O “casamento infantil”, mesmo com toda a evolução da sociedade e da luta incessante pelos direitos sociais de 2ª dimensão, ainda é permitido enquanto exceção no Brasil... Visto isso, publiquei um artigo na Revista Jus Navigandi cujo título é “A Lei nº 13.811/2019 revogou tacitamente o “casamento infantil” do artigo 1.551 do Código Civil?” Nele, discuto sobre essa “modalidade” (que nada tem de permitido, ressalta-se) de casamento, definido como matrimônio de menores de idade abaixo dos 16 anos. Tendo em vista toda a luta pelos direitos das crianças e dos adolescentes, o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e demais movimentos sociais que pugnam por essa causa, é lamentável que essa exceção seja permitida na contemporaneidade! Ela deveria ter sido revogada tacitamente após 2019! Contudo, a inércia do Congresso Nacional quanto à revogação do dispositivo legal é gritante! Por isso, escrevo esse breve artigo de opinião, expressando a minha visão (de um graduando em Direito) acerca do assunto.
Em um primeiro momento, é importante mencionar que a Lei 13.811/2019 alterou a redação do art. 1.520, do Código Civil vigente. O artigo ora em comento passou a ter a seguinte redação:
“Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código”.
Contudo, apesar da alteração do artigo supramencionado, o art. 1.551, do CC, permaneceu intalterado:
“Art. 1.551. Não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez.”
É evidente a antinomia entre as normas! A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu art. 2º, § 1º:
Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (Grifos do autor).
Nesse sentido, na esteira da melhor doutrina da Teoria geral do Direito, havendo antinomia entre uma norma anterior e uma norma posterior, esta prevalece. Nesse caso, há incompatibilidade entre os dois institutos ao regular o direito material. Dessa forma, deve(ria) haver uma ab-rogação tácita do art. 1.551, do CC, pela nova redação dada ao art. 1.520, do mesmo diploma legal!
Ademais, ressalta-se que o consentimento da vítima, menor de 14 anos, é irrelevante para afastar o crime de estupro de vulnerável, sendo totalmente contrário ao melhor interesse da criança e do adolescente. Sob esse viés, a Súmula 593 do STJ:
O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. (SÚMULA 593, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/10/2017, DJe 06/11/2017).
Sob essa ótica, o juízo do TJSP negou que uma menina de 15 anos de idade, grávida do noivo, se casasse com este. A argumentação do magistrado foi no seguinte sentido:
“Para o relator da apelação, desembargador Vito Guglielmi, apesar de a adolescente defender que a união atenderia ao melhor interesse da criança, “é certo que o melhor interesse da própria adolescente jamais recomendaria o casamento”. “A idade núbil no direito brasileiro é de 16 anos, consoante prescreve o artigo 1.517 do Código Civil. Não se olvida, é bem verdade, que a redação anterior do artigo 1.520 do Código Civil autorizava, em caráter excepcional, o casamento daqueles que não houvessem atingido a idade núbil. Sucede, contudo, que, após a Lei n. 13.811/19, houve alteração na redação do dispositivo, que passou a vedar o casamento em qualquer hipótese de quem não haja alcançado 16 anos. De rigor, portanto, a manutenção da sentença guerreada, que não merece as críticas que lhe foram dirigidas”, escreveu o magistrado.”
Por todo o exposto, conclui-se que manter o art. 1.551, do CC, frente à nova redação do 1.520, do mesmo diploma legal, não se coaduna com a proteção da família, a função social desta e o melhor interesse da criança e do adolescente. Portanto, o dispositivo ora em comento demonstra a clara contradição existente no sistema jurídico privado e, para sanar essa incompatibilidade, deve ser ab-rogado de forma tácita. É lamentável a inércia do Congresso Nacional quanto ao dispositivo inconstitucional no momento de promulgação da Lei 13.811/2019: esqueceu-se de revogar o art. 1.551, do CC! Por isso, cabe ao Supremo Tribunal Federal enfrentar a antinomia evidente e declarar a norma inconstitucional!
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