RESUMO: O artigo busca examinar a natureza jurídica do Laudo Técnico trazido pelo artigo 40 da Lei 12.351/2010 e regulamentado pelo artigo 33 da RANP 867/2022, visando compreender se ele constitui uma forma de arbitragem ou de mediação, um meio alternativo próprio de solução de conflitos ou, ainda, se assemelha a um arbitramento por especialista. O tema é relevante diante da necessidade prática de clareza quanto ao regime jurídico aplicável ao Laudo, seus efeitos e limites, especialmente considerando seu impacto significativo sobre direitos patrimoniais de elevada expressão econômica e sobre a indústria petrolífera nacional, a fim de verificar, por fim, sua definitividade com relação às partes envolvidas.
Palavras-chave: Laudo Técnico. Agência Reguladora. Método Alternativo de Solução de Conflitos. Individualização da Produção.
ABSTRACT: The article seeks to examine the legal nature of the Technical Report established by Article 40 of Brazilian Law 12,351/2010 and regulated by Article 33 of RANP 867/2022, aiming to understand whether it constitutes a form of arbitration or mediation, a distinct alternative dispute resolution method, or if it resembles an expert determination. The topic is relevant given the practical need for clarity regarding the legal framework applicable to the Report, its effects and limitations, especially considering its significant impact on property rights of high economic value and on the national oil industry, in order to ultimately verify its finality with respect to the parties involved.
Keywords: Technical Report. Regulator. Alternative Dispute Resolution Method. Unitization.
SUMÁRIO: Introdução. 1. A Individualização da Produção no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2. Arbitragem, mediação e arbitramento. 3. O Laudo Técnico elaborado pela ANP no contexto da Individualização da Produção. 4. Das principais características e da natureza jurídica do Laudo Técnico elaborado pela ANP. 5. Da definitividade do Laudo Técnico elaborado pela ANP. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A exploração e a produção de petróleo e gás natural enfrentam desafios técnicos (principalmente geológicos) e jurídicos complexos. Uma das principais dificuldades emerge quando uma jazida de petróleo e gás natural se estende além de um bloco sob contrato, por áreas contíguas que estejam, ou não, sob regimes jurídicos distintos ou pertencentes a concessionários ou a contratados diferentes.
Nesse contexto, a individualização da produção (usualmente chamada na indústria petrolífera de “unitização”) surge como instituto legal, regulatório e contratual fundamental para a gestão eficiente dos recursos, visando à maximização da recuperação dos hidrocarbonetos e à distribuição equitativa dos direitos e deveres entre os titulares de direitos exploratórios sobre determinada jazida compartilhada.
O ordenamento jurídico brasileiro, reconhecendo essa realidade geológica e econômica, estabeleceu mecanismos para formalizar e viabilizar a individualização da produção, destacando-se, entre eles, o Acordo de Individualização da Produção (AIP).
Trata-se de um documento que possui base legal e regulatória e que visa a formalização da jazida compartilhada a ser unitizada. Deve ser negociado entre as partes envolvidas nesta jazida e enviado para aprovação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), para então ter efetividade.
Contudo, em não havendo um consenso entre as partes envolvidas com relação aos termos do AIP, a Lei nº 12.351/2010 e a Resolução ANP nº 867/2022 prevêem a intervenção direta da ANP, que determinará, a seu critério, a forma como serão apropriados os direitos e as obrigações sobre a jazida compartilhada.
A partir da prerrogativa acima informada, a Agência elaborará um Laudo Técnico (via procedimento próprio) que informará o texto do documento e, por consequência, os parâmetros da individualização.
Este artigo busca examinar a natureza jurídica desse Laudo, visando compreender se ele constitui uma forma de arbitragem ou de mediação, um meio alternativo próprio de solução de conflitos ou, ainda, se assemelha a um arbitramento por especialista.
Para tanto, analisam-se as definições que envolvem a individualização da produção e as características específicas do procedimento conduzido pela ANP. Será feita, ainda, breve análise acerca das características principais da arbitragem e da mediação, enquanto métodos alternativos de solução de conflitos, bem como do arbitramento, a fim de trazer as principais diferenças em relação ao Laudo Técnico.
O tema é relevante diante da necessidade prática de clareza quanto ao regime jurídico aplicável ao Laudo, seus efeitos e limites, especialmente considerando seu impacto significativo sobre direitos patrimoniais de elevada expressão econômica e sobre a indústria petrolífera nacional, a fim de verificar, por fim, sua definitividade[1] com relação às partes envolvidas.
