WELLINGTON MARTINS DA SILVA[1]
(Orientador)
RESUMO: As redes sociais monetizadas se tornaram uma fonte de renda significativa para criadores de conteúdo, gerando ativos digitais com valor econômico e patrimonial. No entanto, a legislação sucessória tradicional não contempla de forma específica a herança desses bens digitais, o que gera insegurança jurídica para herdeiros e interessados. Este artigo investiga a sucessão de ativos digitais em plataformas monetizadas, analisando as lacunas normativas e propondo diretrizes para a regulamentação desses bens no direito sucessório brasileiro. A pesquisa utiliza revisão bibliográfica, análise de casos e comparação com legislações estrangeiras para sugerir soluções jurídicas que garantam maior segurança na transmissão do patrimônio digital pós-morte.
Palavras-chave: direito sucessório, redes sociais, ativos digitais, herança digital, monetização online.
ABSTRACT: Monetized social networks have become a significant source of income for content creators, generating digital assets with economic and patrimonial value. However, traditional succession law does not specifically address the inheritance of these digital goods, creating legal uncertainty for heirs and stakeholders. This article investigates the succession of digital assets on monetized platforms, analyzing regulatory gaps and proposing guidelines for the regulation of these assets in Brazilian succession law. The research employs bibliographic review, case analysis, and comparison with foreign legislation to suggest legal solutions that ensure greater security in the transmission of digital heritage after death.
Keywords: succession law, social networks, digital assets, digital inheritance, online monetization.
INTRODUÇÃO
A crescente digitalização da sociedade tem transformado profundamente as relações sociais e econômicas, criando novos desafios para o direito, especialmente no campo sucessório. Redes sociais monetizadas permitem que criadores de conteúdo gerem receita significativa por meio de parcerias, publicidade e assinaturas, formando um patrimônio digital que, no caso de falecimento do titular, levanta questionamentos sobre sua transmissibilidade e gestão pelos herdeiros. Entretanto, a ausência de regulamentação específica para esses bens imateriais pode resultar em insegurança jurídica e disputas sucessórias.
Atualmente, o direito sucessório brasileiro ainda está fundamentado em bens materiais e patrimoniais tradicionais, sem prever de forma clara a transmissibilidade de ativos digitais. Diante desse cenário, surgem questionamentos relevantes: os perfis e canais de redes sociais monetizadas podem ser considerados parte da herança? Como garantir que esses ativos sejam administrados de acordo com a vontade do falecido?
Além das redes sociais monetizadas, outro aspecto relevante para o estudo da sucessão digital são os investimentos digitais, como criptomoedas e NFTs (tokens não fungíveis). Diferentemente dos perfis sociais, esses ativos possuem características peculiares, como descentralização e anonimato, que dificultam a localização e transmissão aos herdeiros. A inexistência de uma regulamentação específica pode dificultar a identificação desses bens no inventário, bem como sua transmissão legal aos beneficiários legítimos.
Diante dessa problemática, este artigo busca analisar como o direito sucessório pode ser adaptado para incluir os ativos digitais no contexto das redes sociais monetizadas e dos investimentos digitais. A pesquisa se baseará em revisão bibliográfica, análise comparativa com legislações estrangeiras e estudo de casos, a fim de propor soluções jurídicas que garantam maior segurança na transmissão desses patrimônios intangíveis.
Ao longo do estudo, serão examinadas as lacunas normativas presentes na legislação brasileira, bem como as possíveis medidas regulatórias para garantir a sucessão de bens digitais. Assim, espera-se contribuir para o avanço do debate sobre herança digital, proporcionando subsídios para um sistema sucessório mais adequado à realidade contemporânea.
1. EVOLUÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO
O direito sucessório no Brasil evoluiu ao longo dos séculos para se adaptar às mudanças sociais, econômicas e tecnológicas. A transmissão do patrimônio após a morte tem sido uma preocupação jurídica desde as civilizações antigas, sendo regulamentada de formas distintas ao longo da história. As primeiras normas de sucessão patrimonial surgiram no Direito Romano, com a divisão entre sucessão legítima e testamentária. No período medieval, o direito sucessório era fortemente influenciado por normas religiosas e pelo regime feudal, onde a herança era essencialmente reservada à manutenção das linhagens familiares.
