representa um marco significativo nessa proteção.
A OJ 235 estabelece que "o trabalhador rural que exerce suas atividades em regime de produção por tarefa, em condições climáticas adversas, tem direito ao pagamento de horas extras e do respectivo adicional, em caso de trabalho sobrejornada". Embora não se trate de uma proibição da remuneração por produção, a norma impõe um limite a ela, ao garantir que a jornada de trabalho, mesmo para quem produz, não pode exceder os limites legais sem a devida compensação.
A decisão do TST é um reflexo direto da aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88) e da valorização social do trabalho (art. 1º, IV da CF/88). Ao reconhecer o direito a horas extras, o Tribunal reafirmou que o corpo e a saúde do trabalhador não podem ser meras ferramentas de produção. A OJ 235 sinaliza que, mesmo em um sistema de remuneração variável, a proteção à vida e à integridade física do empregado deve prevalecer sobre os interesses econômicos do empregador.
Repercussão da OJ 235 no mundo do trabalho:
a) Limitação da Autonomia da Vontade: Demonstra que a autonomia da vontade das partes (empregado e empregador) na definição das condições de trabalho encontra limites nos direitos fundamentais.
b) Prevenção da Exaustão: Ao exigir o pagamento de horas extras, a OJ desincentiva a exploração do trabalhador além dos limites de sua capacidade física, agindo como um mecanismo de prevenção contra a exaustão e os riscos à saúde.
c) Reconhecimento da Condição Humana: Em essência, a decisão do TST representa um reconhecimento de que o trabalhador não é uma máquina e que seu esforço físico em condições adversas deve ser adequadamente compensado e limitado.
A OJ 235 serve como um importante precedente, demonstrando que a jurisdição trabalhista pode e deve intervir para proteger os trabalhadores frente a práticas que, embora aparentemente legais, se tornam abusivas e prejudiciais em contextos de vulnerabilidade climática e social. Ela abre caminho para que outros casos de exposição ao calor excessivo em atividades a céu aberto, sob remuneração por produção, recebam proteção similar, reforçando a necessidade de um "Direito Climático do Trabalho" que seja proativo e protetivo.
4. Conclusão
A análise apresentada neste artigo evidenciou a urgência de integrar as questões climáticas no âmbito do Direito do Trabalho. O aquecimento global não é apenas um problema ambiental, mas uma ameaça direta à saúde, segurança e dignidade dos trabalhadores, especialmente daqueles que já se encontram em situação de vulnerabilidade. A exposição ao sol e às altas temperaturas, agravada pelas mudanças climáticas, torna-se um fator de insalubridade que o ordenamento jurídico não pode continuar a ignorar. A manutenção da exclusão das atividades a céu aberto do rol da NR nº 15 é uma incongruência que precisa ser corrigida, sob pena de violar o princípio da dignidade da pessoa humana e a própria essência da legislação trabalhista.
O racismo ambiental, revelado pela realidade de que as ocupações mais prejudicadas pelo calor extremo são desempenhadas majoritariamente por grupos sociais vulneráveis, reforça a necessidade de uma atuação jurídica e social mais robusta. O Direito do Trabalho deve ser um instrumento de combate a essas desigualdades estruturais, garantindo que os riscos ambientais não recaiam desproporcionalmente sobre os mais pobres e marginalizados. A decisão do TST, que mitigou os efeitos da remuneração por produção para os cortadores de cana (OJ-SDI1-235), serve como um importante precedente, demonstrando que a jurisdição pode e deve intervir para proteger a vida e a saúde do trabalhador frente a práticas exaustivas.
Em suma, o Direito do Trabalho do futuro deve ser, necessariamente, um direito climático do trabalho. A proteção ambiental e a proteção laboral são faces da mesma moeda, inseparáveis na busca por um desenvolvimento verdadeiramente sustentável. É imperativo que a legislação, a jurisprudência e a atuação de órgãos de controle reconheçam a grave interconexão entre o clima e as condições de trabalho, agindo de forma proativa para garantir que o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado se traduza em um direito a um ambiente de trabalho seguro, saudável e justo para todos.
4.1. Recalibrando a Proteção Laboral em Tempos de Crise Climática
A conclusão reafirma a tese central do artigo, mas para expandi-la e oferecer um desfecho mais robusto, é essencial detalhar o porquê da urgência e quais seriam os caminhos para "recalibrar" a proteção laboral. A "incongruência" na NR nº 15, que exclui as atividades a céu aberto da insalubridade, não é apenas um detalhe técnico, mas uma falha sistêmica que reflete a desatualização da legislação frente a uma realidade climática em constante mutação.
O cerne da questão reside na necessidade de o Direito do Trabalho transcender suas fronteiras tradicionais para abraçar a dimensão ambiental de forma integral. Isso implica em:
a) Atualização Normativa: A revisão da NR nº 15 é imperativa. Deve-se considerar a inclusão explícita do calor e da radiação solar como agentes insalubres em atividades a céu aberto, estabelecendo limites de tolerância e medidas de controle específicas. A formulação de novas NRs ou anexos dedicados aos riscos climáticos também seria um avanço significativo, abordando temas como pausas para descanso em locais climatizados, hidratação obrigatória, uso de vestimentas adequadas e regimes de trabalho flexíveis em dias de calor extremo.
b) Interpretação Dinâmica da Legislação: Mesmo na ausência de normas específicas, o judiciário e os órgãos de fiscalização devem adotar uma interpretação progressista das normas existentes, como a NR nº 01 e a NR nº 09, para cobrir os riscos climáticos. A consideração dos "perigos externos" na elaboração do Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) deve ser compreendida como um mandamento para incluir as projeções climáticas e os riscos associados ao aquecimento global.
c) Fortalecimento da Fiscalização: É crucial que os órgãos de fiscalização do trabalho, como as Superintendências Regionais do Trabalho (SRTEs) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), estejam capacitados e equipados para investigar e autuar empresas que não protegem seus trabalhadores dos riscos climáticos. Isso inclui o desenvolvimento de protocolos de avaliação de estresse térmico em campo e a aplicação de sanções eficazes.
