RESUMO: O presente artigo analisa o redirecionamento da execução fiscal em face de administradores de empresas, abordando seus fundamentos legais e entendimentos jurisprudenciais. O problema investigado consiste em identificar sob quais condições jurídicas o Fisco pode responsabilizar pessoalmente sócios-gerentes por dívidas tributárias da pessoa jurídica, equilibrando a efetividade da cobrança com as garantias do devido processo. Justifica-se o estudo dada a relevância prática do tema: de um lado, a Fazenda Pública busca ampliar a satisfação do crédito tributário; de outro, administradores invocam os princípios da legalidade, contraditório e ampla defesa para limitar abusos. Adota-se metodologia teórico-dogmática, examinando legislação (CTN, LEF, Código Civil), jurisprudência dos tribunais superiores (STJ e STF) e doutrina especializada, formulando uma hipótese de que o redirecionamento somente é legítimo quando demonstrado ato ilícito do gestor (dolo ou infração legal), e que procedimentos formais (como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica) tendem a ser necessários para resguardar direitos. Os resultados confirmam critérios rigorosos para a responsabilidade pessoal do sócio e evidenciam debates doutrinários sobre aprimoramentos procedimentais e normativos.
Palavras-chave: Execução Fiscal; Responsabilidade Tributária; Redirecionamento; Sócio-gerente; Devido Processo Legal.
A execução fiscal é o instrumento processual de que dispõe a Fazenda Pública para a cobrança judicial dos créditos inscritos em Dívida Ativa da União, Estados ou Municípios, nos termos da Lei nº 6.830/1980 – Lei de Execuções Fiscais (LEF). Em regra, o polo passivo da execução fiscal é ocupado pelo devedor originário (contribuinte) cujo débito tributário consta da Certidão de Dívida Ativa (CDA). Todavia, situações excepcionais permitem que terceiros, não originalmente indicados como devedores, sejam chamados a responder pela dívida, fenômeno conhecido como redirecionamento da execução fiscal. O caso típico envolve o redirecionamento contra administradores ou sócios-gerentes de pessoas jurídicas devedoras, com fundamento na responsabilidade tributária por atos ilícitos prevista no Código Tributário Nacional (CTN).
A relevância desse tema decorre do conflito entre a necessidade do Estado de assegurar a efetiva arrecadação de tributos e a proteção dos direitos individuais dos administradores. O problema jurídico central consiste em definir os limites e requisitos para que o Fisco possa redirecionar a cobrança fiscal aos gestores da empresa devedora, especialmente frente aos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV). A crescente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto – seja editando súmulas, seja em julgamentos repetitivos – demonstra a atualidade e importância do debate.
Este artigo tem por objetivo examinar criticamente os fundamentos legais do redirecionamento (em especial o art. 135, III do CTN) e confrontá-los com a interpretação jurisprudencial consolidada, incluindo as hipóteses de dissolução irregular da empresa (Súmula 435/STJ) e a aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código de Processo Civil (CPC/2015). Busca-se também discutir as garantias constitucionais envolvidas e apresentar reflexões doutrinárias acerca de eventuais falhas e sugestões de aperfeiçoamento do regime vigente.
A estrutura do trabalho reflete esses propósitos: inicia-se com uma conceituação da execução fiscal e dos sujeitos passivos, passando pelos fundamentos legais do redirecionamento no CTN. Em seguida, aprofunda-se a análise da dissolução irregular como causa de redirecionamento e sua presunção jurídica. Na sequência, examina-se o mecanismo da desconsideração da personalidade jurídica e o incidente processual correlato, bem como discute-se os princípios constitucionais aplicáveis. Na conclusão, apresenta-se uma síntese dos achados e perspectivas para estudos futuros.
1. EXECUÇÃO FISCAL E SUJEITOS PASSIVOS
A execução fiscal, regulada pela LEF (Lei nº 6.830/80), é uma ação de natureza executiva proposta pela Fazenda Pública (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e suas autarquias) para cobrar créditos inscritos em Dívida Ativa. O sujeito ativo da relação tributária e do processo executivo é o ente fazendário credor; no polo passivo figura o devedor responsável pelo crédito. Em termos tributários, o CTN distingue duas categorias de sujeitos passivos da obrigação principal: o contribuinte, que possui relação pessoal e direta com o fato gerador, e o responsável, pessoa que, embora não seja contribuinte direto, é legalmente chamada a responder pelo tributo devido (CTN, art. 121, incisos I e II). Assim, a lei pode atribuir a terceiro a obrigação de pagar tributo alheio, desde que tal responsabilidade esteja expressa em dispositivo legal.