No Brasil Colônia, o direito sucessório era regido pelas Ordenações do Reino, com forte influência portuguesa. No período imperial, com o Código de 1916, consolidaram-se normas que estabeleciam a transmissão patrimonial dentro da família, privilegiando descendentes e ascendentes. O direito constitucional de herança trata de uma garantia expressa no artigo 5º, inciso XXX, da Constituição da República Federativa do Brasil. A inclusão desse direito na Carta Constitucional de 1988 foi um ato inédito e insólito no Brasil, já que não há referência semelhante nas Constituições anteriores. (Lôbo, 2014). Nesse sentido, Paulo Lôbo salienta a emersão de valores existenciais no Direito das Sucessões constitucionalizado, revelando o primado da pessoa humana. (Lôbo, 2014).
Com a promulgação do Código Civil de 2002, houve avanços significativos na previsão dos direitos do cônjuge e da união estável, garantindo maior equidade na divisão da herança. A norma também consolidou a transmissão da herança como um direito fundamental, conforme previsto na Constituição Federal.
1.1 Conceito de Herança
A herança pode ser definida como o conjunto de bens, direitos e obrigações deixados por uma pessoa falecida e que serão transmitidos aos seus sucessores. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2023, pág. 16), “a herança consiste no conjunto de relações jurídicas, de caráter patrimonial, que se transmitem do falecido aos seus herdeiros".
O Código Civil brasileiro, em seu artigo 1.784, estabelece que "aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". Essa definição reflete a natureza jurídica da herança como uma universalidade de direitos, garantindo a continuidade patrimonial.
Assevera Carlos Roberto Gonçalves (2012, pág. 32) que
A palavra ‘herança’ tem maior amplitude, abrangendo o patrimônio do de cujus, que não é constituído apenas de bens materiais e corpóreos, como um imóvel ou um veículo, mas representa uma universalidade de direito, o complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico.
Nesse contexto, verifica-se que o direito à herança pressupõe a ocorrência do evento morte. Nos termos do Código Civil brasileiro, a personalidade civil da pessoa natural se extingue com a morte. Com o falecimento do titular do patrimônio, ocorre a extinção da personalidade civil da pessoa natural, a qual tem início com o nascimento com vida, conforme disposto no artigo 2º do Código Civil de 2002. Como consequência direta desse fato, tem-se o início do processo sucessório. Entre os princípios fundamentais do direito das sucessões, destaca-se o princípio da saisine.
O princípio da saisine estabelece que, com a morte, a transmissão da herança aos herdeiros legítimos e testamentários ocorre de forma automática e imediata, independentemente de aceitação ou manifestação de vontade por parte dos sucessores. Esse mecanismo tem por finalidade garantir que o acervo hereditário não permaneça sem titular durante o período que antecede a formalização da partilha, assegurando a continuidade patrimonial e evitando situações de insegurança jurídica.
1.2 A Expansão da Noção de Patrimônio e os Bens Digitais
Com a ascensão da era digital, o conceito de patrimônio expandiu-se para incluir bens digitais, como contas em redes sociais monetizadas, criptomoedas e NFTs. O debate jurídico recente busca compatibilizar o direito à herança com a proteção da privacidade digital do falecido, levantando questões sobre transmissibilidade e acesso aos bens digitais.
A evolução do direito sucessório reflete a dinamicidade das relações patrimoniais e sociais. A incorporação de novas formas de bens no ordenamento jurídico é essencial para garantir segurança e previsibilidade na transmissão patrimonial, assegurando tanto o direito dos herdeiros quanto a autonomia privada do falecido sobre seus bens digitais.
Desta feita, tendo em vista que as redes sociais são bens incorpóreos e que atualmente não há reconhecimento expresso pelo ordenamento jurídico do seu conteúdo como bem passível de herança, via de regra, não haveria garantia acerca do patrimônio virtual da pessoa após a sua morte. Todavia é notório que os perfis nas redes sociais com milhares de seguidores são usados como ferramenta de trabalho e geração de lucro, portando, deste modo uma natureza de bem patrimonial, ou seja, passíveis de herança, compondo o monte mor partilhável por se tratar de bem imaterial e avaliável economicamente.
