RAIMUNDO LUIZ DE ANDRADE.
(orientador)
RESUMO: O presente estudo tem como objetivo expor e fundamentar a possibilidade de se compatibilizar o exercício da atividade de auditor fiscal de tributos com a advocacia privada, tendo em vista a inconstitucionalidade do artigo 28, VII, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOAB). Esse dispositivo determina a incompatibilidade, ou seja, a proibição total de os ocupantes deste cargo público exercerem a advocacia, sob a justificativa de que o acesso a informações tributárias privilegiadas os colocariam em posição de superioridade em relação aos demais causídicos. Por outro lado, os auditores de controle externo e os procuradores estaduais e municipais, que possuem acesso ao mesmo tipo de informação, estão sujeitos somente à proibição parcial prevista no artigo 30, I, do EAOAB, que permite que eles exerçam a advocacia privada, exceto, apenas, contra a Fazenda Pública que os remunera ou à qual seja vinculada a entidade empregadora. Esse tratamento desigual, além de revelar uma evidente violação ao princípio da isonomia e ao direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, previstos na Constituição Federal de 1988 (CF/88), resulta em maiores prejuízos à sociedade, uma vez que restringe o acesso de profissionais qualificados à advocacia, que apesar de ter um mercado saturado, ainda necessita de bons causídicos, o que pode levar alguns deles a atuarem na advocacia de forma clandestina. Diante dos motivos elencados, faz-se necessária uma revisão normativa do Estatuto da OAB para se assegurar a justiça e a igualdade entre essas carreiras públicas essenciais ao Estado.
Palavras-Chave: Auditor Fiscal; Advocacia; Estatuto da OAB; Impedimento; Incompatibilidade; Princípio da isonomia; Direito ao livre trabalho, ofício ou profissão.
ABSTRACT: The aim of this study is to expose and substantiate the possibility of making the activity of tax auditor compatible with private advocacy, in view of the unconstitutionality of the article 28, VII, of the Order of Attorneys of Brazil (OAB) Statute. This provision establishes the incompatibility, i.e. the total prohibition of public office holders from practicing advocacy, on the grounds that access to privileged tax information would place them in a position of superiority in relation to other lawyers. On the other hand, external control auditors and state and municipal attorneys, who have access to the same type of information, are only susceptible to the partial prohibition laid down in article 30, I, of the OAB Statute, which allows them to practice the private advocacy, except only against the Public Treasury that pays them or to which their employer is linked. This unequal treatment not only reveals a clear violation of the principle of isonomy and of the right to free labor, trade or profession, provided for in the 1988 Federal Constitution (FC/88), but also results in greater harm to society, since it restricts the access of qualified professionals to the legal profession, which, despite having a saturated market, still needs good lawyers, which can lead some of them to practice law illegally. Given these reasons, a normative revision of the OAB Statute is necessary to ensure justice and equality between these public careers that are essential to the State.
Keywords: Tax Auditor; Advocacy; OAB Statute; Impediment; Incompatibility; Principle of isonomy; Right to free labor, trade or profession.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO 2 O AUDITOR FISCAL DE TRIBUTOS E O ADVOGADO 2.1 ATRIBUIÇÕES DO AUDITOR FISCAL E REQUISITOS PARA INGRESSO NO CARGO PÚBLICO 2.2 ATRIBUIÇÕES DO ADVOGADO E REQUISITOS PARA EXERCER A ADVOCACIA 2.3 COMPARAÇÃO ENTRE AS CARREIRAS E LIMITAÇÕES LEGAIS PARA EXERCER A ADVOCACIA 3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA 3.1 TEORIA DOS PRINCÍPIOS 3.1.1 PRINCÍPIO DA ISONOMIA 3.1.2 DIREITO AO LIVRE TRABALHO, OFÍCIO OU PROFISSÃO 3.1.3 PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO 3.2 ESTATUTO DA OAB 3.2.1 IMPEDIMENTOS E INCOMPATIBILIDADES 4 A INCOMPATIBILIDADE DAS ATRIBUIÇÕES DO AUDITOR FISCAL DE TRIBUTOS COM O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA PRIVADA 4.1 IMPEDIMENTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS, DOS PROCURADORES E DOS AUDITORES DE CONTROLE EXTERNO 4.2 VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA 4.3 DESPROPORCIONALIDADE EM RELAÇÃO AO DIREITO AO LIVRE TRABALHO, OFÍCIO OU PROFISSÃO 4.4 IMPACTOS GERADOS PELA INCOMPATIBILIDADE 5 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
O exercício de atividades jurídicas e administrativas no Brasil está vinculado a um arcabouço normativo que busca garantir a independência, a autonomia e a ética de seus profissionais. Nesse contexto, as carreiras de auditor fiscal de tributos e de advogado se destacam por suas contribuições fundamentais para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e para a manutenção da ordem jurídica e tributária. Essas carreiras apresentam atribuições específicas que, além de reforçar a importância de suas funções, determinam as responsabilidades e os limites legais de suas atuações.
Os auditores fiscais de tributos desempenham um papel essencial na administração pública, sendo responsáveis por constituir o crédito tributário, fiscalizar o cumprimento das obrigações fiscais e zelar pela arrecadação dos tributos que garantem o funcionamento do Estado. Enquanto servidores públicos de carreiras típicas de Estado, eles possuem atribuições que os tornam peças-chave na promoção da justiça fiscal e no equilíbrio das contas públicas. Sua atuação é guiada por princípios como a legalidade, a impessoalidade e a moralidade, elementos imprescindíveis para assegurar que o sistema tributário seja justo e eficiente.
Nesse contexto, o art. 37, XXII, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) reconhece que:
As administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.
Tal dispositivo reforça o papel estratégico da administração tributária e dos seus servidores na organização estatal e no equilíbrio fiscal, de modo a conferir maior eficiência no desempenho de suas atividades.
Por outro lado, de acordo com o art. 133 da Carta Magna, os advogados são profissionais indispensáveis para a administração da justiça, exercendo atividades que envolvem a defesa de direitos fundamentais, a promoção de interesses públicos e privados e a representação legal em juízo. Além disso, a advocacia é uma das funções que mais expressa a importância do Estado de Direito, pois garante o acesso à justiça e a ampla defesa dos cidadãos. Sua independência e autonomia são protegidas pela CF/88, o que a torna um pilar fundamental para a manutenção da democracia e da justiça social.
No entanto, o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil – EAOAB, criado pela Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, impõe limitações ao exercício simultâneo dessas funções. De acordo com o Estatuto, a advocacia é considerada incompatível com cargos que envolvam o lançamento, a arrecadação ou a fiscalização de tributos, atribuições estas exercidas privativamente pelos auditores fiscais de tributos. A doutrina entende que essa incompatibilidade, que proíbe completamente o exercício da advocacia privada por esses servidores públicos, mesmo que em causa própria, visa proteger a advocacia e o uso inadequado de informações privilegiadas e resguardar os interesses público e de terceiros. Contudo, o rigor dessa proibição suscita o debate sobre a sua adequação à luz dos princípios e dos direitos fundamentais, como a isonomia e o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão.
