Resumo: O presente trabalho analisa o conceito de verdade real na persecução penal e indaga se sua busca pode gerar violação aos direitos fundamentais do acusado nas ações criminais. O objetivo é esquadrinhar o conceito de verdade real – típico conceito de sistemas inquisitoriais –, sua influência no processo penal frente aos direitos fundamentais dos réus, como o contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e o devido processo legal no sistema acusatório adotado pela Carta Magna. A metodologia utilizada é a revisão bibliográfica narrativa, de cunho lógico-dedutivo e qualitativo, embasando-se em análise doutrinária e legal a fim de se alcançar os objetivos antes mencionados. Os resultados da pesquisa apontam para a incompatibilidade da busca pela verdade real com o devido processo legal, contraditório, ampla defesa e presunção de inocência, direitos fundamentais dos acusados, visto que o conceito ora analisado é vago e abstrato, gerando graves prejuízos aos réus. Conclui-se que a verdade real não é o principal vetor do processo penal, porquanto sua busca incessante gera ilegalidade, inconstitucionalidade e fere direitos fundamentais dos acusados na seara penal, sendo a principal função do sistema acusatório, expressamente adotado pela Constituição de 1988 (CF/88) o respeito às “regras do jogo” no processo penal.
Palavras-chave: Processo penal; verdade real; direitos fundamentais; sistema acusatório; sistema inquisitório.
Sumário: Introdução. 1. “Verdad real”, filosofia e processo penal: entre o sistema inquisitório e o sistema acusatório. 2. Violação dos princípios fundantes do processo penal em nome da “verdade real”: visões jurisprudenciais x garantistas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A verdade é um conceito não pacificado na filosofia. Cada filósofo possui uma concepção distinta do que vem a ser a verdade. No processo penal também não é diferente, visto que há muita divergência na doutrina acerca da temática. Parte da doutrina diz que a finalidade do processo penal é a busca pela “verdade real”. Já outros, afirmam que ela é impossível de ser alcançada. Visto isso, o presente trabalho tem como finalidade a análise dessa problemática: o mito da “verdade real” no processo penal.
Em primeiro plano, urge ressaltar que o objetivo deste trabalho é análise da “verdade real” enquanto um mito do sistema inquisitorial – visto pela ótica da Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) – e sua incompatibilidade com o sistema acusatório expressamente adotado pela CF/88 – de feição garantista – e os princípios basilares do processo penal, como o devido processo legal, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e imparcialidade do juiz. Ressalte-se que este trabalho parte da hipótese de que a verdade é um conceito ficto e formal, neste estudo, haja vista que é uma reconstrução de fatos passados no processo penal.
A metodologia utilizada é a revisão bibliográfica narrativa, por método lógico-dedutivo qualitativo, amparando-se na doutrina nacional – Aury Lopes Jr. –, em artigos científicos, artigos de opinião de grandes veículos jurídicos de comunicação – como o Conjur –, sem prejuízo da análise legal, como a CF/88 e o Código de Processo Penal (CPP). A seleção metodológica feita parte de uma análise teorética da questão, não possuindo uma análise empírica estritamente, além da análise legal, haja vista que o fim do trabalho é uma análise filosófica, normativa e doutrinária da problemática – motivo esse da seleção das referências bibliográficas aqui expostas.
Os resultados apontam para uma incompatibilidade entre o sistema acusatório – adotado pela CF/88 – e o mito da “verdade real” a ser alcançada no processo, de cunho evidentemente inquisitorial, pois o conceito ora em análise é utilizado para justificar violações aos princípios básicos do processo penal, como o devido processo legal, contraditório e ampla defesa, princípio dispositivo, imparcialidade do juiz e presunção de inocência. Muitas vezes, em nome da “verdade real”, ferem-se diversas garantias constitucionais e infraconstitucionais dos acusados em busca dela.
Conclui-se, portanto, que o sistema acusatório se embasa no respeito às “regras do jogo” e na forma do processo, sendo, desse modo, incompatível com a busca pela “verdade real” do sistema inquisitorial. Pressupõe-se que são incompatíveis ambos os sistemas. Ademais, é importante destacar que a busca por essa suposta “verdade” pode gerar inúmeros prejuízos aos acusados, além de violar normas constitucionais e infraconstitucionais cogentes – como os princípios supramencionados na presente introdução. A contribuição do presente trabalho é de cunho teórico e filosófico, procurando uma releitura e nova interpretação da temática sob o viés interdisciplinar.
