RESUMO: O presente artigo analisa a evolução, os fundamentos e os desafios da arbitragem como meio de resolução de controvérsias envolvendo o Poder Público no Brasil. A pesquisa examina o processo de consolidação normativa inaugurado pela Lei nº 9.307/1996, reformada pela Lei nº 13.129/2015, e ampliado pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021). O estudo busca compreender sob quais condições jurídicas a Administração Pública pode recorrer à arbitragem sem comprometer os princípios que regem a gestão pública, como legalidade, publicidade, moralidade e indisponibilidade do interesse público. A metodologia é teórico-dogmática, baseada em revisão legislativa, doutrinária e jurisprudencial, com ênfase em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Tribunal de Contas da União (TCU). A hipótese central sustenta que a arbitragem, quando aplicada a direitos patrimoniais disponíveis e conduzida com transparência, constitui instrumento legítimo e eficiente para promover segurança jurídica e eficiência administrativa.
Palavras-chave: Arbitragem; Administração Pública; Contratos Administrativos; Eficiência; Segurança Jurídica.
1 INTRODUÇÃO
A arbitragem consolidou-se no Brasil como um dos principais instrumentos de desjudicialização e modernização do sistema de justiça. Embora tenha sido tradicionalmente vinculada às relações privadas, a sua incorporação ao âmbito das contratações públicas representa um avanço institucional significativo. O movimento de reconhecimento da arbitragem na esfera estatal tem como marco a promulgação da Lei nº 9.307/1996, que instituiu o regime jurídico do instituto, e, sobretudo, a reforma promovida pela Lei nº 13.129/2015, que autorizou expressamente sua aplicação pela Administração Pública direta e indireta. Posteriormente, a Lei nº 14.133/2021 consolidou a arbitragem como um dos meios adequados de solução de controvérsias administrativas.
Historicamente, a resistência à utilização da arbitragem pelo Estado decorreu da crença de que a submissão de litígios administrativos a juízos privados violaria a supremacia e a indisponibilidade do interesse público. Contudo, a doutrina e a jurisprudência evoluíram para reconhecer que tais princípios não impedem a arbitragem, desde que o objeto da controvérsia envolva direitos patrimoniais disponíveis. Além disso, o instituto contribui para a eficiência, a especialização técnica e a previsibilidade das decisões, valores essenciais em um cenário de crescente complexidade contratual.
A pesquisa justifica-se pela relevância prática e teórica do tema, sobretudo diante da expansão dos contratos de concessão e parceria público-privada (PPP), nos quais a arbitragem tem sido instrumento eficaz de solução de litígios. O artigo tem como objetivos identificar os fundamentos jurídicos e constitucionais da arbitragem com o Poder Público, examinar os limites e controles aplicáveis à sua utilização e discutir os desafios e perspectivas do instituto no contexto das contratações administrativas. A metodologia adotada é teórico-dogmática, com base em análise da legislação, doutrina e jurisprudência, e o método de exposição combina descrição normativa e reflexão crítica.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Fundamentos e legitimidade da arbitragem com o Poder Público
Segundo Barros (2024), a atuação do Poder Público em juízo, inclusive em arbitragens, não implica abdicação de suas prerrogativas processuais, mas sim a adaptação delas a um ambiente de paridade procedimental. O autor observa que a Administração Pública, ao recorrer à arbitragem, não renuncia à legalidade ou ao controle, mas busca uma forma técnica e célere de solucionar litígios complexos.
A arbitragem encontra respaldo constitucional no princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição Federal) e no direito fundamental à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII). Tais princípios legitimam a adoção de meios alternativos de solução de controvérsias que promovam celeridade, economia processual e especialização técnica (CARMONA, 2020). Conforme Di Pietro (2023), a indisponibilidade do interesse público não impede a arbitragem, desde que o litígio envolva direitos patrimoniais disponíveis. Nesse contexto, os contratos administrativos podem prever cláusulas compromissórias para dirimir disputas sobre equilíbrio econômico-financeiro, inadimplemento, indenizações e extinção contratual.
A reforma introduzida pela Lei nº 13.129/2015 pacificou a compatibilidade da arbitragem com a Administração Pública, estabelecendo que os litígios poderão ser solucionados por árbitros quando versarem sobre direitos patrimoniais disponíveis. A nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) reforçou essa diretriz ao prever expressamente a adoção de meios adequados de solução de controvérsias, como conciliação, mediação e arbitragem (BRASIL, 2021). O STJ consolidou entendimento no sentido de que o Poder Público, ao celebrar cláusulas arbitrais, assume voluntariamente a obrigação de submeter-se ao juízo arbitral, aplicando-se os princípios da boa-fé objetiva e da segurança jurídica (STJ, 2018; STJ, 2020).
