RESUMO: O princípio licitatório do planejamento, previsto expressamente na Lei Federal nº 14.133/2021, impede a aquisição de produtos com o foco exclusivo na economicidade, uma vez que há a necessidade de valorar outros princípios constitucionais e legais. O presente trabalho tem o objetivo de avaliar a possibilidade de responsabilização de agentes públicos por inobservância ao adequado planejamento nas contratações públicas. Nesse sentido, realizou-se o estudo da legislação em referência, em conjunto com apontamentos doutrinários e jurisprudenciais.
Palavras-chaves: planejamento, contratações públicas, responsabilização.
1. INTRODUÇÃO
A nova Lei de Licitações e Contratos, publicada em 1º de abril de 2021, conferiu especial destaque ao planejamento governamental para a contratação de obras, serviços, compras e alienações pela Administração Pública.
A partir da análise do referido princípio, este trabalho procura avaliar a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos que trabalham diretamente no procedimento licitatório ou que respondem pela governança do ente (agentes políticos).
2. DO PLANEJAMENTO DAS CONTRATAÇÕES
Com o advento da Lei Federal nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos), o princípio do planejamento passou a constar expressamente como norma-matriz do procedimento licitatório e de contratação pela Administração Pública (art. 5º da Lei nº 14.133/2021). A inserção do referido princípio, cumulada com os outros previstos na nova legislação, busca observar o princípio constitucional da eficiência (art. 37, caput, da Constituição Federal).
Sobre o princípio do planejamento, leciona José dos Santos Carvalho Filho[1] que:
Sem dúvida, um dos mais importantes princípios da Administração Pública, e dos quais esta é mais carente, é o princípio do planejamento. O planejamento comporta a necessidade de definir projetos a serem executados, incluindo etapas, cronogramas, modos de fazer etc. Em verdade, planejar é o oposto de improvisar, porque o improviso quase sempre redunda em fracasso quanto à conquista de metas, ao passo que o planejamento atua de forma prospectiva, com visão sobre o futuro e dentro da maior exatidão possível. (CARVALHO FILHO, 2022, p. 249)
Desse modo, convém esclarecer que as ações voltadas ao combate de desperdícios de recursos caminham ao encontro da necessidade de planejamento das contratações, tanto em aspecto amplo (plano anual), bem como na maior atenção dispensada na fase preparatória de cada licitação realizada.
Nessa esteira, destaca-se que a elaboração do Plano de Contratações Anual (PCA) – programado para coincidir com o exercício financeiro (art. 34 da Lei Federal nº 4.320/1964) e, por isso, possibilitar a adequada previsão de recursos para as contratações públicas – tem o condão de evitar a aquisição de produtos desnecessários ou em quantidades superiores ao consumo. Nesse sentido dispõe a Lei Federal nº 14.133/2021:
Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:
VII - a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias.
§ 1º O plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput deste artigo deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial e será observado pelo ente federativo na realização de licitações e na execução dos contratos.
Ademais, no âmbito específico de cada contratação, a adoção de ações de treinamento e capacitação dos agentes públicos responsáveis pela fase preparatória do procedimento licitatório, sobretudo voltadas ao planejamento das compras, é medida necessária para evitar o desperdício de recursos públicos.
Em relação à aquisição de bens, a fase preparatória do procedimento licitatório poderá evitar o desperdício de recursos caso a contratação esteja em consonância com o PCA e ocorra a adequada elaboração do estudo técnico preliminar e do termo de referência (art. 18, caput e incisos I e II, da Lei Federal nº 14.133/2021).
O Estudo Técnico Preliminar (ETP) é o “documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução” (art. 6º, inciso XX, da Lei Federal nº 14.133/2021). Caso seja constatada a viabilidade da contratação, o ETP subsidia a elaboração do Termo de Referência (TR), documento necessário para a contratação de bens e serviços, que contém – dentre outros elementos descritivos – a definição do objeto, incluídos sua natureza, os quantitativos e a estimativa do valor da contratação (art. 6º, inciso XX, da Lei Federal nº 14.133/2021).