Enquanto outras carreiras públicas de Estado, como as de procurador e as de auditor de controle externo, que também lidam com o mesmo tipo de informação privilegiada, podem exercer a advocacia de forma parcial, sendo apenas proibidos de atuar contra o ente público que os remunera, os auditores fiscais enfrentam uma restrição absoluta, o que levanta questionamentos quanto à coerência e à justiça desse tratamento diferenciado. Por que permitir que determinadas categorias tenham maior liberdade, enquanto outras, com acesso ao mesmo tipo de informação privilegiada, enfrentam proibições totais? Esses pontos de divergência tornam evidente a necessidade de uma análise dos fundamentos pertinentes sobre a possível compatibilização das funções desempenhadas pelos auditores fiscais de tributos com o exercício da advocacia privada.
Este trabalho irá explorar as intersecções e as divergências entre as incumbências do auditor fiscal de tributos e as do advogado e realizar uma análise aprofundada a respeito dos aspectos constitucionais, legais, jurisprudenciais e doutrinários que envolvem a vedação imposta pelo Estatuto da OAB. Será examinada a forma como a legislação trata essas atividades, destacando o princípio da isonomia e o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão como balizas essenciais para a formulação de políticas justas e equilibradas. Além disso, busca-se compreender os impactos práticos dessa incompatibilidade, tanto para os profissionais diretamente envolvidos quanto para a sociedade como um todo.
Por fim, discutir-se-á a possibilidade de uma reforma legislativa ou de uma interpretação judicial que permita conciliar essas atividades de maneira igualitária, garantindo que ambas possam ser desempenhadas com ética e responsabilidade, sem prejuízo aos interesses público e de terceiros ou ao exercício da advocacia. Ao propor alternativas para a compatibilização entre essas funções, o estudo visa contribuir para um debate mais amplo sobre as relações entre diferentes carreiras de Estado e sobre os princípios e direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988, de modo a se promover um sistema jurídico mais equitativo e eficiente.
2 O AUDITOR FISCAL DE TRIBUTOS E O ADVOGADO
2.1 ATRIBUIÇÕES DO AUDITOR FISCAL E REQUISITOS PARA INGRESSO NO CARGO PÚBLICO
O cargo de auditor fiscal de tributos, que também pode ser denominado fiscal de rendas, fiscal tributário, auditor tributário, auditor fazendário, agente fiscal de rendas, dentre outros, exercido por um servidor público de cargo efetivo na qualidade de autoridade administrativa e cuja carreira é típica de Estado, é dotado de poderes arrecadatórios e fiscalizatórios e tem como principal atribuição a de constituir, privativamente, o crédito tributário pelo lançamento, conforme preceitua o art. 142 do Código Tributário Nacional (CTN). (A rigor, o lançamento é uma competência exclusiva do auditor, visto que não se admite a sua delegação ou a sua avocação).
O crédito tributário é o valor que o sujeito ativo (Fazenda Pública) tem direito de receber do sujeito passivo da relação tributária (devedor), em virtude da obrigação deste de pagar o montante de uma obrigação tributária principal (tributo ou multa). Já o lançamento é o procedimento administrativo - a doutrina majoritária, a exemplo de Alexandre (2021), entende que é um ato administrativo - que, basicamente, dá origem ao direito de o Fisco poder exigir o crédito acima, definindo o montante deste e propondo, quando permitido pela legislação tributária, a penalidade a ser imposta ao sujeito passivo.
O auditor fiscal de tributos tem, portanto, a incumbência precípua de materializar, por meio de um procedimento/ato administrativo exclusivo, o direito de o Estado poder cobrar o que lhe é devido e de propor a punição do devedor, quando cabível, dentro dos limites legais.
Dentre os requisitos para ser investido nesse cargo, estão a aprovação em concurso público e a formação em curso superior. Em regra, não há exigência de graduação em curso superior específico, o que possibilita que diplomados de diversas áreas, inclusive os bacharéis em Direito, exerçam o cargo (Cabral, 2018).
Por conseguinte, é nítido que o exercício das funções do auditor deve ser pautado na imparcialidade, decorrente do princípio da impessoalidade, que norteia a atuação da administração pública, de modo que, para se fazer uso da atribuição exclusiva explanada anteriormente, ele somente deve agir em caso de irregularidade cometida pelo sujeito passivo.
O auditor fiscal é, assim, um servidor público independente e autônomo, que deve aplicar a legislação sem se utilizar de subjetivismos ou de aversões pessoais, conforme preceituam os princípios da administração pública da legalidade, da impessoalidade e da moralidade, previstos no art. 37 da CF/88, sob pena de responsabilização funcional desse agente (art. 142, parágrafo único, do CTN) nas esferas civil, penal e administrativa (Souza, H. 2016).
2.2 ATRIBUIÇÕES DO ADVOGADO E REQUISITOS PARA EXERCER A ADVOCACIA
O advogado, por sua vez, é o profissional independente por natureza que possui a capacidade para postular em juízo (jus postulandi), de modo a defender judicialmente os interesses dos seus clientes e que deve sempre pautar a sua atuação nos preceitos éticos que permeiam sua profissão.
Ele possui como atividades privativas a postulação à órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais e; as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.
Dentre os requisitos para o exercício dessa atividade, estão a graduação em Direito e a aprovação no Exame de Ordem da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Por ser um ofício de extrema relevância para a sociedade e para o Estado Democrático de Direito, a advocacia possui normativos que foram desenvolvidos para preservar a independência e a autonomia dessa atividade, a exemplo do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94) e do Código de Ética e Disciplina da OAB.
Dessa forma, em caso de irregularidades na sua atuação, o advogado pode ser responsabilizado tanto nas esferas cível e penal quanto perante o Tribunal de Ética da OAB, mediante Processo Ético-Disciplinar, o qual pode acarretar, inclusive, a exclusão do advogado dos quadros da ordem.
2.3 COMPARAÇÃO ENTRE AS CARREIRAS E LIMITAÇÕES LEGAIS PARA EXERCER A ADVOCACIA
Diante ao exposto acima, é possível perceber que as duas carreiras não possuem relação direta entre si. Enquanto os auditores fiscais atuam na seara administrativa, não necessitam, em regra, de formação em curso superior especifico, dependem de aprovação em concurso público para o exercício do cargo e somente podem agir quando permitido pela legislação (em observância ao princípio da legalidade da administração pública), os advogados operam na esfera judicial, devem ser graduados em Direito, não dependem de aprovação em concurso público, mas sim no Exame de Ordem, e, pelo fato de não serem agentes públicos, podem fazer tudo aquilo que a lei não proíbe.
Entretanto, em sentido diverso, o Estatuto da OAB (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), por entender que é incompatível o exercício de ambas as atividades (de auditor fiscal e de advogado), proíbe totalmente o desempenho da advocacia, mesmo que em causa própria, por aqueles que ocupam cargos ou funções que detenham a competência de lançamento, de arrecadação ou de fiscalização de tributos, mesmo que deixe de ocupá-lo temporariamente. Essas atribuições citadas, são algumas das exercidas, primordialmente, por um auditor fiscal de tributos, que, por conta dessa disposição legal, não pode desempenhar a advocacia privada no Brasil.