2. O POTENCIAL MONETIZADOR DAS REDES SOCIAIS PÓS-MORTE
Nos últimos anos, as redes sociais passaram a desempenhar um papel fundamental na geração de renda, sendo utilizadas por influenciadores, artistas e figuras públicas como plataformas de monetização por meio de publicidade, parcerias e outros modelos de negócios. Essa característica traz novas implicações no âmbito do direito sucessório, especialmente no que se refere à transmissão desse patrimônio digital aos herdeiros.
Bruno Torquato Zampier Lacerda classifica os referidos haveres como fruto de uma verdadeira revolução digital e tecnológica. Portanto, havendo implicação destes ativos na vida privada dos seus titulares e não titulares, é nítido estarmos diante de verdadeiros bens jurídicos. (Lacerda, 2021).
Exemplos concretos demonstram que perfis de personalidades públicas continuam a gerar receita após a morte de seus titulares. O caso de Gugu Liberato, falecido em 2019, ilustra essa realidade. Após sua morte, suas redes sociais mantiveram-se ativas, sendo transformadas pela família em uma plataforma de disseminação de informações e conscientização, ampliando seu alcance e mantendo seu valor econômico. (ESTADÃO, 2020; FOLHA DE S.PAULO, 2021).
Outro exemplo relevante é o do cantor MC Kevin, que faleceu em 2021. Após sua morte, o número de seguidores em suas redes sociais aumentou significativamente, o que, consequentemente, elevou o engajamento de suas publicações e o potencial de monetização de seu legado digital. (VOGUE, 2021; POPLINE, 2021).
A cantora Marília Mendonça também exemplifica esse fenômeno. Após sua morte em 2021, seu perfil no Instagram teve um expressivo crescimento no número de seguidores, e, em pouco tempo, conteúdos patrocinados foram publicados em seu nome. A publicação de um anúncio pago após o falecimento da artista demonstra como as redes sociais podem continuar sendo utilizadas como ativos econômicos mesmo após a morte do titular da conta. (EXTRA, 2021; CORREIO DO POVO, 2021).
Outro caso emblemático é o de Gabriel Diniz, cantor conhecido pelo hit "Jenifer", que faleceu em 2019. Suas redes sociais permaneceram ativas e foram gerenciadas pela família para manter seu legado artístico vivo. O aumento do engajamento em suas plataformas digitais impulsionou a valorização de sua obra musical, evidenciando a importância do gerenciamento desses ativos no pós-morte. (UOL, 2019; TUPI, 2019).
A legislação sucessória brasileira, especificamente o artigo 1.784 do Código Civil, prevê que a herança compreende o conjunto de bens, direitos e obrigações do falecido, mas não trata expressamente da sucessão de bens digitais. Diante da ausência de regulamentação específica, surgem questionamentos sobre a aplicabilidade das normas tradicionais ao universo digital e a necessidade de garantir a continuidade do patrimônio virtual dentro do direito das sucessões. Essa lacuna normativa promove uma insegurança jurídica e impede uma abordagem clara e precisa no que diz respeito à transmissão e administração dos bens digitais após o falecimento de uma pessoa (Honorato e Leal, 2020; Mendes e Fritz, 2019).
O direito sucessório, portanto, deve acompanhar essas transformações tecnológicas e econômicas, assegurando a proteção dos direitos dos herdeiros e a manutenção do patrimônio digital gerado em vida pelo falecido. A crescente relevância das redes sociais como instrumentos de geração de riqueza reforça a necessidade de uma regulamentação específica sobre a transmissão dessas contas e seus rendimentos no pós-morte.
3. A TRIBUTAÇÃO NA TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIOS DIGITAIS MONETIZADOS
Com o avanço das tecnologias e a consolidação de plataformas digitais como fontes de renda, a sucessão patrimonial deixou de se restringir aos bens tangíveis e passou a abranger, também, os ativos digitais com valor econômico. Neste contexto, surge uma nova complexidade extremamente relevante a presente discussão: a tributação da herança digital, sobretudo quando se trata de redes sociais monetizadas, como canais no YouTube, perfis no Instagram com contratos publicitários, contas no TikTok, entre outras.