2. A INDIVIDUALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
2.1 Conceito e Fundamentos
A individualização da produção consiste no:
procedimento que visa à divisão do resultado da produção e ao aproveitamento racional dos recursos naturais da União, por meio da unificação do desenvolvimento e da produção relativos à jazida que se estenda além do bloco concedido ou contratado sob o regime de partilha de produção[2]. (grifo nosso)
Trata-se, portanto, de um instituto que visa à exploração racional e eficiente dos recursos petrolíferos.
Quanto ao aspecto jurídico, evita a competição predatória entre titulares de direitos sobre uma mesma jazida compartilhada e garante a justa recuperação dos hidrocarbonetos, em consonância com o Princípio Constitucional da Eficiência, aqui aplicado na exploração e produção dos recursos naturais.
Do ponto de vista técnico, a individualização fundamenta-se no conceito de unidade da jazida compartilhada, reconhecendo que determinado “reservatório ou depósito já identificado e possível de ser posto em produção”[3] constitui uma unidade geológica e hidrodinâmica, cuja exploração fragmentada poderia resultar em perdas de pressão, redução da recuperação total de hidrocarbonetos e, eventualmente, em danos ao meio ambiente.
2.2 Previsão Legal, Regulatória e Contratual
Faz-se importante destacar que o procedimento de unitização é obrigatório no Brasil[4], a partir da identificação de uma jazida compartilhada. E essa obrigação encontra base legal, regulatória e contratual.
A individualização da produção encontra seu fundamento legal no artigo 33 da Lei nº 12.351/2010:
Art. 33. O procedimento de individualização da produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos deverá ser instaurado quando se identificar que a jazida se estende além do bloco concedido ou contratado sob o regime de partilha de produção. (grifo nosso)
É de se notar que, por mais que a Lei acima mencionada trate especificamente do regime de partilha de produção, seu artigo 33 expressamente dispõe a obrigatoriedade de individualização da produção também no regime de concessão (ao mencionar “bloco concedido”)[5].
Neste ponto, tem-se que a Lei nº 9.478/1997 (Lei do Petróleo) já estabelecia, em seu artigo 27, a obrigatoriedade da individualização quando a jazida se estender além do bloco concedido.
Esse dispositivo foi expressamente revogado pelo artigo 67 da Lei nº 12.351/2010[6], que acabou por concentrar o tema em um só diploma legal, além de aprofundar e melhor detalhar sua regulamentação nos artigos 33 a 41.
Quanto à sua obrigatoriedade regulatória, o artigo 40 da Lei nº 12.351/2010 dispõe: "Art. 40. A ANP regulará os procedimentos e as diretrizes para elaboração do acordo de individualização da produção, observadas as melhores práticas da indústria do petróleo".
Em cumprimento à determinação acima, a ANP editou a Resolução nº 25/2013 (“RANP 25”), que regulamentou o procedimento para a individualização da produção de petróleo e gás natural. Posteriormente, foi editada a Resolução ANP nº 867/2022 (“RANP 867”), que atualizou e substituiu, integralmente, a Resolução anterior.
