RESUMO: O presente artigo examina a criação do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias (CHAT), instituído pela Lei Complementar nº 214/2025 (LC nº 214/2025), à luz dos desafios de legitimidade democrática, de representatividade social e federativa e de autonomia técnico-decisória, valores que integram o ordenamento jurídico brasileiro. A análise parte da concepção cooperativa do órgão, destinado à uniformização interpretativa e à integração das administrações tributárias, e examina a sua estrutura e a sua composição. Discutem-se, ainda, a ausência de participação social, o predomínio da União nas deliberações e os riscos de viés fiscalista e de conflitos de interesses. Conclui-se que, embora o CHAT represente um avanço institucional relevante, sua efetividade dependerá da correção das assimetrias representativas e do fortalecimento da independência técnica e da legitimidade das decisões do Comitê.
Palavras-Chave: Sistema Tributário Nacional; Reforma tributária; Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias; Legitimidade; Representatividade; Autonomia; Cooperação.
1 INTRODUÇÃO
A Reforma Tributária, consagrada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 (EC nº 132/2023) e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, inaugurou um novo paradigma de governança fiscal no país. Entre as inovações trazidas, destaca-se a criação do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias (CHAT), cuja competência é definida pelo art. 321 da LC nº 214/2025, in verbis:
Art. 321. Compete ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias:
I - uniformizar a regulamentação e a interpretação da legislação relativa ao IBS e à CBS em relação às matérias comuns;
II - prevenir litígios relativos às normas comuns aplicáveis ao IBS e à CBS; e
III - deliberar sobre obrigações acessórias e procedimentos comuns relativos ao IBS e à CBS.
O referido Comitê materializa o ideal de cooperação federativa, princípio tributário introduzido pela EC nº 132/23, sendo fundamental para reduzir assimetrias interpretativas e litígios fiscais que versem sobre o IBS e a CBS. A sua criação reflete a busca por um modelo de gestão tributária harmônico, racional e transparente, pilares indispensáveis para a consolidação de um sistema fiscal justo e moderno.
Contudo, a estrutura do CHAT revela fragilidades quanto à legitimidade democrática, à representatividade social e federativa e à autonomia técnica de suas decisões. Este artigo analisa criticamente tais aspectos, sem desconsiderar a importância institucional do órgão, buscando conciliar a eficiência fiscal com a observância dos princípios constitucionais.
2 AVANÇO INSTITUCIONAL E COOPERAÇÃO FEDERATIVA NA HARMONIZAÇÃO TRIBUTÁRIA
O CHAT configura um instrumento de racionalização administrativa inédito no sistema tributário brasileiro. Ao possibilitar a uniformização interpretativa de normativos e de procedimentos comuns do IBS e da CBS, o Comitê tende a conferir maior segurança jurídica às operações econômicas que envolvam esses tributos, contribuindo para a redução do contencioso e para o aprimoramento do ambiente de negócios. Trata-se de um avanço significativo na consolidação de uma governança tributária cooperativa, em que as administrações atuam de forma articulada, compartilhando dados, métodos e entendimentos normativos.
Do ponto de vista funcional, o Comitê possui natureza consultiva, sem exercer atividade jurisdicional. Dentre suas atribuições, destaca-se a uniformização da regulamentação e a interpretação da legislação relativa ao IBS e à CBS em relação às matérias comuns, prevista no art. 321, I, da LC nº 214/2025. A vinculação das administrações fazendárias a tais deliberações reforça a coerência sistêmica e a simplificação tributária e previne divergências regionais, problema histórico que comprometia a neutralidade fiscal e a competitividade entre os entes subnacionais.
Dessa forma, o CHAT se apresenta como um mecanismo de coordenação federativa e de previsibilidade normativa, capaz de reduzir incertezas e de alinhar a atuação dos Fiscos, fortalecendo a eficiência do sistema tributário e promovendo maior segurança jurídica no cumprimento das obrigações fiscais.
