RESUMO: O presente artigo analisa criticamente a compatibilidade entre a teoria da justiça de John Rawls e as políticas de ações afirmativas no Brasil. Fundamentando-se no ideal de justiça como equidade, podemos indagar se as cotas raciais e sociais promovem a igualdade de oportunidades em contextos historicamente desiguais. O trabalho articula perspectivas filosóficas divergentes e evidência empírica nacional, buscando compreender os limites e potenciais dessas medidas à luz da disputa conceitual sobre mérito, liberdade e reparação histórica.
Palavras-chave: justiça; ações afirmativas; John Rawls; cotas; desigualdade.
ABSTRACT: This article critically analyzes the compatibility between John Rawls' theory of justice and affirmative action policies in Brazil. Grounded in the ideal of justice as fairness, it explores whether racial and social quotas foster equal opportunities in historically unequal contexts. The paper draws from contrasting philosophical views and Brazilian empirical data to evaluate the limits and potentials of such policies in the conceptual dispute surrounding meritocracy and structural inequality.
Keywords: justice; affirmative action; John Rawls; quotas; inequality.
Introdução
As políticas afirmativas de igualdade racial no Brasil ainda parecem uma promessa a ser cumprida. Quando falamos em equidade, não se trata apenas de reconhecer desigualdades evidentes, mas de nos perguntarmos por que algumas trajetórias são celebradas como mérito, enquanto outras são silenciadas como exceção. Este artigo propõe-se a refletir criticamente sobre as ações afirmativas, especialmente as cotas raciais e sociais, a partir do referencial de John Rawls, mas sem perder de vista a materialidade brasileira — marcada por séculos de exclusão.
A Teoria da Justiça de John Rawls
A teoria da justiça como equidade parte da ideia de que os princípios que regem uma sociedade justa seriam escolhidos por indivíduos racionais, posicionados atrás de um "véu da ignorância". Nessa condição, não saberiam sua raça, classe, gênero, ou talentos naturais. O princípio da igualdade equitativa de oportunidades, nesse sentido, obriga-nos a pensar para além da igualdade formal. E é nesse ponto que as ações afirmativas encontram respaldo normativo: não se trata de privilégio, mas de justiça em sentido forte, da busca por igualdade material.
É comum a crítica de que tais políticas poderiam violar o mérito, a meritocracia. Mas o que é mérito senão o reconhecimento de capacidades desenvolvidas dentro de contextos desiguais? Aristóteles, ainda na antiguidade, já lembrava que tratar igualmente os desiguais é, em si, uma forma de injustiça. Rawls, ao priorizar a estrutura básica da sociedade como objeto da justiça, desloca o foco do indivíduo isolado para as condições de partida. Nesse quadro, ações afirmativas tornam-se instrumentos legítimos de equalização das oportunidades reais.
Ronald Dworkin aprofunda esse argumento ao propor uma teoria da igualdade de recursos. Ele defende que é injusto responsabilizar indivíduos por desigualdades que decorrem de "sorte bruta", como nascer em um contexto social marginalizado. Ações afirmativas, então, seriam formas de neutralizar esse acaso e ampliar a justiça distributiva. Não se trata de punir uns para beneficiar outros, mas de reorganizar as regras do jogo para que todos possam, de fato, competir. Não é justo pular na piscina competindo quando seus adversários já estão no meio do trajeto.
Robert Nozick, fazendo um contrapunto a questão, opõe-se a qualquer forma de redistribuição coercitiva. Para ele, somente as aquisições legítimas importam. No entanto, sua teoria da justiça na titularidade desconsidera que os próprios títulos de propriedade, educação e prestígio muitas vezes derivam de séculos de violações e privilégios legais. Ignorar o passado é uma forma refinada de manter o presente intacto. O Brasil, por exemplo, tem um histórico de 358 anos de escravidão dos negros, começando em 1530, com o início do período colonial e terminando em 1888 com a Lei Áurea. Colecionamos apenas 137 anos de liberdade desde a Lei Áurea com vários entraves ao acesso desta população aos bens sociais, culturais e de cidadania. Estão ainda, em sua maioria nos guetos modernos, nas favelas e comunidades, onde o Estado pouco se faz presente.
Sob esta realidade no Brasil, a experiência das cotas tem sido reveladora. A Lei nº 12.711/2012 foi um marco: estabeleceu critérios sociais e raciais de ingresso nas universidades federais. Apesar das resistências, inclusive judiciais, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 186 e a ADC 41, reconheceu a legitimidade constitucional dessas medidas. A decisão foi clara: não há violação da igualdade quando o Estado busca corrigir desigualdades históricas marcantes.
Dados do Censo da Educação Superior mostram aumento significativo da presença de negros e estudantes de baixa renda no ensino superior federal após as cotas. E mais: não houve queda na qualidade acadêmica. Estudos empíricos demonstram que cotistas apresentam desempenho equivalente ao dos demais estudantes ao final da graduação. Além disso, pesquisas como as de Francis-Tan e Tannuri-Pianto (2018) indicam que os efeitos das cotas se estendem à mobilidade social e ao mercado de trabalho.
É preciso ainda enfrentar o mito do mismatch, ou seja, a ideia de que beneficiários das cotas estariam despreparados para acompanhar os cursos. No contexto brasileiro, essa tese não encontra confirmação robusta. A inclusão não sacrificou a excelência; ao contrário, ampliou o sentido do mérito.
Por fim, a justiça exige mais do que neutralidade: exige memória, coragem institucional e imaginação política. Rawls não nos entrega soluções prontas, mas nos fornece um crivo para avaliar as estruturas sociais. E, segundo esse crivo, a indiferença perante a desigualdade é, ela mesma, uma forma de injustiça.
As ações afirmativas, portanto, não devem ser vistas como concessões, mas como parte da reconstrução ética de uma sociedade plural. É sempre bom relembrar que a justiça começa quando deixamos de fingir que todos partiram do mesmo ponto. O Brasil ainda não chegou lá, mas as cotas são um passo na direção certa.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de M. da Gama Kury. Brasília: UNB, 1991.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 186/DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 41/DF. Rel. Min. Luiz Fux, 2017.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FRANCIS-TAN, A.; TANNURI-PIANTO, M. Affirmative Action and University Performance in Brazil. The Journal of Human Resources, v. 53, n. 1, p. 35-72, 2018.
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
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RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
RAWLS, John. Justiça como Equidade: Uma Reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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