Enfatiza-se que a estimativa das quantidades é elemento central do ETP, nos termos da nova Lei de Licitações:
Art. 18, § 1º O estudo técnico preliminar a que se refere o inciso I do caput deste artigo deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:
I - descrição da necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público;
II - demonstração da previsão da contratação no plano de contratações anual, sempre que elaborado, de modo a indicar o seu alinhamento com o planejamento da Administração;
III - requisitos da contratação;
IV - estimativas das quantidades para a contratação, acompanhadas das memórias de cálculo e dos documentos que lhes dão suporte, que considerem interdependências com outras contratações, de modo a possibilitar economia de escala;
Outrossim, a elaboração do ETP e do TR deve observar as disposições setoriais específicas para as compras públicas (arts. 40 a 44 da Lei Federal nº 14.133/2021), que disciplinam que o “planejamento de compras deverá considerar a expectativa de consumo anual” e que as quantidades a serem adquiridas, em função de consumo e utilização prováveis, devem ser estimadas, sempre que possível, mediante adequadas técnicas quantitativas (art. 40, caput e inciso III).
Diante do exposto, denota-se que o objetivo do processo licitatório, quanto à “seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública” (art. 11, inciso I, da Lei Federal nº 14.133/2021), não é alcançado tão somente com o foco na economicidade – em que pese este princípio ser encartado na nova Lei de Licitações e Contratos – uma vez que se faz necessário observar outros dispositivos da Lei Federal nº 14.133/2021, sobretudo os princípios do planejamento, da eficiência, da razoabilidade, da proporcionalidade e do desenvolvimento nacional sustentável (art. 5º da Lei nº 14.133/2021).
Ademais, a busca exclusiva pela economia pode desencadear efeito contrário, dada a ausência da chamada “eficiência na afetação dos recursos (allocative)” – conforme leciona o André Saddy (2022, p. 390) – uma vez que as quantidades adquiridas podem não maximizar o bem-estar social.
3. DA RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS
A Lei Federal nº 14.133/2021 dedica um capítulo (artigos 7º a 10) aos agentes públicos que participam do processo licitatório. Em apertada síntese, tais agentes devem ser designados pela autoridade máxima do órgão ou entidade, tendo em vista a promoção da gestão por competências (art. 7º, caput) e o princípio da segregação de funções (art. 5º, caput, e art. 7º, § 1º), e preencher os requisitos estabelecidos em lei: ser preferencialmente servidor efetivo ou empregado público permanente; possuir atribuições relacionadas a licitações e contrato, ou formação compatível, ou qualificação atestada por escolas de governo; bem como não estar impedido de atuar em virtude das relações de parentesco, contratuais ou profissionais elencadas no inciso III do art. 7º da referida Lei.
Em análise sistêmica, os agentes públicos envolvidos com o procedimento licitatório podem desempenhar uma das seguintes funções: (i) ser agente de contratação designado pela autoridade competente (art. 8º, caput, da Lei Federal nº 14.133/2021); (ii) ser parte da equipe de apoio que auxilia o agente de contratação (art. 8º, § 1º); (iii) ser membro da comissão de contratação (art. 8º, § 2º), a qual pode ser formada para substituir o agente de contratação em licitações que envolvam bens ou serviços especiais (art. 6º, inciso XIV); bem como (iv) ser membro dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração (art. 7º, § 2º).
Ademais, a Lei de Licitações e Contratos abrange expressamente sobre a responsabilidade dos agentes de contratação e dos membros da comissão de contratação. Enquanto o agente de contratação responde “individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe” (art. 8º, § 1º, da Lei Federal nº 14.133/2021); os membros “responderão solidariamente por todos os atos praticados pela comissão”, ressalvado àquele que “expressar posição individual divergente fundamentada e registrada em ata lavrada na reunião em que houver sido tomada a decisão” (art. 8º, § 2º).
Conforme Helenice Hachul (s.d.), a responsabilidade individual do agente de contratação é justificada porque esse agente “é quem ostenta com exclusividade a competência para proferir todas as decisões pertinentes no procedimento licitatório”, uma vez que à equipe de apoio incumbe a realização tão somente dos atos materialmente necessários à prática do procedimento.
Todavia, em que pese a responsabilidade pessoal – individual ou solidária – dos agentes públicos responsáveis pelas decisões no certame licitatório, não é possível afastar a responsabilidade funcional de todo e qualquer servidor que atua no procedimento. Primeiro, porque a responsabilidade dos servidores públicos decorre do dever funcional, ínsito à relação jurídico-administrativa, de observância às normas e regulamentos. Segundo, porque a lógica da Lei de Licitações e Contratos se encontra alicerçada na atribuição de responsabilidade ao agente causador de prejuízo à Administração e ao patrimônio público, consoante se observa pela análise conjunta do art. 71, § 1º; art. 73, caput; art. 75, § 6º; art. 124, § 1º, e art. 141, § 2º da Lei Federal nº 14.133/2021.