No ordenamento jurídico brasileiro, a transmissão causa mortis de bens e direitos está sujeita ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), de competência dos Estados e do Distrito Federal, conforme previsto no artigo 155, inciso I, da Constituição Federal de 1988. A legislação estadual regulamenta as alíquotas, hipóteses de incidência e base de cálculo do imposto. No entanto, não há uniformidade ou previsão expressa quanto aos bens digitais de natureza monetária, o que leva à necessidade de interpretações ampliativas.
A dificuldade principal está em mensurar e avaliar economicamente os perfis e canais digitais como parte do espólio. Diferente de bens físicos ou ativos financeiros tradicionais, esses patrimônios digitais possuem valoração baseada em métricas variáveis como número de seguidores, engajamento, visualizações e contratos comerciais em vigor. Ainda, podem estar vinculados à imagem pessoal do falecido, dificultando a continuidade da monetização por herdeiros.
Nesse cenário, alguns doutrinadores defendem a aplicação analógica das normas relativas a bens imateriais, como direitos autorais e marcas, que são transmissíveis e podem compor o inventário.
Por sua vez, o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966), em seu artigo 110, dispõe que a definição de bens e direitos, bem como de suas transmissões, deve observar a legislação civil. Assim, se a herança digital for reconhecida como direito patrimonial transmissível, deve-se aplicar o ITCMD, desde que possível a avaliação econômica do ativo. A jurisprudência ainda é incipiente sobre o tema, mas decisões pontuais já começam a considerar a relevância econômica de bens digitais no contexto sucessório. É o caso de decisões envolvendo contas do Google AdSense, direitos autorais sobre conteúdos digitais e até lucros de plataformas de streaming.
Portanto, é imperiosa a atualização normativa e interpretativa que contemple os ativos digitais monetizáveis como componentes legítimos do patrimônio do de cujus, sujeitos à devida tributação, de forma a preservar a justiça fiscal e a segurança jurídica das relações sucessórias no ambiente digital.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A crescente digitalização da vida cotidiana e a expansão do patrimônio imaterial exigem que o direito sucessório evolua para abarcar novas realidades. A ausência de regulamentação específica para a herança digital gera insegurança jurídica e pode comprometer a administração dos bens digitais de uma pessoa falecida. Para Bruno Torquato Zampier Lacerda também há uma necessidade de regulação específica, tendo em vista que analogias ou cláusulas gerais, embora úteis em um primeiro momento, são insuficientes para lidar com os conflitos que, em breve, aumentarão em escala milionária. (Lacerda, 2021).
A análise de propostas legislativas e de modelos estrangeiros é fundamental para identificar soluções eficazes e viáveis para a sucessão desses ativos. Neste contexto, importante destacar as iniciativas legislativas brasileiras, bem como experiências internacionais que possam servir de referência para o aprimoramento do ordenamento jurídico nacional.
O Projeto de Lei 1689/2021 busca preencher a lacuna legislativa no Brasil sobre a sucessão de bens digitais, incluindo contas em redes sociais e ativos monetizados. A proposta define critérios para a transmissibilidade desses bens e estabelece diretrizes para a administração digital pós-morte. No entanto, a ausência de regulamentação específica ainda gera incertezas quanto à aplicação prática do projeto e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico vigente.
Em países como os Estados Unidos, a Lei Uniforme de Acesso a Ativos Digitais de Fiduciários (RUFADAA) possibilita que herdeiros ou representantes legais tenham acesso a contas e bens digitais do falecido, garantindo maior previsibilidade na sucessão. Na União Europeia, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) impõe restrições ao acesso de terceiros a dados pessoais, criando desafios na sucessão digital, mas permitindo que o titular estabeleça diretrizes em vida. Já em Portugal, a legislação permite que titulares designem herdeiros digitais, conferindo maior autonomia sobre a transmissão de seus ativos digitais. (TRUST & WILL, 2022; MIGALHAS, 2021 e PORTUGAL VILELA, 2021).