No contexto da execução fiscal, normalmente o executado é o contribuinte cuja inadimplência gerou o débito inscrito. No entanto, a legislação tributária prevê hipóteses em que terceiros ligados ao contribuinte passam a responder pelo débito, como é o caso dos administradores de pessoas jurídicas. Essa possibilidade decorre dos artigos 134 e 135 do CTN. O art. 134 lista situações de responsabilidade solidária de terceiros nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação pelo contribuinte (v.g., os pais pelos tributos devidos por filho menor, os tutores pelos tutelados, os sócios em liquidação de sociedade de pessoas, etc.). Já o art. 135 do CTN trata da responsabilidade pessoal de terceiros, estabelecendo que os dirigentes de pessoas jurídicas respondem pessoalmente pelos créditos tributários resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos (CTN, art. 135, III). Em outras palavras, quando o gestor pratica ato doloso contrário à lei ou ao contrato, ocasionando o não pagamento do tributo, ele perde a proteção da personalidade jurídica e pode ser demandado diretamente pelo Fisco (XAVIER, 2025).
É importante ressaltar que, por força do princípio da autonomia patrimonial, as dívidas da pessoa jurídica não atingem o patrimônio dos sócios, salvo nas hipóteses excepcionais previstas em lei (BOLZAN; SAPAVINI, 2022). A inclusão de sócios ou administradores no polo passivo de execuções fiscais sem previsão legal específica constitui violação à regra da separação entre pessoa jurídica e pessoas físicas que a compõem. Portanto, somente mediante os estritos critérios legais é que se admite responsabilizar pessoalmente o administrador – daí a necessidade de apurar cuidadosamente quem são os legitimados passivos em cada caso e de demonstrar os requisitos que autorizam o redirecionamento da execução.
2. FUNDAMENTOS LEGAIS DO REDIRECIONAMENTO (ART. 135, III DO CTN)
O principal fundamento legal para redirecionar a execução fiscal ao administrador está previsto no art. 135, inciso III, do Código Tributário Nacional. Tal dispositivo estabelece que os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado respondem pessoalmente pelos créditos tributários correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos (BRASIL, 1966). Trata-se de hipótese de responsabilidade tributária especial e subjetiva, na qual se exige a ocorrência de dolo ou culpa qualificada do gestor. Em síntese, o sócio-gerente somente será pessoalmente responsável pelo tributo devido pela sociedade quando ficar comprovado que ele agiu ilicitamente no exercício da administração, seja descumprindo a lei (por exemplo, deixando de recolher intencionalmente tributos cobrados), seja violando o contrato social/estatuto ou extrapolando os poderes que lhe foram conferidos (XAVIER, 2025).
A doutrina reforça que o simples inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não caracteriza, por si só, responsabilidade do sócio-gerente. Esse entendimento restou pacificado pelo STJ, que editou a Súmula 430 dispondo que “o inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”. Ou seja, a falta de pagamento do tributo, isoladamente considerada, não autoriza o redirecionamento da execução fiscal contra os administradores. É indispensável a presença de uma das condutas descritas no art. 135 do CTN, reveladoras de violação de dever jurídico pelo gestor.
Corroborando essa exigência, em julgamento repetitivo (Tema 97), o STJ fixou tese no sentido de que “a simples falta de pagamento do tributo não configura circunstância apta a responsabilizar o sócio, sendo indispensável que este tenha agido com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatuto” (STJ, 2009, REsp 1.101.728/SP). Em outras palavras, a responsabilidade pessoal do gestor é de natureza subsuntiva a um ilícito: somente se o não pagamento decorrer de ato doloso ou temerário do administrador é que seu patrimônio pessoal poderá ser atingido (XAVIER, 2025). Essa interpretação, além de decorrer da letra do CTN, alinha-se ao princípio da legalidade tributária, pois impede que se criem obrigações não previstas em lei em desfavor de terceiros.