Contudo, o mesmo estatuto permite, em regra, que os servidores públicos em geral, a exemplo dos procuradores estaduais e municipais e dos auditores de controle externo, cujas carreiras também são típicas de Estado, exerçam a advocacia privada, desde que não advoguem contra a Fazenda Pública que os remunera ou à qual seja vinculada a entidade empregadora. Ou seja, os servidores não podem advogar apenas contra o ente público que efetua o pagamento da sua remuneração.
Ademais, ainda existe a possibilidade de o servidor público poder advogar até mesmo contra a Fazenda Pública que o remunera ou à qual seja vinculada a entidade empregadora, caso ele seja docente de curso jurídico.
Dessa forma, em virtude do tratamento diferenciado entre carreiras do serviço público e da limitação desproporcional do acesso dos auditores fiscais de tributos ao exercício da advocacia, o Estatuto da OAB estaria violando cláusulas pétreas contidas no art. 5º da Constituição Federal de 1988, como o princípio da isonomia e o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, conforme será evidenciado a seguir.
3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA
O art. 133 da Constituição Federal de 1988 preceitua que: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
A partir do caráter constitucional que se dá para a atuação do advogado no exercício de seu labor é que surgem as prerrogativas da advocacia, na medida em que visam possibilitar o livre exercício profissional para a defesa de direitos fundamentais do cidadão (Mendes; Guterres Filho, 2018).
O artigo 7º, I, do Estatuto da OAB, por sua vez, garante a liberdade de exercício da advocacia e está em perfeita consonância com o art. 5º da CF/88, que assegura o direito ao exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão.
A defesa de direitos mediante o auxílio dos advogados, portanto, é fundamental para a manutenção da democracia.
Entretanto, a lei pode estabelecer condições que restrinjam o ingresso e o exercício da advocacia, de modo a garantir maior independência a esses profissionais, desde que observados alguns critérios constitucionais.
Ademais, assim como o serviço público, o exercício da advocacia é permeado por princípios que asseguram a ética e a autonomia dessa atividade.
Porém, muitas vezes esses princípios podem se colidir. Nesse caso, deve ser utilizada a teoria dos princípios para solucionar esses conflitos, conforme se verá a seguir.
3.1 TEORIA DOS PRINCÍPIOS
Primeiramente, é necessário fazer uma breve distinção entre os conceitos de princípio e de regra.
De acordo com Dworkin (2002), as regras são aplicadas na forma do “tudo ou nada”, ou se aplicam ou não se aplicam na sua completa extensão, razão pela qual a dimensão fundamental delas é retirada do plano da validade.
Já em relação aos princípios, ainda segundo Dworkin (2002), estes apresentam uma aplicabilidade variável, que é condicionada pela importância que se lhe é atribuída no caso concreto. Assim, a dimensão fundamental dos princípios é o peso.
É com base nessa diferenciação que Alexy (2008) considera que os direitos fundamentais têm, em sua maioria, estrutura de princípios, pois exigem que algo seja realizado na maior medida possível, segundo as condições fáticas e jurídicas do caso concreto.
Entretanto, os princípios, inclusive os direitos fundamentais, podem se colidir. Segundo o constitucionalista português, Canotilho (2012), a colisão ocorre quando o exercício de um direito fundamental lesa outro bem jurídico de igual natureza tutelado pela mesma Constituição.
Nesses casos, Barroso (2024, p. 165) preceitua que:
A prevalência de um princípio sobre outro não pode ser determinada em abstrato; somente à luz dos elementos do caso concreto será possível atribuir maior importância a um do que a outro. Ao contrário das regras, portanto, princípios não são aplicados na modalidade tudo ou nada, mas de acordo com a dimensão de peso que assumem na situação específica. Caberá ao intérprete proceder à ponderação dos princípios e fatos relevantes, e não a uma subsunção do fato a uma regra determinada.
Na mesma linha, Alexy (2008, p. 93-94) entende que:
Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder.
(...)
Os princípios têm pesos diferentes e os princípios com o maior peso têm precedência.
Dessa forma, caso direitos fundamentais se colidam, como eles têm estrutura de princípio, devendo abarcar, portanto, a maior quantidade de condutas possíveis (suporte fático amplo), o aplicador deve decidir, com base na ponderação, se o grau de restrição a um dado direito fundamental de liberdade é justificado pelo grau de satisfação de outro direito ou interesse. Ou seja, aquele princípio que detiver maior peso deverá prevalecer sobre o colidente (Belem, 2011).
Abaixo, serão elencados os princípios e os direitos fundamentais que são os principais cernes da discussão sobre a (in)compatibilidade das atribuições dos auditores fiscais de tributos com o exercício da advocacia privada.
3.1.1 PRINCÍPIO DA ISONOMIA
O princípio da isonomia (ou da igualdade perante a lei), estabelecido no caput do artigo 5º da Constituição Federal, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
Entretanto, Nery Junior (1999, p. 42) lembra que “dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”.
Segundo Resende e Bernardes Júnior (2018, p. 18 apud Mello, 2000):
O que se exige é que as desequiparações legais sejam racionalmente justificadas e que haja um nexo lógico entre elas e o regime diferenciado que é baseado nessas diferenças. Mas não só: exige-se, ainda, consoante o autor, que tais desequiparações racionalmente justificadas sejam compatíveis com nosso ordenamento constitucional.
Em outras palavras, o princípio da isonomia recomenda que não se adote tratamento diferenciado, em face de casos iguais. Este princípio, portanto, deve ser válido tanto na norma legislada quanto na sua aplicação pelo Poder Judiciário (Alvim, 2012).
O ilustre Ataliba (2007, p. 160) afirma que:
Não teria sentido que os cidadãos se reunissem em república, erigissem um estado, outorgassem a si mesmos uma constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem, seja de modo direto, seja indireto, a violação da igualdade fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional da ereção do regime. Que dessem ao estado --- que criaram em rigorosa isonomia cidadã --- poderes para serem usados criando privilégios, engendrando desigualações, favorecendo grupos ou pessoas, ou atuando em detrimento de quem quer que seja. A res pública é de todos e para todos. Os poderes que de todos recebem devem traduzir-se em benefícios e encargos iguais para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade, se não fosse marcada pela igualdade.
A igualdade é, assim, a primeira base de todos os princípios constitucionais e condiciona a própria função legislativa, que é a mais nobre, alta e ampla de quantas funções o povo, republicanamente, decidiu criar. A isonomia há de se expressar, portanto, em todas as manifestações de Estado, as quais, na sua maioria, se traduzem concretamente em atos de aplicação da lei, ou seu desdobramento. Não há ato ou forma de expressão estatal que possa escapar ou subtrair-se às exigências da igualdade.
Nos casos em que as competências dos órgãos do Estado - e estes casos são excepcionais - não se cinjam à aplicação da lei, ainda aí a isonomia é princípio que impera e domina. Onde seja violado, mistificado, fraudado, traído, há inconstitucionalidade a ser corrigida de ofício ou mediante pronta correção judicial. Toda violação da isonomia é uma violação aos princípios básicos do próprio sistema, agressão a seus mais caros fundamentos e razão de nulidade das manifestações estatais. Ela é como que a pedra de toque do regime republicano. (grifo nosso).