Em relação à possibilidade de responsabilização de agentes político (prefeito e de seus secretários, por exemplo), cumpre asseverar que a Lei de Licitações e Contratos (Lei Federal nº 14.133/2021) destaca a responsabilidade da alta administração no que se refere ao alcance de objetivos do processo licitatório e à implantação de adequado sistema de controle das contratações:
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I - assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
II - assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
III - evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;
IV - incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
[...]
Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:
I - primeira linha de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade;
II - segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade;
III - terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas.
§ 1º Na forma de regulamento, a implementação das práticas a que se refere o caput deste artigo será de responsabilidade da alta administração do órgão ou entidade e levará em consideração os custos e os benefícios decorrentes de sua implementação, optando-se pelas medidas que promovam relações íntegras e confiáveis, com segurança jurídica para todos os envolvidos, e que produzam o resultado mais vantajoso para a Administração, com eficiência, eficácia e efetividade nas contratações públicas.
Dessa forma, aos agentes políticos incumbe a adoção de providências para a implantação de boas práticas de gestão na contratação, de gestão de riscos e de controle preventivo, a fim de alcançar os objetivos do processo licitatório e produzir o resultado mais vantajoso para a Administração.
Convém enfatizar que o Tribunal de Contas da União tem jurisprudência consolidada no sentido de ser possível a responsabilização do ordenador de despesas pela falta de planejamento administrativo nas contratações públicas. Nesse sentido, a título de ilustração:
Se a situação fática exigir a dispensa, mesmo considerando a ocorrência de falta de planejamento, não pode o gestor deixar de adotá-la, pois se assim proceder responderá não apenas pela falta de planejamento, mas também pelos possíveis danos que sua inércia possa causar. (TCU, Acórdão 1667/2008, Plenário, Relator Ministro Ubiratan Aguiar, julgado em 13/08/2008).
Todavia, é importante ressaltar que a responsabilização dos agentes políticos é subjetiva. Desse modo, não cabe responsabilização por todo e qualquer ato ilegal ou irregular no procedimento licitatório. Assim, se o planejamento administrativo for episódico, a responsabilidade deve ser atribuída tão somente aos agentes públicos responsáveis pela condução do processo licitatório. Por outro lado, quando a falta de planejamento for sistêmica, cabe a responsabilização dos agentes políticos que foram negligentes/omissos quanto à efetiva implantação de governança das contratações, gestão de riscos e controle preventivo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a relevância do adequado planejamento nas contratações públicas, entende-se pelo cabimento da responsabilidade dos agentes públicos que participam do processo licitatório, pelos prejuízos advindos da realização do contrato administrativo, bem como dos agentes políticos, pela ausência de planejamento administrativo, desde que comprovado o elemento subjetivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Barueri: Atlas, 2022, p. 249.
HACHUL, Helenice. A responsabilização do agente de contratação perante a Nova Lei de Licitações. Disponível em: < https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/noticias/%C3%8Dntegra%20do%20Artigo.pdf >. Acesso em: 28 fev. 2025.
SADDY, André. Curso de direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: CEEJ, 2022, p. 390.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acórdão nº 1667/2008, Plenário, Relator Ministro Ubiratan Aguiar, julgado em 13/08/2008. Disponível em: < https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-31493 >. Acesso em: 28 fev. 2025.
[1]. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Barueri: Atlas, 2022, p. 249.
Auditor do Estado da Controladoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul (CGE-MS). Advogado inscrito na OAB/MS. Especialista em Gestão Pública e em Direito Processual. Graduado em Farmácia, ocupou o cargo de Técnico em Regulação e Vigilância Sanitária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALCANTARA, Helder Braz. A responsabilização de agentes públicos por inobservância ao princípio licitatório do planejamento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jul 2025, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69139/a-responsabilizao-de-agentes-pblicos-por-inobservncia-ao-princpio-licitatrio-do-planejamento. Acesso em: 14 ago 2025.
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Benigno Núñez Novo
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