3 ASSIMETRIAS REPRESENTATIVAS E DESAFIOS DE LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA
Apesar dos avanços institucionais, a composição do CHAT evidencia uma discrepância de representatividade entre os entes federativos. A predominância da União nas deliberações, em detrimento dos Estados, do Distrito Federal e, principalmente, dos Municípios, pode conduzir a uma centralização interpretativa, incompatível com o modelo de federalismo fiscal cooperativo que a Reforma Tributária pretende instaurar (Gasperin, 2025).
Conforme dispõe o art. 319, I, “a”, da LC nº 214/2025, metade da composição do CHAT será indicada pela União, a qual será representada por quatro integrantes da Receita Federal do Brasil. Essa prevalência traduz uma espécie de subordinação das administrações tributárias subnacionais, deslocando a função harmonizadora para um plano de supremacia técnica e decisória federal, em manifesto contrassenso com a proposta de supranacionalidade, de paridade institucional e de cooperação que orientou a criação do Comitê de Harmonização (Gasperin, 2025).
Outro ponto de preocupação é a ausência de participação da sociedade civil e dos contribuintes nas deliberações do órgão. A composição estritamente fazendária do CHAT tende a produzir um viés fiscalista, restringindo a pluralidade de perspectivas e a sensibilidade às demandas do setor produtivo (Gomensoro; Colussi, 2025).
Essa limitação reforça o paradigma de antagonismo entre Fisco e contribuinte, que já se reflete em um contencioso tributário estimado em cerca de 75% do PIB nacional, segundo a Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT) (Portal Migalhas, 2025).
A incorporação de uma representação paritária, à semelhança do que ocorre em órgãos deliberativos como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e os Conselhos de Contribuintes, permitiria equilibrar a presença do Estado e da sociedade, conferindo maior legitimidade às deliberações e reforçando o caráter cooperativo do sistema.
A ausência dessa representatividade social desafia a legitimidade democrática do Comitê, uma vez que suas deliberações, embora técnicas, produzirão efeitos sobre questões que impactam diretamente a sociedade civil, como a atividade econômica e empresarial e os direitos dos contribuintes.
Assim, a efetividade da harmonização interpretativa dependerá da incorporação de mecanismos participativos, capazes de equilibrar os interesses arrecadatórios e as garantias dos administrados, de modo a promover decisões mais equânimes e socialmente legitimadas.
4 RISCOS DE COMPROMETIMENTO DA IMPESSOALIDADE ADMINISTRATIVA E DA AUTONOMIA TÉCNICO-DECISÓRIA
Outro desafio relevante diz respeito à composição do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CGIBS), do qual derivam os integrantes do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias. Embora a LC nº 214/2025 estabeleça diretrizes para a atuação técnica e cooperativa desses órgãos, o fato de nem todos os membros do CGIBS serem servidores públicos de carreira suscita preocupações quanto à impessoalidade e à isenção das deliberações.
A presença de representantes de livre nomeação, sem vínculo funcional efetivo com as administrações tributárias, pode criar potenciais conflitos de interesse e comprometer a legitimidade das decisões colegiadas do CHAT, sobretudo em temas sensíveis, como a definição de regras de creditamento e o tratamento de benefícios fiscais e de regimes especiais de tributação.
Conforme destacado por Leonardo Alvim, coordenador do Comitê Jurídico da Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios (Sejan) da Advocacia Geral da União (AGU) e membro do Grupo de Trabalho sobre Reforma Processual Tributária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em análise publicada pela Fecomércio de São Paulo:
O texto atual prevê um conselho superior que manda em tudo, o Comitê Gestor do IBS, que será composto por secretários fazendários, que não são advogados ou tributaristas, e que decidirão os destinos de todos. Isso é temerário, pois pode resultar em desembaraços controversos que gerarão ainda mais litígios (FecomércioSP, 2025).
Essa configuração institucional produz um duplo efeito negativo: de um lado, compromete o princípio da impessoalidade administrativa, uma vez que a tomada de decisão pode ser influenciada por interesses particulares; de outro, amplia o risco de judicialização, porquanto a ausência de deliberações imparciais tende a incentivar o contribuinte a buscar o Poder Judiciário como forma de defesa.