Diante do citado acima, é notório que, além de dever ser observado em todas as manifestações do Estado, sob pena de nulidade, o princípio da isonomia - pelo fato de ser concretizado, primordialmente, por meio de lei, que é abstrata e, portanto, impessoal - se correlaciona com o princípio da impessoalidade, o qual preceitua que o Poder Público deve tratar a todos os administrados sem discriminações e sem estabelecer privilégios ou favorecimentos a determinados indivíduos, grupos, cargos, carreiras ou categorias.
Dessa forma, a lei é o principal instrumento garantidor da isonomia e caso o legislador queira atribuir alguma limitação ao exercício da advocacia para ocupantes de determinados cargos públicos que tenham acesso ao mesmo tipo de informação, por exemplo, deverá estabelecer a restrição de modo igualitário entre eles, observando a impessoalidade, sob pena de estar violando esses princípios e, consequentemente, tornando a norma inconstitucional.
3.1.2 DIREITO AO LIVRE TRABALHO, OFÍCIO OU PROFISSÃO
Diante do que preceitua Barroso (2024), o art. 5º da CF/88 estabelece um “direito geral de liberdade”, que se caracteriza por um conjunto amplo de liberdades básicas, dentre as quais está o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, positivado no inciso XIII do referido artigo: “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Conforme se depreende do texto magno citado acima e da teoria da aplicabilidade das normas constitucionais, escrita pelo ilustre José Silva (2002), tal norma possui eficácia contida, ou seja, este direito é inicialmente autoaplicável, mas pode ser limitado por lei que venha a fixar qualificações mínimas ao exercício da profissão.
A doutrina, a exemplo de André Souza (2015), entende que o constituinte estabeleceu a possibilidade de o legislador infraconstitucional instituir essas “qualificações mínimas” com o intuito de evitar que um profissional desqualificado acarrete danos à coletividade ou prejuízos diretos a direitos de terceiros.
Entretanto, eventual regulamentação que a lei estabelecer ao exercício da profissão deve observar o princípio da proporcionalidade, em que o meio utilizado pelo legislador deve ser adequado e necessário ao fim visado, de modo a se evitar restrições desproporcionais que extrapolem a correlação entre a qualificação exigida e a finalidade de evitar danos à coletividade.
Nesse sentido, Ávila (2001, p. 15) dispõe que:
A proporcionalidade (“Verhältnismässigkeitsgrundsatz”) determina que um meio deva ser adequado, necessário — isto é, dentre todos os meios adequados aquele menos restritivo — e mantenha relação de proporcionalidade relativamente ao fim instituído pela norma.
O próprio Supremo Tribunal Federal também entende que a restrição legal desproporcional e que viola o conteúdo essencial de tal liberdade deve ser declarada inconstitucional.
Um dos motivos para a regulação ser feita da forma menos restritiva possível é que, de acordo com Otávio Silva (1999), a excessiva intervenção do Estado na criação das normas de Direito do Trabalho tende a levar os trabalhadores a atuarem na clandestinidade (empregados sem registro na carteira de trabalho, falsos autônomos, dentre outros).
Esse tipo de atuação pode ser mais danoso à coletividade, visto que, por estarem exercendo atividades a margem da oficialidade, o controle dos atos praticados por esses trabalhadores se torna mais difícil de ser realizado pelos órgãos competentes e pela própria sociedade.
Ademais, André Souza (2015) destaca, ainda, que, ao contrário do previsto na Constituição de 1937, a Carta Magna de 1988 não inseriu o “interesse público” como embasamento para, por si só, justificar limitação à liberdade profissional.
Dessa forma, caso o legislador queira adotar critérios que limitem o ingresso e o exercício da advocacia, deverá fazê-lo observando o princípio da proporcionalidade, sendo o menos restritivo possível, sem criar limitações desarrazoadas que não tenham o fim de evitar danos à coletividade e sem a justificativa de que a limitação foi ocasionada exclusivamente por motivos de interesse público.
3.1.3 PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO
Este princípio da administração pública não consta expressamente na CF/88, mas é encontrado em diversas regras constitucionais que apresentam as manifestações desta superioridade do interesse público.
De acordo com Mello (2009, p. 59), o interesse público “deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”.
Marinela (2014, p. 27) preceitua que o princípio da supremacia do interesse público:
Determina privilégios jurídicos e um patamar de superioridade do interesse público sobre o particular. Em razão desse interesse público, a Administração terá posição privilegiada em face dos administrados, além de prerrogativas e obrigações que não são extensíveis aos particulares.
Piovezan e Freitas (2015) consideram que a motivação legislativa das regras parcial ou totalmente proibitivas à advocacia (impedimentos e incompatibilidades, respectivamente) são justificadas pela ótica do interesse público e da proteção da advocacia.
Como mencionado anteriormente, o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão não poderia ser limitado exclusivamente pelo princípio do interesse público. A concomitância com a proteção da advocacia, nesse caso, permite que o acesso a essa atividade seja restringido.
Entretanto, apesar de ser um princípio que cita a “supremacia” do interesse público, assim como os demais princípios, este não é absoluto e nem sempre será aplicado, podendo ser relativizado a depender do caso concreto.
Um exemplo de relativização deste princípio pode ser observado na transação tributária. Esse instituto permite que o Fisco e o contribuinte negociem a extinção de débitos fiscais, priorizando soluções consensuais e práticas. Tal medida reflete a aplicação do princípio da eficiência, consagrado no art. 37 da CF/88, ao visar a máxima efetividade e economicidade na gestão pública, garantindo resultados mais ágeis e benéficos para ambas as partes (Queiroz, 2024).
Assim, o princípio da eficiência demonstra que o interesse público pode ser resguardado por meio de alternativas que conciliem valores como praticidade e proporcionalidade, sem recorrer a restrições absolutas que muitas vezes se mostram desnecessárias ou excessivamente gravosas e burocráticas.
Ademais, Ávila (2001, p. 16 e seg.) leciona que:
Outro argumento a excluir um fundamento de validade a esse princípio de supremacia é a parcial incompatibilidade com postulados normativos extraídos de normas constitucionais, sobretudo com os postulados normativos da proporcionalidade e da concordância prática, hoje aceitos pela doutrina e jurisprudência brasileiras. Sendo o Direito o meio mediante o qual são estabelecidas proporções entre bens jurídicos exteriores e divisíveis, deve ser estabelecida uma medida limitada e orientada pela sua máxima realização.
(...)
O Supremo Tribunal Federal (STF) vem, reiteradamente, decidindo que qualquer medida deve obedecer ao “princípio” da proporcionalidade, decorrente dos direitos e garantias fundamentais instituídos na CF/88. É que, se ao Estado incumbe respeitar os valores consagrados na Lei Maior, um pensamento consequente leva à utilização de instrumentos metódicos idôneos ao seu máximo desenvolvimento. Dois lados da mesma moeda.