O art. 1º da RANP 867 assim estabelece:
Art. 1º Esta resolução regulamenta o procedimento de individualização da produção de petróleo e gás natural, que deve ser adotado quando se identificar que uma jazida de petróleo, gás natural ou outros hidrocarbonetos fluidos se estende além de um bloco concedido, cedido onerosamente ou contratado. (grifo nosso)
Com relação à obrigatoriedade contratual, desde os contratos da Rodada Zero de Licitação dos direitos de exploração e produção (promovida pela União em 1998) existe previsão específica para a individualização da produção, conforme se observa da Cláusula Décima Segunda do Modelo de Contrato de Concessão da referida rodada[7]:
Cláusula Décima-Segunda - Produção Unificada
Acordo para Individualização da Produção
12.1 No caso de uma Descoberta Comercial sob este Contrato, em que a Jazida se estenda por Bloco ou Blocos vizinhos, o Concessionário informará oficialmente esse fato à ANP no momento em que efetuar a Declaração de Comercialidade respectiva, nos termos do parágrafo 7.1.1, ou em que solicitar a suspensão deste Contrato, nos termos do parágrafo 7.1.2. A ANP, por sua vez, notificará os concessionários desse Bloco ou Blocos vizinhos, com vistas a que todos os concessionários interessados se reúnam e celebrem um acordo que leve à individualização da Produção, nos termos aqui previstos, os quais se repetem em todos os contratos de concessão para exploração e produção firmados pela ANP. Neste caso, ficará o Concessionário desobrigado de apresentar o Plano de Desenvolvimento respectivo no prazo do parágrafo 9.1, aplicando-se a respeito o disposto no parágrafo 12.1.2. (grifos nossos)
Observa-se que essa obrigação contratual perdura até os dias atuais, de acordo com os Contratos de Partilha de Produção - CPP mais recentes (como exemplo, vide o texto do Modelo de CPP anexado ao Edital da Sexta Rodada de Licitações de Partilha de Produção, realizada pela União em 2019[8]):
CLÁUSULA DÉCIMA OITAVA - INDIVIDUALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO
Individualização da Produção
18.1. Deverá ser instaurado procedimento de Individualização da Produção de Petróleo e Gás Natural, nos termos da Legislação Aplicável, caso seja identificado que uma Jazida estende-se além da Área do Contrato. (grifo nosso)
Também dos contratos mais recentes consegue-se extrair uma das consequências em caso de recusa à individualização da produção, após a aprovação do AIP ou decisão (através de Laudo Técnico) pela ANP, conforme se observa, novamente, do Modelo de CPP da Sexta Rodada:
CLÁUSULA TRIGÉSIMA PRIMEIRA - EXTINÇÃO DO CONTRATO
Extinção de Pleno Direito
31.1. Este Contrato extingue-se, de pleno direito:
h) total ou parcialmente, pela recusa dos Consorciados em firmar o Acordo de Individualização da Produção, após decisão da ANP.
Além do dispositivo contratual acima (que, é importante salientar, não se encontra em todos os contratos, por mais que se depreenda de eventuais instrumentos omissos sobre o ponto que o descumprimento da obrigação contratual de unitizar poderá levar à extinção do contrato), já no contexto do Laudo observa-se o artigo 40, parágrafo único da Lei 12.351/2010:
Art. 40. Transcorrido o prazo de que trata o § 2o do art. 33 e não havendo acordo entre as partes, caberá à ANP determinar, em até 120 (cento e vinte) dias e com base em laudo técnico, a forma como serão apropriados os direitos e as obrigações sobre a jazida e notificar as partes para que firmem o respectivo acordo de individualização da produção.
Parágrafo único. A recusa de uma das partes em firmar o acordo de individualização da produção implicará resolução dos contratos de concessão ou de partilha de produção. (grifo nosso)
O artigo da Lei 12.351/2010 é regulamentado e complementado pelo artigo 38 da RANP 867:
Art. 38. Após realizados os procedimentos previstos nos arts. 33 a 37, a recusa de uma das partes em firmar o acordo de individualização da produção como determinado pela ANP implicará resolução dos contratos de concessão ou de partilha de produção da parte que se recusou a assinar o acordo de individualização de produção. (grifo nosso)
Como é possível verificar, a recusa de uma ou mais partes em formalizar a individualização da produção de determinada Jazida Compartilhada, após manifestação positiva da ANP (seja pela aprovação do AIP negociado pelas partes, seja pela elaboração de Laudo Técnico), poderá acarretar na resolução do contrato administrativo (concessão, partilha de produção ou cessão onerosa).
Além disso, poderá implicar em eventuais sanções específicas a serem aplicadas pela Agência Reguladora, seja com base no contrato, seja com base na Lei nº 9.847/1999.
3. ARBITRAGEM, MEDIAÇÃO E ARBITRAMENTO
Neste tópico, serão feitos breves esclarecimentos acerca destes institutos, com o principal objetivo de diferenciá-los do procedimento agora estudado.
3.1 Arbitragem
A arbitragem constitui um método alternativo de solução de conflitos heterocompositivo, no qual as partes, por livre convenção, submetem a controvérsia a árbitros privados por elas escolhidos, afastando a jurisdição estatal.
No Brasil, este mecanismo é regulado pela Lei nº 9.307/1996, que estabelece seus requisitos e define o procedimento legal a ser seguido.