Atualmente, tramitam no Congresso Nacional alguns projetos de lei que visam regulamentar a sucessão de bens digitais no Brasil. O PL nº 6.468/2019 propõe a inclusão de um parágrafo único no artigo 1.788 do Código Civil, estabelecendo que 'os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança sejam transmitidos aos herdeiros'.
Já o PL nº 5280/2019 sugere alterações no artigo 1881 do Código Civil, permitindo que o codicilo (instrumento de manifestação de última vontade) seja realizado também por meio de vídeo, visando contemplar bens digitais. Além disso, o PL nº 1144/2021 aborda a tutela dos direitos de personalidade após a morte, incluindo os dados pessoais digitais, propondo alterações nos artigos 12 e 20 do Código Civil.
Por fim, destaca-se o PL nº 1689/2021, que busca disciplinar especificamente a sucessão de ativos digitais e contas em redes sociais, oferecendo diretrizes claras sobre a destinação desses bens no pós-morte.
A jurisprudência brasileira, embora ainda incipiente, tem enfrentado questões envolvendo herança digital. Um exemplo relevante é o Agravo de Instrumento nº 1906763-06.2021.8.13.0000, do TJMG:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. DESBLOQUEIO DE APARELHO PERTECENTE AO DE CUJUS. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS. DIREITO DA PERSONALIDADE. A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada herança digital. A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos. Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis. A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º, a proteção constitucional ao direito à intimidade. Recurso conhecido, mas não provido. (TJ-MG - Agravo de Instrumento: 19067630620218130000, Relator.: Des.(a) Albergaria Costa, Data de Julgamento: 27/01/2022, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/01/2022).
Conforme se observa, foi tratado a respeito do desbloqueio de aparelho celular pertencente ao falecido para acesso às informações pessoais. O tribunal decidiu que a herança abrange tanto bens materiais quanto imateriais, incluindo aqueles de valor econômico digital, mas destacou que o acesso a dados pessoais deve observar os direitos da personalidade, protegidos constitucionalmente, e ser permitido apenas em casos de real necessidade.
Outro julgado relevante é o AI nº 2082495-04.2022.8.26.0000 do TJSP, que tratou da obtenção de informações sobre ativos financeiros, incluindo criptomoedas, deixados pelo falecido:
Processo civil. Inventário. Agravo de instrumento. Necessidade de identificação da ativos financeiros em nome do autor da herança . Concessão de alvará para sua obtenção. Desnecessidade de expedição dos ofícios requeridos. Imperiosa, todavia, a prorrogação do prazo para o fornecimento das informações a serem pesquisas com o uso do alvará concedido para 60 (sessenta) dias, em razão do número da instituições a serem pesquisadas Recurso parcialmente provido. (TJ-SP - AI: 20824950420228260000 SP 2082495-04 .2022.8.26.0000, Relator.: Ademir Modesto de Souza, Data de Julgamento: 26/04/2022, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/04/2022).
O tribunal entendeu que, embora o juiz de origem tenha negado a expedição de ofícios às instituições financeiras, era imprescindível conceder alvará e prorrogar o prazo para localizar esses ativos, uma vez que fazem parte do espólio e devem ser identificados para assegurar a correta partilha entre os herdeiros.
Considerando o cenário atual, é possível sugerir que a legislação brasileira adote um regime jurídico específico para ativos digitais, diferenciando claramente aqueles com valor econômico — como perfis monetizados, contas vinculadas a contratos publicitários, criptomoedas e NFTs — dos bens digitais de cunho pessoal, como e-mails e mídias armazenadas em nuvem. Ademais, é essencial permitir que o titular, em vida, manifeste sua vontade sobre a destinação desses ativos, seja por meio de testamento, seja por instrumentos próprios disponibilizados pelas plataformas digitais. Por fim, essa regulamentação deve estar em consonância com as normas de proteção de dados, de forma a assegurar o respeito à privacidade, à autodeterminação informativa e à proteção dos direitos dos herdeiros.