A consolidação de um sistema tributário estável e justo exige que o CHAT, além da participação efetiva dos contribuintes, opere sob bases técnicas sólidas e com composição funcional formada preferencialmente por servidores de carreira com notório conhecimento jurídico-tributário. A impessoalidade e a tecnicidade das decisões são condições essenciais para que o Comitê se torne um instrumento legítimo de harmonização normativa, e não um mecanismo de imposição interpretativa centralizada.
5 CONCLUSÃO
O Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias (CHAT) representa uma das inovações mais relevantes da Reforma Tributária, configurando um instrumento de coordenação federativa e de racionalização da atividade fiscal. Sua criação simboliza o esforço institucional de superar a fragmentação normativa e de construir um sistema tributário mais simples, justo e eficiente, alinhado aos princípios da segurança jurídica e da cooperação federativa.
Entretanto, a efetividade do CHAT depende da superação de desafios estruturais que poderão comprometer a legitimidade de suas deliberações. A ausência de participação social, a predominância da União nas decisões, o viés fiscalista e a possibilidade de conflitos de interesses revelam fragilidades que podem minar o potencial transformador do Comitê.
A harmonização tributária, para alcançar legitimidade democrática e estabilidade institucional, exige um equilíbrio efetivo entre autonomia técnica, pluralidade representativa e imparcialidade decisória. Somente um órgão dotado dessas garantias poderá produzir orientações normativas impessoais, comprometidas não apenas com a arrecadação, mas com a realização, sobretudo, dos princípios constitucionais da cooperação e da justiça tributária.
Em última análise, o êxito do CHAT dependerá da sua capacidade de se afirmar como um espaço de convergência institucional e de diálogo republicano, em que a técnica e a democracia se complementem na construção de um modelo de tributação moderno, equitativo e sustentável. A consolidação desse equilíbrio será fundamental para que a Reforma Tributária, além de um rearranjo normativo, se efetive como um verdadeiro projeto de fortalecimento do pacto federativo e de aprimoramento do Sistema Tributário Nacional.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 20 dez. 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm. Acesso em: 29 out. 2025.
BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 16 jan. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp214.htm. Acesso em: 29 out. 2025.
FECOMERCIOSP. Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo. Incertezas em torno da Reforma Tributária podem aumentar contencioso tributário pós-reforma. São Paulo, 2025. Disponível em: https://www.fecomercio.com.br/noticia/incertezas-em-torno-da-reforma-tributaria-podem-aumentar-contencioso-tributario-pos-reforma. Acesso em: 29 out. 2025.
GASPERIN, Carlos Eduardo Makoul. Estrutura de harmonização normativa do IBS e da CBS: apontamentos iniciais. Revista Consultor Jurídico, 04.05.2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mai-04/estrutura-de-harmonizacao-normativa-do-ibs-e-da-cbs-apontamentos-iniciais/. Acesso em: 29 out. 2025.
GOMENSORO, Alessandra; COLUSSI, João. O Comitê de Gestão de Harmonização na reforma tributária. JOTA, 31.07.2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/radar-reforma-tributaria/o-comite-de-gestao-de-harmonizacao-na-reforma-tributaria. Acesso em: 29 out. 2025.
PORTAL MIGALHAS. ABAT sugere participação de contribuintes para harmonizar IBS e CBS. Publicado em: 30.05.2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/431537/abat-sugere-participacao-de-contribuintes-para-harmonizar-ibs-e-cbs. Acesso em: 29 out. 2025.
Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZAMBENEDETTI, Filipe Lauria. O Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias (CHAT): uma análise dos desafios de legitimidade, de representatividade e de autonomia técnico-decisória Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2025, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69878/o-comit-de-harmonizao-das-administraes-tributrias-chat-uma-anlise-dos-desafios-de-legitimidade-de-representatividade-e-de-autonomia-tcnico-decisria. Acesso em: 12 nov 2025.
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