Resumo: O presente estudo tem por finalidade analisar a aplicação da Lei nº 13.431/2017 no âmbito das ações cautelares de produção antecipada de prova, com especial enfoque no depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Busca-se compreender o equilíbrio entre a proteção integral da vítima e a preservação das garantias constitucionais da defesa, destacando-se a importância da observância do rito legal previsto na referida norma. Examina-se, ainda, a inadequação da substituição do depoimento especial por estudo psicossocial, prática que desvirtua a finalidade probatória do instituto e compromete o contraditório e a ampla defesa. A análise desenvolve-se a partir de fundamentos doutrinários e jurídicos, ressaltando que, no processo penal, a forma constitui verdadeira garantia. Conclui-se que o respeito às balizas procedimentais da Lei nº 13.431/2017 é condição indispensável para a legitimidade da prova e para a efetiva proteção das partes envolvidas, reafirmando o papel da Defensoria Pública como instituição essencial à defesa da legalidade, dos direitos humanos e da justiça democrática.
Palavras-chave: Depoimento especial; Lei nº 13.431/2017; contraditório; ampla defesa; Defensoria Pública; produção antecipada de prova.
1. Introdução
A aplicação da Lei nº 13.431/2017 nas ações cautelares de produção antecipada de prova tem revelado desafios importantes à efetivação do equilíbrio entre direitos fundamentais. A oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual exige do Poder Judiciário uma condução técnica e juridicamente adequada, em conformidade com as garantias que regem o processo penal e a especial proteção das crianças e adolescentes.
A referida legislação institui um procedimento próprio para a escuta de crianças e adolescentes, com o objetivo de evitar a revitimização e assegurar que o depoimento seja colhido de forma protegida, mas sem afastar o contraditório e a ampla defesa. O depoimento especial, assim, representa um meio de prova que alia proteção à vítima e observância das garantias processuais do acusado.
Apesar da clareza do texto legal, na prática judicial, observa-se reiteradas tentativas de afastar o rito previsto, substituindo o depoimento especial por estudo psicossocial ou outras diligências, sob a justificativa de falta de profissional habilitado. Essa prática carece de respaldo jurídico e acaba por violar o devido processo legal, comprometendo a legitimidade da prova e fragilizando princípios essenciais ao processo penal democrático.
2. O depoimento especial como meio de prova
O depoimento especial, previsto no artigo 8º da Lei nº 13.431/2017, é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária. Trata-se de meio de prova judicial legítimo, destinado à formação da convicção do julgador, seja para a condenação, seja para a absolvição.
Por possuir natureza de prova, o depoimento especial deve observar as garantias do contraditório e da ampla defesa, conforme dispõe o artigo 11, caput, da Lei nº 13.431/2017. O mesmo diploma legal, em seu artigo 12, incisos IV e V, assegura à defesa técnica o acompanhamento do ato em tempo real e a possibilidade de formular perguntas, devidamente adaptadas pelo entrevistador forense.
Essas previsões demonstram que o legislador não previu o depoimento especial como mera diligência protetiva, mas como ato processual completo, sujeito a controle jurídico e técnico. A finalidade é assegurar que a prova seja produzida de forma legítima, respeitando tanto a condição de vulnerabilidade da vítima quanto as garantias da defesa.
3. A vedação à repetição do depoimento e a proteção contra a revitimização
O artigo 11, §2º, da Lei nº 13.431/2017 estabelece que não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou de seu representante legal. Essa disposição consagra o caráter excepcional e irrepetível do depoimento especial, justamente para evitar que a criança ou o adolescente seja submetido a sucessivas rememorações traumáticas.
O descumprimento da forma legal compromete não apenas a validade da prova, mas também a proteção integral da vítima, configurando revitimização. A forma processual, nesse contexto, é instrumento de proteção tanto da vítima quanto do acusado. Como ensina Aury Lopes Jr., “a forma é garantia no processo penal”. O respeito ao rito não é formalismo, mas expressão concreta do devido processo legal e da contenção do poder punitivo estatal.
4. A inadequação da conversão do depoimento especial em estudo psicossocial
Em alguns casos, diante da ausência de profissional habilitado, o Poder Judiciário tem cogitado converter o depoimento especial em estudo psicossocial. Tal proposta, no entanto, não encontra respaldo jurídico e viola a essência da Lei nº 13.431/2017.
O estudo psicossocial, embora tenha valor para fins de avaliação familiar ou social, não possui natureza de prova penal. É um instrumento auxiliar, desprovido de contraditório e sem a presença da defesa técnica, o que o torna inadequado para subsidiar juízo de valor sobre autoria ou materialidade. Além disso, não é gravado em áudio e vídeo, como determina o artigo 12, inciso VI, da lei, nem garante a fiscalização das partes sobre sua condução.