Uma medida é adequada se o meio escolhido está apto para alcançar o resultado desejado. “É inadequado tentar tapar o sol com uma peneira”. O STF (Rp nº 930-DF, DJU 02.09.77) declarou inadequado exigir atestado de “condições de capacidade” para os corretores de imóveis se isso não é adequado ao exercício da profissão e a lei não o exigia.
(...)
A medida é proporcional se, relativamente ao fim perseguido, não restringir excessivamente os direitos envolvidos. (grifo nosso).
Dessa forma, para que o interesse público justifique a limitação ao exercício da advocacia imposta pelo Estatuto da OAB, a aplicação desse princípio deve respeitar a isonomia entre as atividades com proibição parcial e total de advogar e a restrição não pode se dar de maneira desproporcional, isto é, deve ser observada a menor restritividade possível, sob pena de inconstitucionalidade da norma.
3.2 ESTATUTO DA OAB
Como forma de regulamentar o exercício da advocacia, até o ano de 1994 vigoraram dois Estatutos da Advocacia no país, o Decreto nº 20.784/31 e a Lei nº 4.215/63.
Com a necessidade de se adequar à realidade profissional e social que essa profissão perpassava, o legislador criou o atual Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94).
Esse instrumento normativo prevê, dentre outras disposições, as qualificações mínimas para o desempenho dessa atividade, em consonância com o permitido pelo art. 5º, XIII da CF/88.
Com ele, a advocacia passou a ser entendida como exercício profissional de postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e como atividade de consultoria, assessoria e direção jurídicas. Também disciplinou o sentido e o alcance de sua indispensabilidade na administração da justiça, a inserção da advocacia pública e a tutela legal mínima do advogado empregado (Lôbo, 2024).
Dentre os diversos dispositivos presentes no referido Estatuto, os artigos 27 a 30 tratam das atividades que estão impedidas ou que são incompatíveis com o exercício da advocacia, e foram inseridos como forma de assegurar uma maior independência e autonomia para a atuação do advogado, conforme se verá a seguir.
3.2.1 IMPEDIMENTOS E INCOMPATIBILIDADES
De acordo com o art. 27 do EAOAB, “a incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a proibição parcial do exercício da advocacia”.
Ou seja, o exercício da advocacia pode ser limitado parcialmente (impedimento), nas hipóteses do artigo 30 do Estatuto da OAB, quando isso importar em medida suficiente, e deve ser proibido totalmente (incompatibilidade), quando tal medida seja estritamente necessária, nos termos do artigo 28 do EAOAB.
A incompatibilidade, por sua vez, possui consequências mais severas que o impedimento. Neste, o indivíduo ainda poderá se inscrever nos quadros da OAB e se tornar advogado, devendo apenas realizar a anotação do impedimento em seus registros. Já naquela, caso a incompatibilidade seja prévia à inscrição na OAB, por exemplo, torna-se impossível a inscrição do bacharel em Direito no quadro de advogados. Se ela for superveniente e permanente, irá gerar a exclusão dos quadros, inclusive com a perda definitiva do número de inscrição, que jamais o advogado poderá recuperar, caso possa retornar à advocacia por desincompatibilização decorrente de mudança na lei ou em sua situação pessoal.
Como a inscrição da OAB tem abrangência nacional, as incompatibilidades e os impedimentos também terão o mesmo alcance, perseguindo o indivíduo em qualquer local do território brasileiro (Piovezan; Freitas, 2015, p. 215).
4 A INCOMPATIBILIDADE DAS ATRIBUIÇÕES DO AUDITOR FISCAL DE TRIBUTOS COM O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA PRIVADA
Os auditores fiscais de tributos, por ocuparem um cargo que possui as competências definidas no art. 28, VII, do EAOAB, estão inseridos no tipo de vedação mais rígido, que é a incompatibilidade, não podendo praticar qualquer ato de advocacia judicial ou extrajudicial, sendo, até mesmo, proibidos de advogar em causa própria.
Ademais, em razão de a proibição a que os auditores fiscais se sujeitam ser referente ao cargo, ela permanecerá mesmo que o ocupante do cargo ou da função deixe de exercê-lo temporariamente, conforme transcrição da lei abaixo:
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:
(...)
VII - ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais;
(...)
§ 1º A incompatibilidade permanece mesmo que o ocupante do cargo ou função deixe de exercê-lo temporariamente.
A incompatibilidade, portanto, somente irá cessar com o término definitivo do vínculo do indivíduo com o cargo ou com a função incompatível (exoneração, demissão, aposentadoria ou morte) (Piovezan; Freitas, 2015, p. 216).
4.1 IMPEDIMENTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS, DOS PROCURADORES E DOS AUDITORES DE CONTROLE EXTERNO
O Estatuto da OAB permite, em regra, que os servidores públicos em geral exerçam a advocacia privada, desde que não advoguem contra a Fazenda Pública que os remunera ou à qual seja vinculada a entidade empregadora. Ou seja, os servidores não podem advogar apenas contra o ente público que efetua o pagamento da sua remuneração.
Ademais, ainda existe a possibilidade de o servidor público poder advogar até mesmo contra a Fazenda Pública que o remunera ou à qual seja vinculada a entidade empregadora, caso ele seja docente de curso jurídico, in verbis:
Art. 30. São impedidos de exercer a advocacia:
I - os servidores da administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora;
II - os membros do Poder Legislativo, em seus diferentes níveis, contra ou a favor das pessoas jurídicas de direito público, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, entidades paraestatais ou empresas concessionárias ou permissionárias de serviço público.
Parágrafo único. Não se incluem nas hipóteses do inciso I os docentes dos cursos jurídicos.
Apesar de ser um tema pouco discutido, autores renomados como Araújo (2006, p.12), Piovezan e Freitas (2015, p. 232), por sua vez, entendem que o principal motivo que incompatibiliza as atribuições dos auditores de tributos com o exercício da advocacia privada é o acesso deles a “informações tributárias privilegiadas”.
Entretanto, de maneira controversa, os procuradores estaduais e municipais, que também têm acesso a esse mesmo tipo de informação, podem advogar na esfera privada, porém submetidos à mesma limitação imposta aos servidores públicos em geral.
Esses advogados públicos têm acesso a dados, elaborados pelos próprios auditores fiscais de tributos, que contêm elementos sigilosos dos contribuintes, para realizar a defesa judicial do ente, e a sistemas informatizados que também fornecem esses tipos de informações.
No Município de Salvador, por exemplo, os procuradores têm acesso ao Sistema de Protocolo (SIP) da Secretaria da Fazenda Municipal, o qual lhes permite verificar documentos que contêm laudos técnicos e perícias feitas pelos auditores fiscais, e ao Sistema de Acompanhamento de Processos (SIAP), que, dentre outras funcionalidades, possibilita a consulta a processos administrativos fiscais, resultantes de autos de infração ou de notificações de lançamento, e possui o recurso “Busca Inteligente”, o qual viabiliza o acesso direto a diversos dados de contribuintes, como o cadastro na Secretaria da Fazenda do Município, na Receita Federal e na Junta Comercial do Estado da Bahia, utilizando apenas o número do CPF ou do CNPJ.