Autores como Justen Filho (2022) e Floriano de Azevedo Marques (2021) ressaltam que a arbitragem pública fortalece a governança contratual e contribui para a estabilidade dos investimentos, especialmente em contratos de infraestrutura. O TCU, por sua vez, reconheceu a legitimidade do instituto, desde que respeitados os princípios da publicidade, legalidade e economicidade (TCU, 2018).
2.2 Cláusula compromissória e aspectos procedimentais
A cláusula compromissória é o instrumento jurídico que vincula as partes à arbitragem. Nos contratos administrativos, sua inclusão depende de autorização legal e de manifestação de vontade inequívoca da Administração, observando-se as diretrizes fixadas pela Lei nº 13.129/2015. Segundo Carmona (2020), a cláusula deve especificar a instituição arbitral, a sede, o idioma, o direito aplicável e a forma de custeio do procedimento. O Decreto nº 10.025/2019 estabeleceu parâmetros procedimentais para arbitragens no setor de transportes, exigindo sede no Brasil, idioma português e julgamento em direito (BRASIL, 2019).
A inserção da cláusula compromissória em contratos administrativos reflete o amadurecimento institucional do Estado contemporâneo, que reconhece a arbitragem como instrumento de isonomia processual e eficiência decisória. Destaca-se que a arbitragem pública não transforma o Estado em particular, mas o obriga a agir sob a mesma racionalidade de previsibilidade e boa-fé (BARROS, 2024).
A escolha da arbitragem institucional, em detrimento da ad hoc, é preferível quando envolve o Poder Público, pois assegura maior controle e transparência (VALLE; PIMENTA, 2020). A Administração não pode afastar-se do procedimento sem justificativa legal, e eventual resistência pode configurar violação de dever contratual. A doutrina também recomenda a adoção de cláusulas escalonadas, combinando dispute boards e arbitragem, a fim de prevenir litígios e racionalizar custos (JUSTEN FILHO, 2022).
2.3 Limites, controle e desafios institucionais
A arbitragem pública é limitada por princípios estruturantes do Direito Administrativo. Somente direitos patrimoniais disponíveis podem ser submetidos a árbitros, permanecendo vedada a análise de atos de império, poder de polícia e sanções administrativas (DI PIETRO, 2023). A publicidade, ainda que mitigada, é requisito indispensável, devendo garantir o acesso à informação e a fiscalização social (VALLE; PIMENTA, 2020).
Ressalta-se que, ainda que o procedimento seja sigiloso, as decisões com impacto financeiro devem ser divulgadas. Do ponto de vista judicial, o controle da sentença arbitral é excepcional e restrito às hipóteses do art. 32 da Lei nº 9.307/1996, como nulidade da convenção, prevaricação, corrupção ou ofensa à ordem pública (CARMONA, 2020).
Conforme Barros (2024), o controle judicial sobre a sentença arbitral deve respeitar a autonomia do procedimento, cabendo ao Judiciário apenas garantir a observância de princípios constitucionais, sem substituir o juízo de mérito dos árbitros. Tal posição reforça a harmonia entre jurisdição estatal e autonomia da vontade administrativa.
Os principais desafios enfrentados são de natureza cultural e operacional. Há resistência de alguns gestores públicos, receio de responsabilização e carência de capacitação técnica. Além disso, o custo do procedimento arbitral, embora elevado, deve ser ponderado em face da celeridade e da especialização proporcionadas (JUSTEN FILHO, 2022; DI PIETRO, 2023). Superar esses obstáculos requer políticas de capacitação, padronização de cláusulas e maior integração entre órgãos de controle e câmaras arbitrais.
2.4 Perspectivas práticas e setoriais
Nos últimos anos, a arbitragem consolidou-se em setores estratégicos, como infraestrutura, energia e saneamento. Em concessões rodoviárias, decisões arbitrais têm solucionado litígios sobre reequilíbrio econômico-financeiro, reconhecendo que o risco de demanda é do concessionário (FGV, 2023).
Na área portuária e de transportes, o Decreto nº 10.025/2019 foi decisivo para institucionalizar a prática, garantindo segurança jurídica aos investidores (BRASIL, 2019). No saneamento básico, o Marco Legal (Lei nº 14.026/2020) autorizou a arbitragem para disputas contratuais, preservando a competência regulatória da ANA (BRASIL, 2020). Tais experiências demonstram que o instituto contribui para a estabilidade contratual e a previsibilidade econômica, reduzindo litígios judiciais e estimulando parcerias público-privadas.
Além desses setores regulados, a arbitragem vem sendo incorporada de forma crescente nas contratações públicas em geral, especialmente em contratos administrativos de grande vulto e parcerias público-privadas (PPP). A Lei nº 14.133/2021 consolidou a tendência ao prever expressamente, em seu art. 151, que as controvérsias contratuais poderão ser resolvidas por arbitragem, mediação ou comitês de resolução de disputas (BRASIL, 2021). Essa previsão demonstra o reconhecimento da necessidade de mecanismos céleres e especializados para lidar com a complexidade técnica e financeira dos contratos administrativos modernos (JUSTEN FILHO, 2022).