Segundo Carlos Alberto Carmona[9], a arbitragem é:
Um mecanismo privado de solução de litígios; a arbitragem é 'meio alternativo de solução de controvérsias através da intervenção de uma ou de mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada' - decorrente do principio da autonomia da conta das partes - para exercer sua função, decidindo com base em tal convenção, sem intervenção estatal, tendo a decisão idêntica eficácia de sentença proferida pelo Poder Judiciário. Tem como objeto do litígio direito patrimonial disponível.
Ainda, é um meio de heterocomposição dos litígios, posto a decisão do conflito ser proferida por um terceiro necessariamente, trata-se de técnica para 'solução de controvérsias alternativa à via Judiciária caracterizada por dois aspectos essenciais: são as partes da controvérsia que escolhem livremente quem vai decidi-la, os árbitros, e são também as partes que conferem a eles o poder e a autoridade para proferir tal decisão'. (grifos nossos)
A Lei nº 9.307/1996 dispõe em seu art. 1º: "Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis".
Assim, é característica essencial para a instauração de procedimento arbitral a manifestação de vontade das partes, ou seja, essas devem querer se submeter a um meio alternativo (que não via Poder Judiciário “stricto sensu”) para solução da controvérsia instaurada.
Outro elemento base deste procedimento é a heterocomposição, ou seja, a decisão por terceiros não interessados, imparciais, que solucionam a controvérsia em substituição às partes envolvidas.
Tem, ainda, natureza jurisdicional a decisão arbitral, de forma que constitui título executivo judicial conforme o art. 515, VII, do Código de Processo Civil[10].
Por fim, um dos principais efeitos da “sentença arbitral” é a definitividade, razão pela qual não se sujeita a recurso ou homologação pelo Poder Judiciário.
3.2 Mediação
A mediação, método autocompositivo e alternativo de solução de conflitos, é regulamentada pela Lei 13.140/2015 que, em seu artigo 1º, parágrafo único, expressamente assim a conceitua:
Art. 1º, Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia. (grifos nossos)
A Corte Brasileira de Mediação e Arbitragem assim a define[11]:
A Mediação é uma forma de solução extrajudicial de controvérsias em que o terceiro Mediador (ou mediadores se mais de um) tem a função de aproximar as partes, para elas negociarem diretamente a solução desejada de sua divergência.
Também na mediação, portanto, há um terceiro imparcial, que aqui auxilia e estimula as partes a solucionarem o conflito instaurado, através de uma negociação direta entre elas.
O princípio da autonomia da vontade das partes também é vetor fundamental deste método alternativo de solução de controvérsias, além da isonomia entre as partes, que trabalharão em busca do consenso com o auxílio do mediador nomeado para tanto.
O acordo firmado entre as partes tem, via de regra[12], natureza de título executivo extrajudicial[13]. Isso significa que este pode ser levado diretamente à execução caso uma das partes descumpra suas obrigações.
3.2 Arbitramento
O arbitramento, por sua vez, constitui um procedimento técnico de apuração ou de quantificação de valores, fatos ou situações, geralmente realizado por especialista na matéria.
Diferentemente de um método alternativo de solução de conflitos (como a arbitragem e a mediação, por exemplo), que visa resolver o conflito em sua integralidade, o arbitramento limita-se a estabelecer parâmetros técnicos específicos, sem necessariamente resolver o conflito jurídico subjacente.
O Código de Processo Civil de 2015 expressamente prevê o arbitramento em alguns dos seus dispositivos, como no artigo 509, I[14]. Trata-se de procedimento técnico que busca auxiliar na determinação precisa de elementos fáticos ou técnicos necessários à aplicação do direito.
Ensinava Pontes de Miranda[15] que o arbitrador é um perito na matéria, não se confundindo com o árbitro, que julga diretamente a questão.
Assim, o laudo resultante de arbitramento tem natureza essencialmente técnica, podendo servir como elemento de prova ou meio de liquidação no âmbito do processo civil.
No mais, o arbitramento geralmente integra outro procedimento principal, sendo incidente a este.
4. O LAUDO TÉCNICO ELABORADO PELA ANP NO CONTEXTO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO
4.1 Previsão Legal e Regulatória
O Laudo Técnico elaborado pela ANP está expressamente previsto no art. 40 da Lei nº 12.351/2010, previamente trazido no presente estudo.