É válido destacar que os advogados e os procuradores das carreiras da Advocacia Geral da União (AGU), a exemplo dos Procuradores da Fazenda Nacional, que também possuem acesso a informações tributárias privilegiadas, também estão enquadrados nessa hipótese de limitação parcial do art. 30, I do EAOAB. Entretanto, eles só são proibidos de advogar fora das suas atribuições institucionais, em virtude do disposto no art. 28, I da Lei Orgânica da AGU (Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993).
Ademais, os auditores de controle externo, que, assim como os auditores fiscais de tributos, também possuem a qualidade de autoridade administrativa, têm o direito de acessar informações tributárias, mesmo que estejam sob sigilo fiscal, desde que isso seja necessário para o exercício de suas funções constitucionais de controle externo e de fiscalização da aplicação dos recursos públicos.
O artigo 198, §1º, II, do CTN e a jurisprudência pátria autorizam o acesso às informações tributárias pelos Tribunais de Contas, conforme se depreende da lei e do acórdão abaixo:
Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.
§ 1o Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes:
I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça;
II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa.
AGRAVO REGIMENTAL – MANDADO DE SEGURANÇA – VIA ADEQUADA – REQUISIÇÃO DE INFORMAÇÕES PELO TRIBUNAL DE CONTAS À SECRETARIA DE FAZENDA DO ESTADO – CONTROLE EXTERNO – DADOS NÃO ACOBERTADOS PELO SIGILO FISCAL – AGRAVO PROVIDO.
Depreende-se das alegações supracitadas que a requisição de informações pelo Tribunal de Contas não caracteriza quebra de sigilo fiscal previsto no artigo 198, caput, do Código Tributário Nacional, sendo o mandado de segurança a via adequada para se insurgir contra a negativa do fornecimento de informações. O acesso às fontes de informações na Fazenda Pública, órgão que centraliza e promove a arrecadação dos tributos estaduais, é direito assegurado ao Tribunal de Contas, ainda em se tratando, se for o caso, de documentos havidos como sigilosos, sigilo este que tem o aspecto de proibição para divulgação perante o público em geral, não, contudo, perante o próprio Tribunal para, se for também o caso, identificar os instrumentos adequados para cada procedimento de fiscalização que pode empreender no exercício regular de sua competência que as Constituições Federal e do Estado a ele outorgam.
(TJ-MT - MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL: 1003845-50.2017.8.11.0000, Relator: HELENA MARIA BEZERRA RAMOS, Data de Julgamento: 03/08/2017, Turma de Câmaras Cíveis Reunidas de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 18/08/2017, grifo nosso).
É válido destacar que, de acordo com o art. 247 da CF/88, as carreiras de auditor fiscal de tributos, de auditor de controle externo e de procurador são típicas de Estado, porquanto desenvolvem atividades-fim que permitem o funcionamento institucional dos Poderes da República.
Ou seja, de acordo com o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (2022), entidade representativa de categorias funcionais que desenvolvem atividades essenciais e exclusivas do Estado brasileiro, os ocupantes dessas carreiras exercem atribuições relacionadas à expressão do Poder Estatal, não possuindo, portanto, correspondência no setor privado e, pelo fato de integrarem o núcleo estratégico do Estado, requerem maior capacitação e responsabilidade daqueles que desenvolvem essas atividades.
Dessa forma, em virtude da relevância dessas categorias para o Estado brasileiro, os servidores que desempenham tais funções são indivíduos que possuem maior qualificação e que precisam atuar de maneira ainda mais responsável do que os demais servidores públicos (FONACATE, 2022).
Assim, o Estatuto da OAB, ao estabelecer tratamento diferenciado entre carreiras típicas de Estado que possuem acesso ao mesmo tipo de informações privilegiadas, pareceu inferir que todos os auditores fiscais de tributos não teriam a capacidade de exercer a advocacia de maneira ética e independente, ao contrário dos procuradores e dos auditores de controle externo.
Diante ao exposto, é evidente que a permissão para que os procuradores estaduais e municipais e os auditores de controle externo, os quais também podem ter acesso a informações tributárias privilegiadas, de modo a possuir significativo poder sobre interesses de terceiros, possam advogar, estando sujeitos apenas à limitação parcial prevista no art. 30, I do Estatuto da OAB, enquanto que os auditores fiscais de tributos, que possuem alcance ao mesmo tipo de informação, são completamente proibidos de exercer a advocacia, nos termos do art. 28, VII do EAOAB, representa uma clara violação ao princípio da isonomia e ao direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, conforme se verá a seguir.
4.2 VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA
Como já mencionado anteriormente, a doutrina atribui a sujeição dos auditores fiscais de tributos à proibição total do exercício da advocacia privada ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, pelo fato de que eles possuem acesso a informações tributárias privilegiadas, o que os confeririam significativo poder sobre interesses de terceiros e os colocariam em um patamar de superioridade em relação aos demais advogados.
Entretanto, a mesma proibição não foi aplicada aos procuradores estaduais e municipais que também podem ter acesso a esse mesmo tipo de informação. Eles estão sujeitos à vedação parcial (impedimento) do art. 30, I do EAOAB, pois são considerados servidores públicos comuns, de modo que apenas não podem advogar contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora. Esse entendimento, inclusive, já foi ratificado por diversas decisões emanadas pela própria OAB, a exemplo das expostas abaixo:
Ementa n. 044/2016/PCA. Recurso ao Conselho Federal. Incompatibilidade. Art. 29, EAOAB. Procurador Municipal. Chefia. Presunção. Inexistência de prova nos autos. Provimento. Anotação de impedimento. Art. 30, I, EAOAB. Interpretação restritiva. 1) A aplicação do art. 29, EAOAB, está a exigir prova efetiva da ocupação de função de Procurador Geral de Município. 2) Na ausência de provas, o procurador municipal que foi aprovado em concurso público, para exercer a função pública por 20 horas semanais, está impedido “contra a Fazenda Pública que o remunere” (art. 30, I, EAOAB). 3) Provimento. (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. RECURSO N. 49.0000.2015.009438-7/PCA. Recte: Solano Gabriel Cecchin Prates OAB/PR 71796 (Adv: Naude Pedro Prates OAB/PR 15660). Interessado: Conselho Seccional da OAB/Paraná. Relator: Conselheiro Federal Ary Raghiant Neto (MS). Brasília, (DOU, S.1, 25.04.2016, p. 70).
IMPEDIMENTO - PROCURADOR MUNICIPAL - DEFESA EM CAUSA PRÓPRIA - INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 30, I DO ESTATUTO - POSSIBILIDADE DA AUTODEFESA.