Por fim, o trabalho é dividido da seguinte forma: primeiro, analisar-se-á o conceito de “verdade real” em sua dimensão processual e em conexão aos sistemas sistema inquisitório e sistema acusatório; por último, serão analisadas as jurisprudências do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) a fim de observar o emprego do conceito no caso concreto, tendo em vista a possível violação no emprego do termo aos princípios basilares do processo penal, já mencionados anteriormente.
1. “VERDADE REAL”, FILOSOFIA E PROCESSO PENAL: ENTRE O SISTEMA INQUISITÓRIO E O SISTEMA ACUSATÓRIO
O que é a verdade? Pode-se conhecê-la ou ela está fora do conhecimento humano? Essas indagações são realizadas desde a antiguidade pelo ser humano e pela filosofia. Não menos importante, tais questões se dão, também, na instrução penal – por intermédio do lastro probatório a fim de absolver ou condenar o acusado.
O conceito de verdade, antes, dava-se por meio da mitologia. O homem, anteriormente ao advento da razão filosófica, explicava o mundo por meio dos mitos, como nas obras de Homero (2018). O verdadeiro se transmutava na mitologia, nos deuses e em suas histórias – como na Teogonia de Hesíodo (2000), cuja narrativa conta o início do mundo pela criação divina dos deuses.
Por outro lado, a Grécia foi o berço de grandes transformações – como a filosofia –, pois houve a ascensão do comércio e o advento da democracia, conforme explica Reale (2017). Em virtude dessas situações, o mundo grego antigo teve o seu ápice com a democracia ateniense. Esta possibilitou o surgimento, em razão dos motivos expostos, do pensar da filosofia. Esta surge com os filósofos naturalistas (como Tales, de Mileto e Heráclito, por exemplo) e chega até o seu ápice na filosofia platônica e aristotélica. Platão foi, de certo modo, o “pai” da metafísica. Dizia ele que a verdade estava nas formas ou ideias de cada coisa existente no mundo sensível, sendo este uma “sombra” do mundo das formas (Reale, 2017). Já Aristóteles, pupilo de Platão, dizia que a substância, ou essência, das coisas estavam nelas mesmas, possuindo cada coisa do mundo uma substância (Reale, 2017). Desse modo, na concepção platônica e aristotélica, pode-se pensar na verdade como a essência ou a substância de algo, pertencente a ela. Todas as coisas, para os filósofos, possuem uma essência inerente. A justiça, dessa forma, teria uma substância, ou psyché (alma), que a definiria. A verdade, para Platão e Aristóteles, é classificada como absoluta (Reale, 2017).
Nesse sentido, o processo, principalmente na Idade Média, era visto como um meio de se alcançar a verdade. Utilizava-se de técnicas referentes à tortura judicial e as penas cominadas se davam pelo suplício, tortura antes da morte (Foucault, 2014). Lopes Jr. (2019) diz que a Inquisição Católica era marcada pelo acúmulo de funções no “juiz-inquisidor”, que julgava e acusava, em busca da “verdade real”. Esta é análoga a um mito, porquanto é endeusada no processo, buscando-a a todo custo – inclusive das garantias constitucionais, que são atropeladas no caminho – com os fins justificando os meios à obtenção da dita “verdade substancial”.
No entanto, com o advento do Iluminismo e da Revolução Francesa (1789), houve uma virada no pensamento jurídico com os direitos fundamentais de primeira dimensão – os atinentes à liberdade. O pensamento jurídico se alterou substancialmente, possuindo um tom mais garantista ao invés de inquisitório. Um dos pioneiros no tema, Beccaria (2017), denunciou contundentemente a tortura (judicial) e todo o sistema inquisitório vigente à época e propagou o início do garantismo penal moderno. A liberdade passou a ser vista como um valor fundamental inafastável – vide o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade –, sendo devidamente positivada nos ordenamentos jurídicos de Estado de Direito (ou liberal de direito).