O uso da arbitragem nas contratações públicas traduz uma mudança paradigmática na forma como o Estado se relaciona com os particulares, pois substitui o modelo verticalizado e autoritário por uma lógica de cooperação e equilíbrio contratual.
Em contratações de obras e serviços de engenharia, a arbitragem tem se mostrado especialmente útil para dirimir controvérsias técnicas, como divergências sobre cronogramas, medições, revisões contratuais e recomposições de equilíbrio econômico-financeiro. A atuação de árbitros com expertise no setor reduz o tempo de resolução e evita a paralisação de contratos essenciais, o que garante continuidade administrativa e economicidade (DI PIETRO, 2023; MARQUES, 2021).
Por outro lado, a efetividade da arbitragem em contratos públicos exige estrutura normativa e administrativa adequada, especialmente no tocante à capacitação de gestores, à padronização de cláusulas compromissórias e à definição de critérios de custeio. O TCU tem recomendado que os órgãos públicos elaborem modelos de cláusulas arbitrais que garantam transparência, publicidade e previsibilidade procedimental (TCU, 2018). A jurisprudência administrativa demonstra que, quando bem regulada, a arbitragem reduz o passivo judicial e aumenta a confiança de investidores privados em projetos públicos de longo prazo (CARMONA, 2020).
Dessa forma, observa-se que a arbitragem pública deixa de ser um mecanismo excepcional e passa a integrar a rotina contratual da Administração, tornando-se parte da política pública de boa governança e gestão eficiente. Sua difusão nas contratações públicas reforça a transição do Estado litigante para o Estado cooperativo, capaz de resolver conflitos com técnica, transparência e respeito ao princípio da eficiência.
3 CONCLUSÃO
A arbitragem nas relações com o Poder Público consolidou-se como instrumento legítimo, eficiente e juridicamente seguro para a resolução de controvérsias administrativas. As reformas legislativas e a evolução jurisprudencial confirmam sua compatibilidade com os princípios da Administração Pública, desde que restrita a direitos patrimoniais disponíveis e conduzida com publicidade compatível.
O STF, o STJ e o TCU vêm reafirmando a validade do instituto, estabelecendo limites e boas práticas que equilibram eficiência e controle. Essa consolidação reflete uma maturidade jurídica inédita, na qual o Estado assume papel de parte processual em condições de equilíbrio, sem perder sua natureza pública. A arbitragem representa, portanto, a convergência entre autoridade e igualdade processual, fundamento de um Estado moderno e eficiente.
A consolidação do instituto depende de contínua capacitação dos agentes públicos, da padronização das cláusulas compromissórias e da ampliação da cultura de governança contratual. A arbitragem, quando bem aplicada, reduz a litigiosidade judicial, garante previsibilidade e fortalece a segurança jurídica. Em um cenário de crescente complexidade das contratações públicas, representa um passo importante na construção de um Estado mais técnico, eficiente e orientado à boa governança.
REFERÊNCIAS
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em Juízo para Concursos. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2024.
BRASIL. Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 set. 1996.
BRASIL. Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015. Altera a Lei nº 9.307/1996, para dispor sobre a arbitragem envolvendo a Administração Pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 maio 2015.
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º abr. 2021.
BRASIL. Decreto nº 10.025, de 20 de setembro de 2019. Dispõe sobre a arbitragem para dirimir conflitos no setor portuário e de transportes. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 2019.
BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o Marco Legal do Saneamento Básico. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 2020.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.
FGV. Arbitragem em rodovia decide que crise econômica não é fator para reequilíbrio de concessão. São Paulo: FGV, 2023.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 19. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
MARQUES, Floriano de Azevedo. Arbitragem e Administração Pública. São Paulo: FGV Direito SP, 2021.
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SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2021.
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VALLE, Vanice Regina Lírio do; PIMENTA, Eduardo. A arbitragem e a Administração Pública: fundamentos constitucionais e limites de atuação. Revista de Direito Administrativo, v. 283, p. 83-112, 2020.
Bacharel em Direito pelo Instituto de ciências jurídicas e sociais “prof. Camillo Filho”.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIVA, DAVID FURTADO DE. A Arbitragem nas Relações com o Poder Público: fundamentos, limites e desafios jurídicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2025, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69845/a-arbitragem-nas-relaes-com-o-poder-pblico-fundamentos-limites-e-desafios-jurdicos. Acesso em: 21 out 2025.
Por: DAVID FURTADO DE PAIVA
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Por: Jandeson da Costa Barbosa
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