O instituto do impedimento está assentado em dois pilares mestres, sendo um o percebimento de proventos pelo erário público e outro relacionado a várias razões como a possibilidade de tráfico de influências, captação de causas e clientes, informações privilegiadas, sigilo, lealdade, redução da independência profissional, concorrência desleal com os colegas, etc. Todo este elenco aflora quando o advogado impedido está a patrocinar causas de clientes contra o ente público que o remunera, mas não quando postula direito próprio contra seu empregador, ente estatal. Não se vislumbra na defesa em causa própria, data máxima vênia, mácula ética ou estatutária com este agir, pois a dignidade da profissão está resguardada, não representando qualquer privilégio em desfavor dos demais advogados, preservando a nobreza da Advocacia. O advogado ocupante de cargo de procurador municipal é servidor público e nesta condição, como qualquer outro servidor, em processo administrativo em seu desfavor, de acordo com as normas de Direito Administrativo, pode autodefender-se e, por razão maior, seria ilógico, o servidor advogado não poder fazê-lo. Reiteramos não haver no Estatuto vedação ao exercício em causa própria para casos de impedimento, mas sim na incompatibilidade. O que se veda é o exercício da advocacia a terceiros fora das atribuições institucionais. Exegese do artigo 30, I do Estatuto, artigo 103, § único CPC e precedentes E-3.464/2007, E-1.924/99 do Tribunal de Ética e R.O.E. 49.0000.2011, do Conselho Federal da OAB. (Ordem dos Advogados do Brasil. Proc. E-4.964/2017 - v.u., em 22/02/2018, do parecer e ementa do Rel. Dr. CLÁUDIO FELIPPE ZALAF - Rev. Dr. FÁBIO GUIMARÃES CORRÊA MEYER - Presidente Dr. PEDRO PAULO WENDEL GASPARINI, grifo nosso).
Destaque-se que a própria decisão do Conselho Federal da OAB supra reconhece que o impedimento, limitação menos restritiva do que a incompatibilidade, foi instituído para, dentre outras funções, coibir o uso irregular de informações privilegiadas pelo advogado privado.
Ademais, a mesma restrição parcial aplicada aos procuradores foi atribuída aos auditores de controle externo, conforme decisão emanada, também, pela OAB abaixo, sendo que esses profissionais também podem ter acesso ao mesmo tipo de informação tributária privilegiada.
Ementa n. 078/2019/OEP. CONSULTA. ALCANCE DA EXPRESSÃO “MEMBROS” CONSTANTE DO INCISO II DO ART. 28 DA LEI N° 8.906/94, NO QUE SE REFERE AOS TRIBUNAIS E CONSELHOS DE CONTAS. SERVIDORES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS. INEXISTÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE COM A ADVOCACIA. NÃO ENQUADRAMENTO. 1. As hipóteses legais de incompatibilidade com a advocacia devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de ferimento à liberdade fundamental de exercício profissional; 2. A expressão “membros” é utilizada na Constituição para designar, na linguagem de Celso Antônio Bandeira de Mello para definir agentes políticos, “titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado”; 3. São membros: (...) e) do Tribunal de Contas: Ministros do TCU, Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados e Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Municípios do Rio de Janeiro e São Paulo; 4. (...) quando se refere a “membros” de órgãos dos tribunais e conselhos de contas, a norma está se referindo aos Conselheiros e Ministros dos Tribunais de Contas, não aos seus servidores; 5. A expressão membros constante do inciso II do Art. 28 da Lei n. 8.906/94, no que tange aos tribunais e conselhos de contas, abrange apenas os Ministros do Tribunal de Contas da União e os Conselheiros dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Estados e dos Municípios do Rio de Janeiro e São Paulo, não alcançando os servidores desses mesmos Tribunais e Conselhos. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros do Órgão Especial do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, observado o quórum exigido art. 92 Regulamento Geral, por maioria, em responder à consulta, nos termos do voto do Relator. Brasília, 17 de setembro de 2019. Luiz Viana Queiroz, Presidente. Maurício Gentil Monteiro, Relator. (DEOAB, a. 1, n. 194, 3.10.2019, p. 4, grifo nosso)
Portanto, não poderia o legislador vedar totalmente que os auditores fiscais exerçam a advocacia com base na proteção da advocacia e no princípio do interesse público e concomitantemente relativizá-los em relação aos procuradores e auditores de controle externo, visto que a diferença no tratamento entre essas carreiras, típicas de Estado e que detêm acesso às mesmas informações privilegiadas, de modo a possuírem significativo poder sobre interesses de terceiros, revela uma notória violação ao princípio da isonomia, consagrado no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual, como visto acima, visa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
Atribuir aos ocupantes dos cargos de procurador e de auditor de controle externo a possibilidade de advogar e proibir totalmente os auditores fiscais de tributos de exercerem essa atividade, sendo que todas essas três carreiras públicas têm acesso ao mesmo tipo de informação privilegiada, configura um favorecimento inconstitucional instituído por lei (Estatuto da OAB) àquelas duas primeiras carreiras.
Nesse caso, tendo em vista o conflito entre os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e o da isonomia, este último tem mais peso, conforme lecionado por Ataliba (2007), o qual afirma que todas as manifestações do Estado devem observar a isonomia, sob pena de inconstitucionalidade, razão pela qual deveria prevalecer sobre o outro princípio colidente, e, tendo em vista, também, a garantia da impessoalidade, na qual o Poder Público não pode favorecer ou privilegiar determinado grupo, e a possibilidade de se efetuar o controle em caso de possíveis irregularidades cometidas pelos auditores fiscais no exercício da advocacia, assim como já ocorre com os procuradores e com os auditores de controle externo.
4.3 DESPROPORCIONALIDADE EM RELAÇÃO AO DIREITO AO LIVRE TRABALHO, OFÍCIO OU PROFISSÃO
Como visto anteriormente, a Carta Magna (1988) em seu artigo 5º, inciso XIII, dispõe que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” e caso o legislador queira estabelecer critérios que limitem o exercício de determinada profissão, deverá fazê-lo observando o princípio da proporcionalidade, sendo o menos restritivo possível, sem criar limitações desarrazoadas que não tenham o fim de evitar danos à coletividade.
Entretanto, de forma contrária ao que preceituam a CF/88, a doutrina e a jurisprudência, o art. 28, VII do Estatuto da OAB revela-se inconstitucional, uma vez que, além de violar o princípio da isonomia, também criou uma proibição desproporcional e desarrazoada ao livre exercício da advocacia aos ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais (incumbências próprias do auditor fiscal), visto que eles poderiam perfeitamente se encaixar na mesma regra de proibição parcial (impedimento) aplicável aos servidores públicos em geral, conforme reconhecido pelo Conselho Federal da OAB em decisão colacionada anteriormente.
Caso os auditores fiscais de tributos fossem enquadrados na hipótese de impedimento prevista no art. 30, I, o próprio Tribunal de Ética da OAB poderia efetuar a fiscalização dos atos praticados por esses profissionais e aplicar as sanções cabíveis, de modo a se evitar possíveis conflitos de ordem ética e moral, assim como já é feito com os demais servidores públicos impedidos.
Ademais, caso esses servidores cometessem alguma irregularidade no exercício da advocacia, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério Público da União e dos Estados, os Tribunais de Contas e as Polícias Civil e Federal, de ofício ou mediante iniciativa de qualquer pessoa, têm a possibilidade de exercer a fiscalização e de proceder com as medidas cabíveis para reprimir tais condutas, de modo a ensejar a responsabilização desses agentes públicos, ora advogados, nas esferas cível, penal e administrativa, assim como também estão sujeitos os procuradores e os auditores de controle externo.