Do ponto de vista da relação jurídica tributária, quando se verifica a hipótese do art. 135, III do CTN, considera-se que o sócio passa a ostentar a condição de sujeito passivo direto (responsável pessoal) daquela obrigação tributária (BASTOS, 2016). Sua responsabilidade deixa de ser meramente solidária ou subsidiária para se converter em obrigação própria, exclusiva e excludente da responsabilidade da pessoa jurídica, conforme a doutrina sancionatória do art. 135 (XAVIER, 2025). Por isso alguns autores referem-se a tal fenômeno como uma “transferência” ou “sub-rogação pessoal” do débito tributário para o gestor infrator (nesse caso, a empresa devedora originalmente obrigada permanece no polo passivo, mas o sócio infrator passa a responder integralmente, sem benefício de ordem).
Em suma, o arcabouço legal do redirecionamento repousa na necessidade de configuração de atos ilícitos qualificados praticados pelos administradores. Sem a comprovação de excesso de poderes, fraude, sonegação, conluio, violação da lei ou do estatuto social, não há fundamento para exigir do gestor o débito fiscal de responsabilidade da empresa. Tal rigor busca evitar que se penalizem gestores de boa-fé por meros insucessos empresariais ou crises financeiras – um risco que seria contraproducente à atividade econômica e ao princípio da livre iniciativa.
3. DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA EMPRESA E PRESUNÇÃO JURISPRUDENCIAL (SÚMULA 435/STJ)
Entre as situações que frequentemente embasam o redirecionamento, destaca-se a dissolução irregular da pessoa jurídica. Entende-se por dissolução irregular o encerramento de fato das atividades da empresa sem a observância dos devidos procedimentos legais de liquidação ou sem a comunicação oficial aos órgãos competentes (Junta Comercial, Receita Federal etc.). Nessa hipótese, presume-se que os administradores violaram seu dever legal de promover a extinção regular da sociedade, possivelmente visando esquivar-se do pagamento de credores, incluindo o Fisco.
O Superior Tribunal de Justiça consolidou essa presunção na Súmula 435, que estabelece: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixa de funcionar em seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”. Em outras palavras, se os oficiais de justiça ou notificações postais não encontram a empresa no endereço constante dos cadastros fiscais, e não há registro formal de encerramento, a lei presume o fechamento clandestino, o que autoriza prontamente o Fisco a buscar o patrimônio dos sócios-gerentes (BOLZAN; SAPAVINI, 2022).
A dissolução irregular enquadra-se como “infração à lei” na dicção do art. 135, III do CTN, uma vez que a legislação societária e fiscal exige que a empresa em vias de encerrar atividades providencie a baixa registral apenas após quitar seus tributos ou, ao menos, indique os responsáveis pelas obrigações remanescentes. Quando essa formalidade é ignorada e a empresa desaparece, surge indício forte de ação dolosa dos administradores, justificando a responsabilização pessoal. Conforme Bastos (2016), a situação de extinção irregular da pessoa jurídica é, de fato, a mais corriqueira causa de redirecionamento da execução fiscal, dada a frequência com que empresas inadimplentes simplesmente cessam atividades sem liquidar passivos.
A jurisprudência do STJ, em julgamento de recurso repetitivo (Tema 630), consolidou entendimento de que a dissolução irregular da empresa autoriza o redirecionamento ao sócio-gerente tanto para dívidas tributárias quanto para não tributárias; isto é, quaisquer inscrições em dívida ativa (REsp 1.371.128/RS). Nesse precedente, a Primeira Seção assentou a tese de que “em execução fiscal de dívida ativa tributária ou não-tributária, dissolvida irregularmente a empresa, está legitimado o redirecionamento ao sócio-gerente”. Com isso, superou-se antiga divergência sobre a aplicação do art. 135 do CTN a débitos não tributários (multas administrativas, contribuições etc.): entendeu-se que a prática de dissolver irregularmente configura violação genérica da lei que igualmente responsabiliza o gestor no âmbito da LEF (BOLZAN; SAPAVINI, 2022).
É importante frisar, contudo, que a presunção da Súmula 435/STJ é relativa, podendo ser ilidida por prova em contrário. Por exemplo, se o sócio-gerente demonstrar que a empresa não encerrou as atividades de forma oculta ou que ele não exerceu poderes de gerência no período da dissolução, poderá afastar sua responsabilidade. Em julgados mais recentes, o STJ esclareceu que: (i) o sócio que se retirou regularmente da sociedade antes da dissolução irregular e não contribuiu para esta não pode ser responsabilizado (Tema 962, STJ) – aqui se resguarda aquele ex-gestor que vendeu ou deixou a empresa de boa-fé; e (ii) por outro lado, o sócio ou administrador que estava à frente da empresa no momento em que se configura a dissolução irregular responde, ainda que não tivesse participado da gestão ao tempo da ocorrência do fato gerador do tributo (Tema 981, STJ). Este último entendimento reforça que a infração relevante é o fechamento ilícito da empresa, de modo que quem ocupava a administração nessa ocasião arcará com as consequências (mesmo que a dívida seja de períodos anteriores).