Atualmente, é importante mencionar que a verdade no processo é relativa a um determinado contexto, ou seja, ao processo em questão e a uma determinada situação posta em juízo, nas lições de Didier Jr. (2025). A verdade não é absoluta, como em Platão e a Aristóteles, mas relativa em um determinado contexto, situação fática e processo. Nesse sentido, o direito processual penal busca a reconstrução dos fatos, sendo impossível de voltar neles, devendo o magistrado, de acordo com as regras e formalidades do CPP, reconstruí-lo (Lopes Jr, 2019). Não é possível, de fato, voltar no tempo e averiguar se um delito ocorreu de uma forma ou de outra, sendo o processo penal uma reconstrução dos fatos – que não voltam – de acordo com as provas produzidas em juízo mediante o contraditório e a ampla defesa, respeitando o devido processo legal.
Ademais, os sistemas processuais contemporâneos e os anteriores possuem diferenças substanciai, sendo os atuais de cunho mais democrático – visto que a modernidade trouxe um Estado Democrático de Direito compromissório, democrático e dirigente (Streck, 2017) – e os mais longínquos com teor autoritário. Mencione-se que no sistema inquisitório, o magistrado acumula as funções de instrução e julgamento, possuindo uma postura ativa (Lopes Jr, 2019). O juiz é o protagonista, utilizando de todos os meios (com ampla liberdade) para alcançar a “verdade dos fatos”. Sob outra ótica, o sistema acusatório se coaduna com o devido processo legal – cláusula geral que possui sub-princípios – ao separar as funções de instrução (partes: Ministério Público e Defesa, que produzem as provas) e julgamento – consubstanciada no juiz (Lopes Jr, 2019). É esse o sistema processual penal do Estado Democrático de Direito, que respeita as regras democráticas e preza pela liberdade e igualdad.e
A CF/88 adota, expressamente, o sistema acusatório, conforme o art. 129, I, que dá ao Ministério Público a função de promover a ação penal pública (condicionada e incondicionada à representação), delimitando a função de órgão acusador no processo penal:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (Brasil, 1988);
As normas infraconstitucionais também adotam o referido sistema, caso do art. 3º-A, do CPP, inserido pela lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime):
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação (Brasil, 1941).
Decisão acertada do legislador ao inserir o referido artigo, pois coloca em voga expressamente a separação das funções das partes no processo penal – garantindo, em tese, o procedimento da ação penal.
Vale mencionar que parcela da doutrina afirma que o sistema processual penal é misto – como, também, um sistema (neo)inquisitorial (Lopes Jr, 2019) – e parte diz que o sistema penal adotado expressamente pela Carta Magna é acusatório (Lima, 2025). Afinal, o sistema processual, na teoria, é o acusatório, mas na prática dos foros, infelizmente, é misto. Percebe-se isso pelo próprio CPP, como no art. 156. Tais inquisitoriedades, no entanto, precisam passar pela releitura da CF/88, norma de caráter superior e com a devida eficácia normativa, visto que o Estado brasileiro, adotando a terminologia de “democrático e de direito”, é, de fato, dirigente e compromissório. Ocorre, contudo, que as promessas da modernidade tardia nem sempre são cumpridas e efetivadas, fazendo com que a democracia não seja aplicada da maneira devida e em sua dimensão substancial, conforme Bobbio (2009). Parcela da doutrina (minoritária) afirma que o Estado Social de Direito – faceta do Democrático de Direito – nunca foi implementado no Brasil (Streck, 2017). Isso explica o fato de o sistema, na prática forense, ser “misto” ou (neo)inquisitório.
Portanto, a “verdade real” é um conceito atinente ao sistema inquisitório, cujas funções de acusar e julgar se consubstanciam no magistrado (protagonista do referido sistema), que emprega todos os meios em busca dessa “verdade” (com os fins justificando os meios). Já o sistema acusatório, típico do Estado Democrático de Direito e de constituições compromissórias, dirigentes e de cunho social, separa as funções de julgar e acusar, baseando-se no respeito às regras procedimentais e formalistas do processo a fim de garantir a justiça no procedimento. No Brasil, conclui-se que o sistema processual penal vigente é o acusatório, pela CF/88, sendo o sistema arcaico inquisitorial, contrário aos direitos humanos e garantias fundamentais, ultrapassado e não mais utilizado em um Estado Democrático de Direito – mesmo a prática dizendo o contrário.
2. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS FUNDANTES DO PROCESSO PENAL EM NOME DA “VERDADE REAL”: VISÕES JURISPRUDENCIAIS X GARANTISTAS
O processo penal, após o advento da CF/88, foi constitucionalizado. A visão neoconstitucionalista trouxe a força normativa da constituição, que não mais é vista como um pedaço de papel, possuindo eficácia (Hesse, 2004). Também os princípios ganharam status de norma, não sendo vistos apenas como a base das regras, mas como uma norma destas separadas. O neoconstitucionalismo mudou o direito constitucional e até o processo penal, devendo os dispositivos deste serem vistos com as lentes da CF/88 e passando por sua filtragem, conforme Lopes Jr. (2019).
É válido salientar que o processo penal possui princípios constitucionais imprescindíveis para que as “regras do jogo” sejam seguidas, como a presunção de inocência, contraditório e ampla defesa, juiz natural e o devido processo legal, por exemplo. São normas-princípio inafastáveis e, na visão do autor, não passíveis de ponderação, porquanto são princípios estruturantes do processo que permitem a permanência das regras fundantes do sistema acusatório, conforme a teoria de Ávila (2025).
Contudo, o STJ aplica o conceito de “verdade real”, principalmente no quesito do processo ser instruído pelo magistrado, afastando os princípios ora em comento:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS. PROTAGONISMO DO MAGISTRADO. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
I. Caso em exame
1. Agravo regimental interposto contra decisão monocrática que denegou a ordem de habeas corpus, na qual se alegava nulidade da instrução processual devido ao protagonismo da magistrada na inquirição de testemunhas, em violação ao artigo 212 do Código de Processo Penal.
2. O Tribunal local deu parcial provimento ao recurso de apelação para reconhecer a continuidade delitiva dos crimes cometidos, reduzindo a pena aplicada ao agravante.
II. Questão em discussão
3. A discussão consiste em saber se a atuação ativa do magistrado na inquirição de testemunhas configura nulidade processual, em violação do artigo 212 do Código de Processo Penal e do princípio do devido processo legal.
III. Razões de decidir
4. O protagonismo do magistrado na oitiva de testemunhas não configura nulidade sem demonstração de prejuízo, conforme o princípio pas de nullité sans grief, consagrado no art. 563 do CPP e na Súmula n. 523/STF.
5. A jurisprudência desta Corte de Justiça permite que o juiz formule perguntas às testemunhas, sendo-lhe facultada a produção de provas necessárias à formação do seu livre convencimento, nos termos do art. 156, II, do CPP.
6. A Defesa não se insurgiu quanto à oitiva da vítima e testemunhas durante a audiência, alegando a nulidade apenas em sede recursal, a qual foi afastada pela Corte de Justiça local.
IV. Dispositivo e tese
7. Agravo regimental não provido.
Tese de julgamento: 1. O protagonismo do magistrado na inquirição de testemunhas não configura nulidade sem demonstração de prejuízo. 2.
O juiz pode formular perguntas às testemunhas para buscar a verdade real e formar seu livre convencimento.
Dispositivos relevantes citados: CPP, arts. 212, 156, III, e 563.
Jurisprudência relevante citada: STF, Súmula n. 523; STJ, AgRg nos EDcl no HC 806.955/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 13/6/2023.
(AgRg no HC n. 991.882/SP, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 11/6/2025, DJEN de 26/6/2025.)
De acordo com o acórdão, “O juiz pode formular perguntas às testemunhas para buscar a verdade real e formar seu livre convencimento” (Grifo do autor). O que se entende por “verdade real”? Esta é um conceito socialmente construído, conforme se depreende da leitura da primeira seção deste trabalho. O conceito foi e é utilizado para o juiz julgar “conforme sua consciência”, de maneira arbitrária e contra os princípios estruturantes e inafastáveis do processo penal (Streck, 2017), trazendo uma nova forma de inquisitoriedade velada que ocorrer na prática forense. Ademais, o “livre convencimento motivado” também deve ser lido conforme as lentes da Carta Magna de 1988, porquanto a cognição do magistrado não é de todo “livre”, devendo se submeter às regras constitucionais e processuais penais e, mais importante, ser devidamente motivada ou fundamentada, conforme art. 93, IX, da CF/88:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação (Brasil, 1988).