Atualmente, é regulamentado e complementado pelo art. 33 da Resolução ANP nº 867/2022[16]:
Art. 33. Quando as partes não celebrarem voluntariamente o acordo de individualização da produção no prazo determinado pela ANP, caberá a esta determinar, por meio de laudo técnico e de acordo com as melhores práticas da indústria do petróleo, a forma como serão apropriados os direitos e as obrigações sobre a jazida compartilhada. (grifo nosso)
Trata-se de um instrumento de intervenção regulatória aplicável quando as partes não celebram voluntariamente, no prazo previamente determinado pela Agência, o Acordo de Individualização da Produção.
A Lei nº 12.351/2010 estabelece, em seu art. 39[17], que o acordo de individualização da produção deverá ser submetido à prévia aprovação da ANP. O art. 33, §2º da mesma lei[18], prevê que a ANP determinará o prazo para que os interessados celebrem o mencionado acordo.
Na ausência de consenso (ainda que parcial) entre as partes, portanto, conforme o art. 40, a entidade definirá as regras e obrigações pertinentes à individualização da produção, através de procedimento específico no qual irá resultar em um documento vinculante por ela elaborado ao final.
A RANP 867 detalha este procedimento, entre seus artigos 33 e 38, disciplinando a forma como a Agência estabelecerá os parâmetros da individualização da produção.
4.2 Procedimento e Efeitos
O art. 34 afirma que o procedimento será iniciado através de petição encaminhada, pelas partes, à Agência, “com descrição clara e detalhada dos assuntos que impediram a pactuação do acordo de individualização da produção e indicação propositiva da solução que melhor satisfaça a cada parte”.
Na prática, existe aqui um ponto de divergência: se esta petição deveria ser conjunta, única, assinada por todas as partes envolvidas na controvérsia, ou se poderia ser um documento apartado, com cada uma das partes encaminhando em separado seus posicionamentos.
Pode se entendido, portanto, que considerando não haver disposição clara na Resolução, a solução irá depender da natureza das controvérsias sobre as quais versarão o laudo.
No caso, por exemplo, de um AIP em que existam três partes, com duas delas convergindo completamente para o texto do documento e uma outra se recusando a aderir ao AIP, por entender que aquela unitização seria economicamente inviável, adotando assim postura conflituosa ou omissa ao longo da negociação do Acordo, poderia gerar dificuldades para as demais a necessidade de anuência da parte dissidente.
Assim, enviar petição em separado seria a solução com menor ônus para as partes que se dispuseram a cumprir com suas obrigações e com a determinação da Agência.
Por outro lado, nos casos em que o conflito versar apenas sobre um artigo do AIP (como a Cláusula de Resolução de Conflitos, por exemplo), mas todas as partes concordaram com o restante do seu texto e, ao longo da negociação, agiram de boa-fé e de forma proativa em busca de uma conciliação, o envio de petição única, assinada por todas as partes, deixaria mais claro para a Agência que o único ponto de divergência seria aquele indicado.
Como se trata de procedimento que presume um conflito ou, ao menos, um não acordo (ainda que pela omissão das partes ao longo do prazo determinado pela Agência), no caso prático as empresas buscarão a solução que melhor atender aos seus interesses individuais, cabendo à ANP solucionar a questão.
Quanto ao prazo, nota-se que o mesmo artigo expressamente dispõe que esta petição deverá ser enviada em até 60 (sessenta) dias, a contar do vencimento do prazo previamente concedido pela agência reguladora para que o documento acordado entre as partes fosse a ela enviado.
Durante o procedimento, a Agência poderá, ainda, a seu critério, realizar diligências técnicas, solicitar esclarecimentos adicionais e ouvir as partes envolvidas.
Concluída a análise técnica, o Laudo por ela elaborado será encaminhado para aprovação de sua Diretoria Colegiada e, aprovado o documento, a ANP fornecerá 60 (sessenta) dias para que as partes assinem o AIP.
Ao todo, serão 120 (cento e vinte) dias para conclusão do procedimento (contados a partir do protocolo da petição que iniciará o procedimento).
Há aqui outra controvérsia que na prática se observa: a abrangência desta decisão. Ou seja, se a ANP estaria vinculada a apenas analisar os pontos de controvérsia suscitados pelas partes, ou se poderia analisar o documento inteiro, modificando o que entende que deve ser modificado.