Em síntese, a dissolução irregular opera quase como uma “chave-mestra” para o redirecionamento na visão jurisprudencial: uma vez constatada, dispensa-se averiguar outros ilícitos específicos, pois o próprio fato de ter havido encerramento fraudulento já constitui infração suficiente (infere-se dolo de prejudicar credores). Ainda assim, garante-se ao sócio o direito de provar que não houve irregularidade ou que ele não teve culpa, sob pena de responsabilização objetiva indevida – algo vedado tanto pela jurisprudência tributária pacífica quanto pelos princípios constitucionais.
4. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E O INCIDENTE NO CPC
A desconsideração da personalidade jurídica é instituto do direito civil e empresarial que permite, em casos de abuso ou fraude, ultrapassar a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios, para atingi-los diretamente. No ordenamento brasileiro, o art. 50 do Código Civil de 2002 prevê a desconsideração quando há desvio de finalidade ou confusão patrimonial (BRASIL, 2002). No âmbito processual, o novo Código de Processo Civil de 2015 introduziu um procedimento específico: o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) (arts. 133 a 137 do CPC). Esse incidente é uma intervenção de terceiros que deve ser instaurada, a requerimento da parte ou do Ministério Público, sempre que se pretende aplicar a desconsideração em qualquer fase do processo, assegurando-se ampla defesa ao sócio ou terceiro afetado (BRASIL, 2015).
A aplicação desse incidente ao campo da execução fiscal tem gerado intensos debates. Isso porque a Lei de Execução Fiscal não contém previsão expressa sobre a desconsideração ou sobre a necessidade de instaurar um incidente para incluir corresponsáveis. A questão que se coloca é: quando a Fazenda Pública busca redirecionar a execução ao sócio com base no art. 135, III do CTN (responsabilidade por ato ilícito), seria obrigatória a instauração do IDPJ do CPC para que o sócio tenha direito de defesa prévia? Ou o redirecionamento tributário seguiria um regime próprio, independente do incidente?
A doutrina majoritária tem se posicionado no sentido de que as regras do incidente processual de desconsideração devem sim ser observadas na execução fiscal, dada sua natureza de norma geral de procedimento e por força do art. 15 do CPC, que autoriza a aplicação subsidiária nas omissões (BASTOS, 2016).
Bastos (2016) defende que a incorporação do IDPJ ao ordenamento estabelece um rito obrigatório: antes de penhorar bens de sócio não constante originalmente na CDA, o juiz deveria abrir o incidente, citar o sócio para se manifestar e só então decidir sobre sua inclusão na execução. Essa visão enfatiza a necessidade de respeito ao contraditório prévio e vê no incidente um mecanismo de aprimorar a legitimidade do redirecionamento, evitando “surpresas” ao sócio apenas na fase de penhora.
Contudo, a jurisprudência do STJ vinha se dividindo sobre o tema. De um lado, algumas decisões entenderam que não é cabível o incidente do CPC quando se trata de responsabilidade tributária do art. 135 do CTN, pois aqui não se estaria propriamente “desconsiderando” a personalidade jurídica, mas apenas aplicando disposição legal de responsabilidade pessoal. Nessa linha, argumenta-se que o redirecionamento tributário seria um mecanismo próprio do direito público, distinto da teoria geral da desconsideração, de modo que exigir o incidente seria incompatível com a celeridade da execução fiscal. Inclusive, há precedentes do STJ afirmando que “na execução fiscal, a ocorrência das hipóteses dos arts. 134 e 135 do CTN autoriza o redirecionamento do feito, sem necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica” (AgInt no AREsp 1170581/PR) (BOLZAN; SAPAVINI, 2022).