Diante do cenário analisado, algumas diretrizes podem ser sugeridas para a regulamentação da sucessão digital no Brasil. Primeiramente, é essencial estabelecer um regime jurídico específico para ativos digitais, diferenciando bens de valor econômico, como perfis monetizados e criptomoedas, de bens de valor pessoal, como e-mails e contas em redes sociais sem fins lucrativos.
Além disso, a legislação deve garantir meios eficazes para que indivíduos manifestem sua vontade sobre a destinação de seus bens digitais, seja por testamento digital ou por meio de ferramentas de legado oferecidas por plataformas.
Outro ponto crucial é a harmonização da regulamentação com normas de proteção de dados, assegurando que o acesso aos ativos digitais respeite direitos fundamentais à privacidade e à autodeterminação informativa.
A análise do PL 1689/2021 demonstra que, embora represente um avanço na tentativa de normatizar a sucessão de bens digitais no Brasil, ainda há desafios a serem enfrentados para garantir a sua efetiva aplicação. O estudo de modelos internacionais bem-sucedidos sugere que a regulamentação nacional deve adotar uma abordagem equilibrada, conciliando a proteção de dados com o direito dos herdeiros ao patrimônio digital do falecido.
Ademais, é essencial que a legislação brasileira estabeleça diretrizes claras quanto à transmissibilidade dos ativos digitais e os mecanismos legais para garantir sua gestão pós-morte. O alinhamento com padrões internacionais pode proporcionar maior segurança jurídica e reduzir disputas sucessórias, assegurando que os bens digitais sejam devidamente incorporados ao patrimônio hereditário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evolução das tecnologias de informação e o crescimento exponencial das redes sociais transformaram radicalmente as formas de produção de patrimônio e de interação social. Diante desse cenário, o direito sucessório encontra-se diante de um novo desafio: a incorporação dos bens digitais, especialmente aqueles de valor econômico gerados por plataformas como Instagram, YouTube, TikTok, além de ativos como criptomoedas e NFTs.
A análise desenvolvida ao longo deste trabalho demonstrou que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não dispõe de normas específicas e adequadas para lidar com a sucessão de patrimônios digitais, o que gera insegurança jurídica tanto para os herdeiros quanto para o próprio Estado. A ausência de regulamentação clara dificulta o reconhecimento, a valoração e a partilha de ativos digitais, que, embora intangíveis, podem possuir alto valor econômico e relevância social.
A inclusão de redes sociais monetizadas no contexto da herança exige uma adaptação do direito às novas dinâmicas econômicas. O reconhecimento da natureza patrimonial desses perfis, quando atrelados a contratos publicitários e outras fontes de receita, deve ser respaldado por normas jurídicas que assegurem sua transmissão pós-morte de forma legítima e segura.
Além disso, a tributação desses bens traz outra camada de complexidade. A aplicação do ITCMD sobre ativos digitais é possível juridicamente, mas ainda depende de interpretações e adequações legislativas que reconheçam sua natureza e estabeleçam critérios claros para avaliação e incidência tributária.
Através da abordagem do Projeto de Lei 1689/2021 e da análise comparativa com legislações estrangeiras, ficou evidente que o Brasil precisa avançar rumo a uma regulamentação específica para a sucessão digital. Apenas assim será possível garantir a efetividade dos direitos hereditários, o respeito à vontade do falecido, a segurança jurídica dos herdeiros e a devida arrecadação tributária.
Portanto, espera-se que este trabalho contribua para o amadurecimento do debate acadêmico e legislativo sobre o tema, servindo como subsídio para a construção de um direito sucessório que reflita a realidade contemporânea e seja capaz de enfrentar os desafios do mundo digital.
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[1] - Doutorando em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, Mestre em Direito e Sociologia, Bacharel em Direito e Ciências Contábeis, Bacharelando em Teologia.
Acadêmico do Curso de Direito da FIMCA – JARU-RO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, VINICIUS RODRIGUES DA. O direito sucessório no âmbito das redes sociais monetizadas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 out 2025, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69799/o-direito-sucessrio-no-mbito-das-redes-sociais-monetizadas. Acesso em: 15 out 2025.
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