Como é prerrogativa da Agência aprovar o AIP, tomando por base ainda o texto do artigo 40 da Lei de Partilha e do artigo 36 da RANP 867[19], é razoável entender que ela detém também a faculdade de analisar o documento como um todo, disciplinando a forma como os direitos e obrigações sobre a jazida compartilhada serão apropriados pelas partes.
A decisão, entretanto, deve basear-se no Princípio da Razoabilidade[20], cumprindo a entidade regulatória com o dever de observar a necessidade e a adequação dos direitos e obrigações que impor no documento, visando sempre o atendimento do interesse público e evitando, assim, que recaiam sobre as partes ônus demasiados e desproporcionais, em relação às obrigações originalmente assumidas no contrato assinado com a União.
Deverá o ente regulador justificar especificamente cada modificação recomendada no texto originalmente encaminhado pelas partes, bem como solucionar detalhadamente todas as controvérsias que originaram o procedimento, motivando assim os seus atos.
Ainda pelo disposto na Lei de Partilha e na RANP 867, o Laudo Técnico terá efeito vinculante para as partes envolvidas, razão pela qual o descumprimento das determinações ali contidas sujeitará os infratores às penalidades previstas na legislação aplicável, bem como no contrato administrativo, considerando ainda o disposto no art. 38 da Resolução ANP nº 867/2022.
5. DAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS E DA NATUREZA JURÍDICA DO LAUDO TÉCNICO ELABORADO PELA ANP
Pressupondo haver um conflito instaurado entre as partes, a partir de uma obrigatoriedade legal, regulatória e contratual previamente estabelecida quando estas manifestaram sua vontade de contratar com o Poder Público (ou seja, a individualização da produção), é de se observar que o Laudo Técnico apresenta algumas características que o aproximam de um método alternativo de solução de conflitos.
Trata-se de uma heterocomposição e, assim como na arbitragem, há a intervenção de um terceiro que impõe uma solução para o conflito entre as partes.
Ademais, a ANP, como ente regulador especializado, detém conhecimento técnico específico sobre o setor de petróleo e gás, de forma análoga aos árbitros especializados na matéria objeto da arbitragem.
Nota-se, porém, que o procedimento não decorre de acordo voluntário entre as partes, mas de imposição legal e regulatória, conforme amplamente observado no presente artigo.
As partes também não escolhem os responsáveis pela elaboração do Laudo, que serão servidores designados conforme as normas internas da entidade, havendo ainda a possibilidade da própria Agência, a seu exclusivo critério, aceitar que o documento seja elaborado por terceiros a serem custeados pelas partes[21].
Assim, não são os interessados na solução do conflito que conferem à entidade regulatória o poder de solucioná-lo, de forma que esta prerrogativa advém diretamente da Lei, sendo regulamentada de forma detalhada em Resolução.
Não há, de qualquer modo, a livre escolha de terceiros imparciais com base na autonomia da vontade das partes.
De igual forma não existe, no documento, a imparcialidade do terceiro que solucionará o conflito. Isso porque a ANP pode, a depender do caso, ser parte do contrato administrativo (representando a União)[22], ou figurar como ente regulador e fiscalizador deste, agindo diretamente nele.
É possível que se conteste, portanto, a imparcialidade da Agência, considerando haver interesse direto dela na forma como estes recursos serão apropriados pelas partes do AIP, a partir das obrigações assumidas no contrato administrativo com a União.
Diferentemente da sentença arbitral, o Laudo não constitui título executivo judicial, sendo sua eficácia garantida pelo poder de polícia da Agência Reguladora e pelas sanções administrativas e contratuais aplicáveis em caso de descumprimento.
Pode, no máximo, ser considerado título executivo extrajudicial[23], a partir da assinatura e consequente concordância das empresas que terão direitos e deveres advindos da individualização da produção da jazida compartilhada, bem como das testemunhas.
Trata-se, ainda, de procedimento administrativo próprio, de modo que a própria autoridade julgadora (ANP) fará o arbitramento dos direitos e obrigações das partes. E a Agência irá agir para determinar o texto do documento, e não em auxílio ao texto final.
Por todo o exposto acima, observa-se que o Laudo Técnico elaborado em razão da discordância das partes, no âmbito de uma individualização da produção de uma jazida compartilhada, tem natureza jurídica própria, constituindo decisão regulatória[24] apta a solucionar a controvérsia instaurada.