De outro lado, decisões de alguns tribunais passaram a adotar posição contrária, exigindo o incidente mesmo em caso de redirecionamento por infração à lei. Por exemplo, o TRF da 3ª Região decidiu que, havendo dissolução irregular arguida para redirecionar, deveria primeiro haver a instauração do IDPJ, entendimento confirmado pela própria 1ª Turma do STJ em caso específico (BOLZAN; SAPAVINI, 2022). Essa divergência culminou em setembro de 2023 com a afetação da matéria ao rito dos repetitivos no STJ (Tema 1209), justamente para definir se o incidente de desconsideração é compatível com o rito da execução fiscal e, em caso positivo, quando ele seria imprescindível (STJ, 2023). Essa unificação busca resolver a “insegurança jurídica” gerada pela falta de consenso, pois a controvérsia impacta fortemente a Fazenda (que teme a morosidade) e os particulares (que clamam pela defesa prévia).
No que tange ao entendimento atual (até a solução do repetitivo), pode-se resumir que: se o fundamento do redirecionamento for a responsabilidade tributária típica (art. 135, III do CTN) – por exemplo, dissolução irregular ou ato doloso do sócio –, muitos entendem que não há necessidade do IDPJ, podendo o juiz deferir de pronto o redirecionamento mediante prova do ilícito (BOLZAN; SAPAVINI, 2022). Porém, se o redirecionamento pretendido extrapolar as hipóteses do CTN, buscando atingir patrimônio de terceiros com base em teoria de grupo econômico, confusão patrimonial ou desvio de finalidade (situações não contempladas expressamente na legislação tributária), aí seria cabível a desconsideração via incidente, para formar um título executivo contra o terceiro (BASTOS, 2016).
Em que pese esse entendimento restritivo do STJ, do ponto de vista dos princípios processuais, ganha força a tese de que o incidente deveria ser exigido mesmo nas hipóteses do art. 135 do CTN, em nome do contraditório. Afinal, no procedimento atual da LEF, o redirecionamento costuma ocorrer por simples pedido da Fazenda ao juiz, que defere a inclusão do sócio e já pode determinar penhoras de seus bens, dando-lhe direito de defesa somente a posteriori (via embargos à execução). Essa sequência – defesa apenas depois da constrição – é questionada por parte da doutrina por violar o contraditório prévio e efetivo (SANTOS et al., 2024). Bastos (2016) observa que a praxe jurisprudencial vigente “não se preocupa com o contraditório prévio ao ingresso do sócio no processo”, permitindo que ele apenas se manifeste após ter o patrimônio ameaçado. Para o autor, a incorporação das regras do incidente de desconsideração na execução fiscal é uma exigência de realização plena do contraditório.
Em suma, verifica-se que o papel do IDPJ na execução fiscal ainda está em definição. Enquanto não sobrevier posição vinculante, a recomendação geral – inclusive refletida em normativos internos da Procuradoria da Fazenda – é que seja propiciado o contraditório ao sócio antes de efetivar o redirecionamento, seja por meio de procedimento incidental judicial, seja por meio de notificação em âmbito administrativo (como veremos adiante). Essa cautela harmoniza o procedimento fiscal com as garantias constitucionais, tema tratado na próxima seção.
5. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: LEGALIDADE, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA
A cobrança judicial de tributos, ainda que revestida de prerrogativas em favor do Fisco, deve obediência aos princípios constitucionais, notadamente o princípio da legalidade tributária e as garantias do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV). Tais princípios informam a interpretação e aplicação das normas de responsabilidade tributária e limitam a atuação estatal no redirecionamento das execuções fiscais.
O princípio da legalidade (CF, art. 5º, II e art. 150, I) exige que nenhum tributo seja exigido ou aumentado sem previsão legal, e por extensão, que nenhuma pessoa seja compelida a pagar tributo alheio sem que a lei defina objetivamente essa obrigação. Desse modo, o redirecionamento contra sócios só é lícito nas hipóteses estritas delineadas em lei (CTN, arts. 134 e 135). A Fazenda Pública não pode, a seu arbítrio, eleger terceiros para responder por dívidas tributárias – deve ater-se fielmente aos critérios legais (BOLZAN; SAPAVINI, 2022). Essa compreensão afasta qualquer ideia de que a inclusão de sócios seja um ato discricionário do Poder Público. Pelo contrário, trata-se de ato vinculado à lei: só se estiverem presentes os pressupostos legais (infração dolosa do gestor, dissolução irregular etc.) é que o redirecionamento poderá ocorrer, sob pena de violação da legalidade (BOLZAN; SAPAVINI, 2022). A conclusão natural é que o redirecionamento da execução fiscal não configura um ato administrativo discricionário, mas sim um ato subordinado ao cumprimento de condições legais objetivas (BOLZAN; SAPAVINI, 2022).