Na esfera administrativa, além das sanções que poderão ser impostas pela OAB em virtude do cometimento de atos irregulares na qualidade de advogado, os Estatutos dos Servidores Públicos dos Estados e dos Municípios, a exemplo do Estado da Bahia e do Município de Salvador, espelhando-se no disposto nos arts. 117, IX e 132, XIII da Lei nº 8112/90 (Estatuto do Servidor Público Federal), preveem pena de demissão para o servidor que “se valer do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública”.
No âmbito civil, há a possibilidade de o servidor responder pelos atos ilícitos praticados com base no Código Civil e na Lei de Improbidade Administrativa.
Já na seara penal, o auditor pode sofrer sanções com base no Código Penal, caso cometa o crime de advocacia administrativa, previsto no seu art. 321, por exemplo, na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/19), na Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária (Lei nº 8.137/90), dentre outros.
Entretanto, com a proibição total, alguns auditores fiscais podem atuar como advogados de maneira clandestina, ou seja, realizando atos que dificultem a possibilidade de ser identificado ou rastreado (como ao elaborar petições e, posteriormente, designar outro profissional para assiná-las, ou ao apenas prestar consultorias, sem efetuar a representação legal).
Como visto anteriormente, essa prática, motivada principalmente pela regulação excessiva do Estado no direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, pode ser mais gravosa à coletividade, uma vez que, por estarem atuando de maneira não oficial, torna mais difícil que a sociedade e que os órgãos competentes realizem o controle dos atos praticados por esses profissionais.
Portanto, diante do conflito entre o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, este último deveria prevalecer, uma vez que, no caso dos auditores fiscais de tributos, a incompatibilidade é inconstitucional, porquanto não é o instituto menos restritivo possível, trazendo maiores riscos à sociedade, tendo em vista a possibilidade de alguns desses agentes advogarem de forma clandestina, o que torna o controle de possíveis irregularidades mais difícil, e ferindo o princípio da proporcionalidade, visto que a restrição parcial, por si só, consoante reconhecido pelo próprio Conselho Federal da OAB, seria uma medida de menor limitação, suficiente e capaz de coibir a utilização de informações privilegiadas pelo advogado privado, de possibilitar a aplicação de sanções em caso de transgressões e de prevenir a ocorrência de danos à coletividade e de problemas de conflitos de interesses e de ordem ética e social, conforme já ocorre com o impedimento a que os auditores de controle externo e os procuradores estaduais e municipais, inclusive os que atuam na área tributária, estão sujeitos, por exemplo.
4.4 IMPACTOS GERADOS PELA INCOMPATIBILIDADE
Além de o tratamento desigual entre carreiras que possuem acesso ao mesmo tipo de informação ferir direitos e princípios fundamentais da Constituição de 1988, a incompatibilidade pode levar alguns auditores fiscais de tributos a atuarem na advocacia de maneira clandestina, situação que traz maiores riscos à atividade e à coletividade, uma vez que, nesse caso, é mais difícil de se realizar o controle de possíveis atos irregulares praticados.
Como visto anteriormente, a limitação ao direito ao livre trabalho, ofício ou profissão pode ser feita com vistas a se evitar danos à coletividade. Entretanto, nesse caso, a proibição, realizada de forma desproporcional, traz mais riscos à sociedade do que se os auditores pudessem advogar observando a restrição parcial prevista no art. 30, I do EAOAB, uma vez que a atuação de maneira não oficial dificulta a fiscalização em caso de cometimento de irregularidades.
Nessa situação, o enquadramento dos auditores fiscais no rol de impedidos do EAOAB seria mais eficaz na proteção à advocacia e ao interesse público, pois os atos desses profissionais seriam praticados de maneira formal, de modo a facilitar a atuação dos mecanismos de controle, dificultando, assim, a prática de condutas adversas.
Ademais, de acordo com Figueiredo (2018), a comunidade jurídica reconhece que a advocacia, apesar de possuir um grande número de profissionais, ainda carece de bons causídicos. A proibição total estabelecida pelo inciso VII do art. 28 do EAOAB priva a advocacia privada de ter uma boa fonte de mão de obra qualificada, o que representa uma perda à sociedade, ao judiciário e à própria advocacia.
5 CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, é possível afirmar que as atribuições do auditor fiscal de tributos podem ser compatibilizadas com o exercício da advocacia privada, desde que haja restrições que preservem a autonomia e a independência de ambas as atividades.
A alternativa mais justa seria a de prevalecer o princípio da isonomia e o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, de modo a enquadrar os auditores fiscais de tributos na mesma limitação imposta aos demais servidores públicos, vedando-os apenas de advogar contra a Fazenda Pública que os remunera ou à qual seja vinculada a entidade empregadora, de modo a afastar eventuais conflitos de interesses.
É válido relembrar que os auditores de controle externo e os procuradores estaduais e municipais, que também podem ter acesso a informações tributárias privilegiadas, se submetem a essa mesma limitação citada acima, menos restritiva e capaz de coibir a prática de atos irregulares e a utilização desse tipo de informação. A compatibilização, portanto, seria uma medida de garantir a justiça e a igualdade, uma vez que conferiria tratamento isonômico entre as carreiras.
Ademais, é inegável que os Fiscos possuem excelentes profissionais, prontamente em virtude do elevado conhecimento exigido para exercer um cargo de tamanha importância para o Estado e para a sociedade. Outrossim, como, em regra, não há formação superior específica para ser investido nesse cargo, existem diversos desses qualificados auditores fiscais de tributos formados em Direito que poderiam desempenhar a advocacia, mas que são totalmente proibidos de exercê-la, em virtude do disposto no Estatuto da OAB.
Assim, proibir totalmente os auditores fiscais graduados em Direito de exercer a advocacia privada, na verdade, contraria o verdadeiro interesse público, uma vez que, além de possibilitar que alguns desses agentes advoguem de maneira clandestina, representa uma grande perda à sociedade, ao judiciário e à advocacia brasileira, sendo que, esta última, apesar de já ter um mercado saturado, ainda necessita de bons profissionais.
Portanto, a permissão do exercício da advocacia privada pelos auditores fiscais de tributos, limitando-os apenas de advogar contra a Fazenda Pública que os remunera ou à qual seja vinculada a entidade empregadora, mediante alteração legislativa do Estatuto da OAB ou por meio de declaração de inconstitucionalidade do inciso do artigo que veda totalmente os auditores fiscais de tributos de exercer a advocacia privada, por violar o princípio da isonomia e o direito ao livre trabalho, ofício ou profissão, é plenamente cabível perante a conjuntura do ordenamento jurídico atual e seria uma medida justa e benéfica, não só aos próprios auditores fiscais, mas também ao judiciário, à advocacia e a toda a sociedade.
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Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZAMBENEDETTI, Filipe Lauria. A (in)compatibilidade das atribuições do auditor fiscal de tributos com o exercício da advocacia privada: uma análise dos fundamentos pertinentes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2025, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69860/a-in-compatibilidade-das-atribuies-do-auditor-fiscal-de-tributos-com-o-exerccio-da-advocacia-privada-uma-anlise-dos-fundamentos-pertinentes. Acesso em: 03 nov 2025.
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