Logo, não pode ser definido como espécie de arbitragem. Sequer se aproxima de uma mediação. E não tem natureza de mero arbitramento por especialista na matéria.
6. DA DEFINITIVIDADE DO LAUDO TÉCNICO ELABORADO PELA ANP
Tendo em conta o trazido acima, por mais que o documento final seja vinculante às partes, esta vinculação se dá com relação à impossibilidade de descumprimento, e não quanto à impossibilidade de contestação. O documento será vinculante, mas não incontestável.
E, por ser uma decisão administrativa da Diretoria Colegiada da Agência Reguladora, entende-se que este ato decisório poderá ser atacado por recurso administrativo[25], bem como pelas demais defesas recursais expressamente trazidas pela Lei 9.784/1999.
O Laudo Técnico não traz a característica da definitividade, tendo em conta não haver previsão legal expressa neste sentido.
Ademais, nem poderia haver Lei informando ser a decisão administrativa definitiva e incontestável, não sendo razoável entender que o direito constitucional fundamental do acesso à justiça[26] estaria mitigado em razão de dispositivo legal.
Por esta razão, também se compreende que seria cabível, à parte que se sentir prejudicada em razão da distribuição, pela ANP, dos direitos e deveres na jazida compartilhada, recorrer ao Poder Judiciário para buscar o que entende ser seu direito.
Aqui, é de se notar que alguns contratos administrativos (destacadamente os Contratos de Partilha de Produção mais recentes) prevêem métodos alternativos de solução de controvérsias diretamente em seu texto, mais destacadamente a conciliação, a mediação, a peritagem (perito independente) e a arbitragem.
Como ressaltado anteriormente, a unitização é dever contratual desde a rodada zero, de maneira que qualquer conflito entre as partes, surgido ao longo da relação contratual, deverá ser decidido de acordo com o método alternativo acordado expressamente no texto do referido contrato.
Entretanto, como também já mencionado neste estudo, por mais que em alguns contratos administrativos a ANP figure como parte (representando a União), esta não é a regra geral atualmente aplicável, sendo a Agência uma entidade reguladora e fiscalizadora do cumprimento das obrigações contratuais.
Assim, para que a solução do caso perpasse obrigatoriamente por método alternativo de solução de conflitos, além da sua previsão contratual, a Agência Reguladora deve figurar como parte neste contrato (ainda que representando a União).
Por outro lado, nos contratos em que a ANP não seja parte, bem como naqueles contratos em que não houver cláusula expressa estipulando um método alternativo para solução do conflito, a parte que se sentir prejudicada pelo Laudo Técnico poderá buscar a solução do caso pelo Poder Judiciário, além dos recursos administrativos e demais defesas cabíveis pela Lei de Processo Administrativo.
CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que a Lei de Partilha de Produção e a RANP 867 trouxeram, para o ordenamento jurídico nacional, uma figura sui generis, que mistura características de meios alternativos de solução de controvérsias, de arbitramento e de decisão regulatória.
Importante notar, entretanto, que por mais que o Laudo Técnico seja vinculante para as partes que irão integrar o Acordo de Individualização da Produção da jazida compartilhada, este não é um instrumento incontestável, podendo ser alvo de ataque pelos recursos e defesa cabíveis (seja administrativamente, seja judicialmente).
Por último, mister esclarecer que para todas as partes envolvidas no procedimento de individualização da produção (inclusive a ANP, enquanto entidade reguladora apta a aprovar o AIP) é salutar seguir a razoabilidade e a cordialidade exigidas de uma negociação, a fim de que se consiga conciliar o melhor interesse de cada empresa com o interesse público, atingindo e maximizando, assim, o Princípio da Eficiência.
REFERÊNCIAS
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2017.
Modelo de Contrato de Concessão - Rodada Zero. https://www.gov.br/anp/pt-br/rodadas-anp/rodadas-concluidas/rodada-zero. Acessado em 17.05.2025.
Modelo de Contrato de Partilha de Produção - Sexta Rodada. https://www.gov.br/anp/pt-br/rodadas-anp/rodadas-concluidas/partilha-de-producao/6a-rodada-partilha-producao-pre-sal. Acessado em 17.05.2025.
CARMONA, Carlos Alberto. A Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. São Paulo: Malheiros, 1998.