Ainda no acórdão supramencionado, foi negado o Habeas Corpus no caso em que o magistrado inquiriu testemunhas na audiência de instrução e julgamento, agindo como protagonista no processo. Primeiramente, o juiz, por força do art. 3º-A, do CPP, não pode instruir o processo penal em nome da “verdade real”, sendo a ele vedado sob pena de se estar diante de um sistema (neo)inquisitório e violando a imparcialidade do magistrado, conforme diz Lopes Jr. (2019). A imparcialidade quer dizer que o juiz é um terceiro daquela relação jurídica e desinteressado nela. Porém ao inquirir as testemunhas, o juiz se torna uma parte – da acusação – fazendo com que não seja um terceiro desinteressado, mas, sim, um dos protagonistas do processo ao lado do Parquet. Sob outro viés, a verdade no processo penal é ficta, haja vista que é contextual e em relação a uma dada situação ou relação jurídica. Portanto, o juiz, enquanto terceiro desinteressado, não deve instruir o processo e ir atrás das provas, apenas livremente apreciá-las motivadamente, sob pena de violar os princípios e normas cogentes do processo penal.
No mesmo sentido, o STF, em diversas ações lá julgadas, apela para o mesmo conceito:
EMENTA: Penal e processual penal. Agravo regimental em habeas corpus. Tribunal do Júri. Rol de testemunhas da acusação. Alegação de intempestividade. Inexistência de risco à liberdade de locomoção. 1. A Constituição Federal de 1988 autoriza a impetração de habeas corpus “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (inciso LXVIII do art. 5º). A controvérsia dos autos – recebimento de rol de testemunhas apresentado intempestivamente pelo Ministério Público – é questão alheia à liberdade de locomoção do paciente, o que evidencia a inadequação da via eleita. Precedente. 2. Não há ilegalidade flagrante ou abuso de poder no acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, que assentou que, “verificada a preclusão no arrolamento de testemunhas pelas partes, possível ao Magistrado, nos termos do artigo 209 do CPP, proceder à oitiva daquelas como testemunhas do juízo, desde que considere suas declarações imprescindíveis à busca da verdade real, não constituindo, pois, direito subjetivo da parte”. Precedente. 3. O acórdão impugnado está alinhado com o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o “princípio do pas de nullité sans grief exige, em regra, a demonstração de prejuízo concreto à parte que suscita o vício, podendo ser ela tanto a nulidade absoluta quanto a relativa, pois não se decreta nulidade processual por mera presunção” (HC 132.149-AgR, Rel. Min. Luiz Fux). 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(HC 198450 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 27-04-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-085 DIVULG 04-05-2021 PUBLIC 05-05-2021).
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO. NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. MATÉRIA SUSCITADA APENAS NAS RAZÕES DO RECURSO DE APELAÇÃO. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO. 1. Sem a demonstração de efetivo prejuízo causado à parte, em atenção ao disposto no art. 563 do CPP, não se reconhece nulidade no processo penal. Precedentes. 2. Além de não haver indicação de qualquer ato ou fato sobre o qual a defesa não se manifestou e que teria, em virtude disso, gerado prejuízo capaz de invalidar toda a instrução criminal, o art. 156, II, do CPP autoriza o magistrado a determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a produção de provas que entender pertinentes, a fim de dirimir dúvidas sobre pontos relevantes, por força dos princípios da verdade real e do impulso oficial. 3. Nulidades apontadas somente no aditamento às razões de apelação dirigidas ao Tribunal de Justiça local. Nessas circunstâncias, não pode a defesa, agora, valer-se de suposto prejuízo decorrente de sua omissão, para invalidar a ação penal (CPP, art. 565). Ainda, a simples mudança de causídico não justifica, à evidência, o reconhecimento da falta de defesa anterior e o afastamento da preclusão. 4. Agravo Regimental a que se nega provimento.
(HC 171826 AgR-segundo, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 25-10-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-224 DIVULG 11-11-2021 PUBLIC 12-11-2021).