No tocante às garantias do contraditório e da ampla defesa, estas se aplicam a todo processo judicial ou administrativo. A peculiaridade, no caso do redirecionamento, é que o sócio-gerente muitas vezes não participou do processo de constituição do crédito tributário nem do início da execução, sendo posteriormente chamado a responder. Isso levanta a questão: teve ele oportunidade de se defender das alegações de responsabilidade? No processo administrativo fiscal que originou a CDA, geralmente apenas a pessoa jurídica foi parte, e não seus sócios (XAVIER, 2025). Logo, ao ingressar de surpresa na execução fiscal, o administrador poderia argumentar que lhe está sendo imputada uma dívida sem ter tido chance de contestar as circunstâncias geradoras de sua responsabilidade.
Os tribunais superiores têm evoluído para assegurar que ninguém seja responsabilizado tributariamente sem direito de defesa. O STF, ao julgar a constitucionalidade de leis que imputavam automaticamente dívidas a sócios, firmou entendimento de que é inconstitucional presumir responsabilidade sem comprovação de atos ilícitos e sem garantir defesa ao interessado. Em termos concretos, isso significa que a Fazenda Nacional não pode simplesmente incluir o nome de sócios na CDA ou na execução fiscal sem apuração e motivação adequadas.
O STJ, por sua vez, tem decisões determinando que o redirecionamento exige prova prévia do ilícito e garantia de contraditório, sob pena de nulidade. Cabe ao Fisco instruir o processo com elementos que evidenciem a conduta dolosa do gestor, garantindo-lhe contraditório, sob pena de o redirecionamento ser invalidado por ofensa ao devido processo (XAVIER, 2025).
A garantia da ampla defesa implica que o sócio terá meios tanto de se defender no processo de execução (por exemplo, via embargos à execução ou exceção de pré-executividade) quanto, idealmente, antes mesmo de ser atingido por medidas constritivas. Doutrinariamente, sugere-se que a instauração do incidente de desconsideração (se adotado) supre exatamente essa necessidade, permitindo defesa antecipada (BASTOS, 2016; SANTOS et al., 2024). Note-se que a própria LEF menciona que o Termo de Inscrição de Dívida Ativa deverá conter o nome dos corresponsáveis (BRASIL, 1980). Ou seja, na visão ideal, os responsáveis já constariam do título executivo. Se não constam, é porque não houve apuração prévia de sua culpa, o que recomenda cautela posterior.
Por fim, cumpre lembrar o princípio da menor onerosidade (art. 805 do CPC) e o princípio da proporcionalidade, que também informam a execução fiscal. Redirecionar a cobrança para o patrimônio pessoal de um cidadão é medida drástica; portanto, deve ser utilizada com parcimônia e somente quando estritamente necessária para evitar frustrar a satisfação do crédito (BOLZAN; SAPAVINI, 2022). Em respeito à proporcionalidade, os tribunais verificam se não há meios menos gravosos (como buscar bens remanescentes da empresa) antes de autorizar o redirecionamento. E uma vez redirecionada, a execução deve prosseguir garantindo ao sócio todas as faculdades de defesa que teria o devedor original, evitando penhoras abusivas ou indiscriminadas.
A partir do estudo realizado, conclui-se que o redirecionamento da execução fiscal contra o administrador, embora permitido em nosso ordenamento, está condicionado a critérios estritos e deve sempre observar as garantias do devido processo legal. Do ponto de vista legal, o art. 135, III do CTN é o pilar normativo dessa responsabilização, exigindo a demonstração de ato ilícito (dolo, fraude, abuso de poder) praticado pelo sócio-gerente. A jurisprudência do STJ reforçou essa necessidade ao sumular que o mero inadimplemento não gera responsabilidade e ao reconhecer a dissolução irregular como principal hipótese legitimadora do redirecionamento, desde que comprovada. Também o STF, em sede de controle de constitucionalidade, assentou que não se pode responsabilizar sócios objetiva ou automaticamente sem violar a Constituição, expurgando do sistema normas que contrariavam esse princípio.