Conceito de Mediação. https://cortebrasileira.org.br/?page_id=685. Acessado em 17.05.2025.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IX. Rio de Janeiro: Forense, 1976
[1] Utilizando de forma analógica o conceito de definitividade aplicado no Processo Civil que, nas palavras do professor Daniel Assumpção, “significa que a decisão que solucionou o conflito deverá ser respeitada por todos: partes, juiz do processo, Poder Judiciário e até mesmo por outros Poderes”. (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2017)
[2] Artigo 2º, IX da Lei nº 12.351/2010.
[3] Conceito de jazida, dado pelo artigo 6º, XI da Lei nº 9.478/97.
[4] A União admite, como forma excepcional de evitar um procedimento de individualização da produção, sendo alternativa ao AIP, a transferência parcial de um campo (que se formalizará pela cessão parcial da posição contratual), na forma do artigo 10 da Resolução ANP nº 785/2019.
[5] De igual modo, no regime excepcional da Cessão Onerosa há, também, essa obrigatoriedade, a partir do disposto no artigo 1º da Resolução ANP nº 867/2022.
[6] Art. 67. Revogam-se o § 1º do art. 23 e o art. 27 da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997.
[7] Modelo de Contrato de Concessão - Rodada Zero. https://www.gov.br/anp/pt-br/rodadas-anp/rodadas-concluidas/rodada-zero. Acessado em 17.05.2025.
[8] Modelo de Contrato de Partilha de Produção - Sexta Rodada. https://www.gov.br/anp/pt-br/rodadas-anp/rodadas-concluidas/partilha-de-producao/6a-rodada-partilha-producao-pre-sal. Acessado em 17.05.2025.
[9] CARMONA, Carlos Alberto. A Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. São Paulo: Malheiros, 1998.
[10] Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: VII - a sentença arbitral.
[11] Conceito de Mediação. https://cortebrasileira.org.br/?page_id=685. Acessado em 17.05.2025.
[12] Caso seja homologado judicialmente (como em situações que envolvam direitos indisponíveis transigíveis, por exemplo), terá força de título executivo judicial.
[13] Artigo 20, p.ú. da Lei nº 13.140/2015.
[14] Art. 509. Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento do credor ou do devedor: I - por arbitramento, quando determinado pela sentença, convencionado pelas partes ou exigido pela natureza do objeto da liquidação.
[15] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IX. Rio de Janeiro: Forense, 1976
[16] A RANP 25, que veio a ser substituída pela RANP 867, já regulamentava o mencionado procedimento.
[17] Art. 39. Os acordos de individualização da produção serão submetidos à prévia aprovação da ANP.
[18] Art. 33, § 2o. A ANP determinará o prazo para que os interessados celebrem o acordo de individualização da produção, observadas as diretrizes do CNPE.
[19] Art. 36. A ANP terá o prazo de até cento e vinte dias, contados a partir do protocolo da petição de que trata o art. 35, para determinar a forma como serão apropriados os direitos e as obrigações sobre a jazida compartilhada.
[20] Art. 4º da Lei 13.848/2019. A agência reguladora deverá observar, em suas atividades, a devida adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendimento do interesse público.
[21] Art. 33, § 3º da RANP 867. A ANP, a seu exclusivo critério, poderá aceitar que o laudo técnico a que se refere o art. 33, seja elaborado por terceiro e custeado pelo concessionário, contratado ou cessionária.
[22] Além de representar a União em alguns contratos de Concessão, a ANP é parte do AIP, também representando a União, em áreas não contratadas do pós-sal, de acordo com o artigo 37 da Lei nº 12.351/2010.
[23] Art. 784 do CPC. São títulos executivos extrajudiciais: III) - o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas.
[24] Art. 7º da Lei 13.848/2019. O processo de decisão da agência reguladora referente a regulação terá caráter colegiado.
[25] Art. 56 da Lei 9.784/1999. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito.
[26] Artigo 5º, XXXV da CRFB/1988: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Advogado da Petrobras. Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Ex-servidor da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Ex-juiz leigo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, RALPH LOUREIRO. A Natureza Jurídica do Laudo Técnico Elaborado pela ANP nos Procedimentos de Individualização da Produção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 set 2025, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69596/a-natureza-jurdica-do-laudo-tcnico-elaborado-pela-anp-nos-procedimentos-de-individualizao-da-produo. Acesso em: 08 set 2025.
Por: MARINA AUGUSTO DE MORAIS
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