É evidente o uso da “verdade real” nas decisões acima, utilizada como a busca pela realidade factual. Isso demonstra que há um ranço inquisitorial no sistema processual penal brasileiro. E quando se diz em “prejuízo concreto” para o réu, o que isso quer dizer? Como se mede esse prejuízo? Pode-se transformar uma nulidade absoluta, que fere normas cogentes, em relativa pela “ausência de prejuízo”? Está-se diante com uma cláusula aberta textualmente, podendo ser interpretada segundo a subjetividade do intérprete. Contudo, ela pode ser utilizada para fundamentar arbitrariedades ou “decisionismos”, como diz Streck (2017).
Analisando o segundo acórdão, o magistrado pode, de acordo com o Ministro Moraes, produzir provas que achar pertinentes por força do art. 156, II, do CPP. Qual o critério de pertinência para a produção probatória feita pelo intérprete? Novamente, está-se diante de uma cláusula aberta, que pode ser interpretada com critérios subjetivos. O que a CHD busca combater ante essa situação, com fulcro na hermenêutica filosófica, é a subjetividade, amparada na filosofia da consciência e do positivismo normativista kelseniano, da interpretação (Streck, 2017). Esse subjetivismo é danoso ao réu, porquanto se embasa em um livre (de fato) conhecimento (não) motivado. Em casos difíceis, como esses supracitados, fica a cargo do juízo interpretar discricionariamente, ocasionando as decisões arbitrárias. Streck (2017) diz que a interpretação deve se coadunar com a Constituição Federal nos chamados hard cases, sendo embasada no texto constitucional e visto sob as suas lentes a fim de decidir de forma justa ou equânime.
Logo, é imperioso concluir que o mito da “verdade real”, tipicamente uma mitologia do sistema inquisitorial ainda se encontra vigente no ordenamento jurídico pátrio, amparando na discricionariedade e subjetividade do juiz e, consequentemente, gerando decisões injustas e arbitrárias, permitindo, por exemplo, violação aos preceitos básicos do CPP (art. 3º-A), como a imparcialidade do juiz, o contraditório e o devido processo legal.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, que não há nada pacífico quanto ao conceito de verdade na filosofia e nem no Direito. O mito da “verdade real”, no entanto, ainda se encontra vivo no processo penal brasileiro, tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátria, estando em julgados e precedentes do STF e do STJ.
Primeiramente, urge mencionar que a “verdade real” é um mito do sistema inquisitorial que conduz à postura ativa do magistrado. Por outro lado, a verdade no sistema acusatório, em razão da separação de funções das partes e dos princípios do processo penal consagrados pela Carta Magna, é ficta e contextual, sendo, nesse sentido, relativa a uma determinada situação fática. Há legislação que ampara o sistema acusatório, a exemplo do art. 3º-A, do CPP. Contudo, o sistema processual penal brasileiro carrega resquícios de inquisitoriedade, gerando graves injustiças para os acusados.
Também, o mito da “verdade real” traz consequências negativas ao acusado no processo penal ao permitir diversos meios a fim de se alcançá-la, como a postura ativa do magistrado na produção probatória testemunhal e nas demais diligências, dando azo à arbitrariedade do juiz e a “decisionismos” com base em uma interpretação equivocada do “livre convencimento motivado” e na exigência do “prejuízo concreto” para a comprovação de nulidades (absolutas, inclusive). Tudo isso se embasa na filosofia da consciência, coração da discricionariedade e subjetivismo interpretativos.
Logo, conclui-se que o senso comum teórico dos juristas – e da jurisprudência – precisa realizar uma interpretação conforme a CF/88 e segundo suas lentes, a fim de que se retire os resquícios de inquisitoriedades do processo penal brasileiro. O processo penal não busca a verdade dos fatos, mas, antes disso, o respeito às “regras do jogo”. O jus puniendi é necessário em uma sociedade como a brasileira, mas deve ser feita de forma civilizada e humana, não atropelando os direitos humanos e fundamentais dos acusados.
REFERÊNCIAS
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DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao processo civil, parte geral e processo do conhecimento. 27. ed. São Paulo: JusPodivm, 2025.
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HOMERO. Ilíada. São Paulo: Penguin, 2018.
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REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média (Volume 1). São Paulo: Paulus Editora, 2017.
Graduando em Direito no UNIFAGOC, estagiou no Procon, estagiário da DPMG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Erick Labanca. O mito da “verdade real” no processo penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2025, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69930/o-mito-da-verdade-real-no-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2025.
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