Verificou-se que as decisões judiciais recentes caminham para um equilíbrio: nem todo sócio responde, apenas aquele que tiver concorrido com dolo ou excesso, e mesmo assim respeitados prazos e procedimentos. Observa-se, no entanto, que desafios práticos persistem, especialmente quanto ao momento e modo de assegurar o contraditório ao sócio responsabilizado. A introdução do incidente de desconsideração da personalidade jurídica pelo CPC/2015 colocou em evidência a importância de se ouvir previamente o gestor antes de atingi-lo patrimonialmente. Embora ainda pendente de definição vinculante no STJ, a tendência é pela crescente valorização desse contraditório prévio – seja via incidente, seja via procedimento administrativo (PARR) –, de modo que o redirecionamento se compatibilize plenamente com a ampla defesa.
Do ponto de vista doutrinário, as críticas e sugestões apontam para a necessidade de aperfeiçoamento legislativo: clarificar a Lei de Execução Fiscal quanto aos requisitos e rito do redirecionamento e integrar de forma explícita as garantias processuais modernas. Recomenda-se, por exemplo, que a LEF passe a exigir decisão judicial fundamentada para redirecionar, após oportunizar manifestação do interessado. Outra possível melhoria seria a edição de súmulas pelos tribunais superiores consolidando os avanços.
Em conclusão, pode-se afirmar que o redirecionamento da execução fiscal contra administradores não é uma faculdade irrestrita da Fazenda Pública, mas um instrumento excepcional que visa coibir fraudes e garantir a efetividade tributária sem ferir direitos individuais. A síntese dos achados indica que o ordenamento brasileiro, conjugando leis, jurisprudência e doutrina, tem evoluído para um modelo mais garantista: exige prova de responsabilidade pessoal qualificada do sócio e impõe crescente observância do contraditório. Essa evolução é positiva, pois compatibiliza a eficiência fiscal com a segurança jurídica.
Por fim, esta pesquisa abre caminho a reflexões futuras. Sugere-se aprofundar estudos empíricos sobre como os juízes de primeiro grau têm aplicado (ou não) o incidente de desconsideração nas execuções fiscais e qual o impacto disso no tempo de tramitação e nos resultados da cobrança. Igualmente, investigar a efetividade do PARR na esfera da PGFN pode trazer subsídios para eventuais reformas. A matéria também dialoga com o direito comparado – por exemplo, em que medida outros países adotam procedimentos similares para responsabilizar administradores por dívidas tributárias. Tais investigações poderiam inspirar novas melhorias no sistema brasileiro, rumo a um modelo de cobrança que seja ao mesmo tempo rigoroso com o devedor contumaz e justo com o contribuinte de boa-fé.
BASTOS, Elson Pereira de Oliveira. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica e o redirecionamento da execução fiscal. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v.17, n.1, 2016. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/redp/article/view/23117. Acesso em: 13 out. 2025.
BOLZAN, Milena de Oliveira; SAPAVINI, Carlos. O redirecionamento da execução fiscal: ato discricionário da Fazenda Pública? Revista do Direito – FDCI, Cachoeiro de Itapemirim, v.4, n.1, p.1-14, 2022.
BRASIL. Código Tributário Nacional – CTN (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966).
BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).
BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública (Lei de Execuções Fiscais).
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Repetitivo discute se incidente de desconsideração da personalidade jurídica é compatível com execução fiscal. Brasília, DF: STJ, 11 set. 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/11092023-Repetitivo-discute-se-incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica-e-compativel-com-execucao-fiscal.aspx. Acesso em: 13 out. 2025.
SANTOS, Sara Gabriela do Nascimento; ELIAS, Vivian Cristine dos Santos; CAPELLETTI, Luiz Reinaldo. Desconsideração da personalidade jurídica na execução fiscal. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação (REASE), São Paulo, v. 10, n. 5, maio 2024. DOI: 10.51891/rease.v10i5.14246. ISSN 2675-3375.
XAVIER, Marília Barros. Responsabilidade tributária sancionatória do sócio administrador. Duc In Altum, v.17, n.41, p.60-72, 2025.
Bacharel em Direito pelo Instituto de ciências jurídicas e sociais “prof. Camillo Filho”.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIVA, DAVID FURTADO DE. Redirecionamento da execução fiscal contra o administrador: fundamentos legais e jurisprudenciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 out 2025, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69844/redirecionamento-da-execuo-fiscal-contra-o-administrador-fundamentos-legais-e-jurisprudenciais. Acesso em: 21 out 2025.
Por: DAVID FURTADO DE PAIVA
Por: DAVID FURTADO DE PAIVA
Por: Jandeson da Costa Barbosa
Por: Jandeson da Costa Barbosa
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