A dignidade da pessoa humana e a valorização social do trabalho não são conceitos abstratos. Eles se materializam nas condições concretas em que o trabalho é realizado. Um trabalhador exausto e doente pelo calor excessivo é um exemplo vivo da violação desses princípios basilares. A proteção contra os impactos do aquecimento global, portanto, não é um luxo, mas uma exigência fundamental do nosso ordenamento jurídico.
4.2. O Combate ao Racismo Ambiental como Pilar do Direito Climático do Trabalho
A discussão sobre o racismo ambiental transcende a análise da insalubridade e da remuneração por produção, configurando-se como um pilar central para a construção de um Direito Climático do Trabalho justo e equitativo. Reconhecer que os riscos climáticos impactam desproporcionalmente populações já marginalizadas (em grande parte negras, indígenas e pobres), exige uma abordagem que vá além da neutralidade legal.
O Direito do Trabalho, ao combater o racismo ambiental, deve:
a) Identificar e Mapear Vulnerabilidades: Realizar estudos e diagnósticos que identifiquem as ocupações e regiões mais afetadas pelos riscos climáticos, correlacionando-os com dados socioeconômicos e raciais para evidenciar as injustiças ambientais.
b) Políticas Afirmativas de Proteção: Desenvolver políticas públicas e normas trabalhistas que priorizem a proteção e a promoção de condições de trabalho seguras para as populações historicamente expostas. Isso pode incluir programas de capacitação, acesso a equipamentos de proteção específicos e incentivos para a transição para ocupações menos expostas.
c) Reparação e Justiça Social: Considerar mecanismos de reparação para os danos à saúde e à vida causados pela exposição prolongada a riscos climáticos, especialmente em contextos de racismo ambiental. A jurisdição, como demonstrou o TST com a OJ-SDI1-235, tem um papel crucial na construção dessa justiça.
A luta contra o racismo ambiental no trabalho é uma luta pela justiça social e pela equidade. Significa garantir que a transição para uma economia mais verde e resiliente ao clima não crie desigualdades ou perpetue as existentes, mas, ao contrário, seja uma oportunidade para corrigir injustiças históricas.
4.3. O Futuro: Um Direito Climático do Trabalho Necessário e Proativo
O Direito do Trabalho do futuro deve ser, intrinsecamente, um direito climático do trabalho. Esta não é uma mera sugestão, mas uma necessidade premente ditada pela realidade planetária. A proteção ambiental e a proteção laboral são, de fato, faces da mesma moeda, e sua inseparabilidade é a chave para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
Para que essa visão se concretize, são necessárias ações proativas e coordenadas:
a) Pesquisa e Inovação: Investimento em pesquisa multidisciplinar que conecte as ciências climáticas, a medicina do trabalho, o direito e as ciências sociais para compreender melhor os impactos do clima no trabalho e desenvolver soluções eficazes.
b) Diálogo Social Ampliado: Um diálogo social robusto entre governos, empregadores, trabalhadores e organizações da sociedade civil é essencial para construir soluções e garantir que as políticas de adaptação sejam justas e implementáveis.
c) Educação e Conscientização: Aumentar a conscientização sobre os riscos climáticos no trabalho entre empregadores, trabalhadores e a população em geral, promovendo uma cultura de prevenção e adaptação.
d) Cooperação Internacional: O Brasil, como um país com grande diversidade climática e uma vasta população de trabalhadores vulneráveis, tem um papel fundamental a desempenhar na cooperação internacional, compartilhando experiências e aprendendo com as melhores práticas globais.
A decisão do TST na OJ-SDI1-235 é uma luz no fim do túnel. Ela demonstra que, mesmo em um cenário de lacunas normativas, a jurisdição pode e deve intervir para proteger a vida e a saúde do trabalhador, reafirmando os princípios fundamentais da justiça social. Este precedente, aliado a uma legislação atualizada e a uma fiscalização eficaz, pode pavimentar o caminho para um ambiente de trabalho onde o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado se traduza concretamente em um direito a um ambiente de trabalho seguro, saudável e justo para todos, sob qualquer sol.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Rio de Janeiro, 1943.
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BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Orientação Jurisprudencial nº 235 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais. Exclusividade, duração e extinção do contrato de trabalho. Brasília, DF: TST.
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RUGGIE, John. Princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos: implementando o marco proteger, respeitar e remediar das Nações Unidas. Nova York, 2011.
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Acre. Pós-graduado em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade Focus
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASAS, ANDRE DE OLIVEIRA. O Direito do Trabalho sob o Sol: Uma Análise do Impacto Climático nas Relações Laborais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 out 2025, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/69832/o-direito-do-trabalho-sob-o-sol-uma-anlise-do-impacto-climtico-nas-relaes-laborais. Acesso em: 15 out 2025.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: JONATHAN SOUSA MELO
Por: Vitor dos Reis Canedo
Por: Belkys Rodrigues Batista Andrade
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