Permitir que o estudo psicossocial substitua o depoimento especial significa admitir a produção de prova à margem da lei, violando princípios como o da legalidade, da paridade de armas e do contraditório. O afastamento do rito legal pode, inclusive, ensejar nulidade processual e expor novamente a criança ou o adolescente à revitimização.
5. A deficiência estatal e a impossibilidade de mitigação de garantias
A alegação de falta de profissional habilitado para realizar o depoimento especial é recorrente, mas não pode servir de justificativa para o descumprimento da lei. Desde 2017, o sistema de justiça teve tempo hábil para se adaptar à legislação e estruturar suas equipes.
A deficiência estatal não pode restringir direitos fundamentais. O ônus da falta de estrutura não deve recair sobre as partes, muito menos sobre a defesa técnica. A inércia administrativa não autoriza o afastamento do rito legal. Em matéria penal, onde estão em jogo a liberdade do réu e a dignidade da vítima, qualquer mitigação de forma equivale a negar a própria justiça.
Cabe ao Estado garantir as condições técnicas e humanas necessárias à efetiva aplicação da lei. Transferir aos jurisdicionados as consequências da ineficiência estatal é incompatível com o Estado Democrático de Direito e com o princípio da legalidade.
6. A harmonização entre proteção da vítima e garantias da defesa
A Lei nº 13.431/2017 exige uma aplicação harmônica, que equilibre a proteção integral da vítima com as garantias processuais do acusado. O depoimento especial é o instrumento que materializa essa harmonização, permitindo que a criança ou o adolescente seja ouvido em ambiente acolhedor, sem contato com o suposto agressor, e com acompanhamento da defesa.
A atuação da Defensoria Pública, ao pugnar pela observância integral do rito, reafirma sua função constitucional de garantir a legalidade e o equilíbrio entre as partes. Defender a forma é assegurar que a proteção da vítima se dê por meios legítimos, capazes de sustentar a validade da prova e evitar nulidades futuras.
O rito legal é a base da legitimidade da decisão judicial. Quando se respeita a forma, preserva-se tanto a dignidade da vítima quanto a lisura do processo. Quando se relativiza a lei, perdem-se ambos.
7. Conclusão
A Lei nº 13.431/2017 representa um marco jurídico ao estabelecer um modelo de escuta adequado e juridicamente válido para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Sua efetividade, entretanto, depende da observância rigorosa das formas que estruturam o depoimento especial, pois é nelas que se sustentam a legitimidade da prova e a integridade do processo penal.
A substituição desse procedimento por estudo psicossocial, sob qualquer justificativa, configura afronta à legalidade e à Constituição, uma vez que compromete o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, além de expor novamente a vítima a situações de vulnerabilidade. A falta de estrutura estatal não pode servir de argumento para flexibilizar direitos nem para afastar garantias que constituem a base do Estado de Direito.
À Defensoria Pública incumbe reafirmar, em cada caso concreto, a importância da forma como instrumento de proteção e condição de legitimidade da prova. No processo penal, a forma não é obstáculo, mas elemento essencial para assegurar a paridade de armas e a validade das decisões judiciais. O cumprimento integral da Lei nº 13.431/2017 representa o fortalecimento da justiça democrática e o compromisso institucional com a defesa dos direitos humanos e com a concretização das garantias fundamentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 abr. 2017.
BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 abr. 2001.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2025.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
AMARAL, Cláudia de Oliveira; SOUZA, Mariana B. de. Depoimento especial e o princípio da proteção integral. Revista Brasileira de Direito da Criança e do Adolescente, v. 10, n. 2, 2022.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes. Brasília: CNJ, 2021.
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Atuação da Defensoria Pública em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: depoimento especial e escuta especializada. Brasília: DPU, 2022.
Defensora Pública do Estado de Rondônia. Especialista em Direito Civil e Processo Civil
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LINS, MARIANA DE SOUSA D’AVILA. Forma, Garantia e Justiça: o depoimento especial sob a perspectiva da Defensoria Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2025, 18:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/69843/forma-garantia-e-justia-o-depoimento-especial-sob-a-perspectiva-da-defensoria-pblica. Acesso em: 18 out 2025.
Por: Thaianny Castanha de Melo
Por: DMITRI NÓBREGA AMORIM
Por: MARIA THEREZA GRANDENI PIRES
Por: João Gabriel Fumian Novis de Souza
Por: ELISABETE CUNHA CANO
Precisa estar logado para fazer comentários.