No contexto jurídico trabalhista brasileiro, poucos temas evocam tamanha carga histórica, ética e social quanto o reconhecimento de condições análogas à escravidão. O Recurso de Revista analisado pela 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho debruça-se sobre essa matéria espinhosa, suscitando um debate que ultrapassa os limites tradicionais da prescrição para alcançar o âmago da proteção à dignidade humana. A controvérsia gira em torno da possibilidade de afastar o prazo prescricional previsto no art. 7º, XXIX, da Constituição, quando a causa de pedir está assentada na submissão do trabalhador a condições degradantes, de cerceamento de liberdade e supressão da própria autonomia.
Em um primeiro olhar, a discussão poderia parecer meramente técnica: seria legítimo afastar a prescrição bienal ou quinquenal em razão da gravidade dos fatos narrados? No entanto, ao mergulharmos na essência do problema, percebemos que o dilema não é apenas jurídico, mas também moral. Fala-se aqui de relações laborais que não se conformam com a ideia de contrato, mas sim com um sistema de dominação e opressão que afronta os pilares mais elementares do Estado Democrático de Direito.
A decisão do TST, reconhecendo a imprescritibilidade de tais ações, alicerça-se em compromissos internacionais firmados pelo Brasil, especialmente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Corte Interamericana, em julgados emblemáticos como o caso “Fazenda Brasil Verde vs. Brasil”, já sinalizava que o trabalho escravo moderno não pode ser objeto de esquecimento institucional. Trata-se de uma prática que, pela sua natureza estruturalmente violadora, exige resposta estatal contínua, independentemente do lapso temporal.
Sob o prisma constitucional, a fundamentação se robustece ainda mais. O artigo 5º da Constituição de 1988 consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, e o inciso XLIII equipara o trabalho escravo a crime inafiançável e imprescritível. Não há, pois, espaço para interpretações que relativizem esse mandamento, sobretudo quando a norma internacional e o próprio texto constitucional caminham na mesma direção: a de garantir que nenhuma forma de escravidão contemporânea se mantenha impune.
Do ponto de vista trabalhista, a regra da prescrição tem sua função: conferir estabilidade às relações jurídicas e evitar litígios infindáveis. Contudo, essa lógica não pode ser aplicada cegamente quando os fatos descritos rompem com os marcos tradicionais da autonomia da vontade. Não há que se falar em prescrição quando o trabalhador esteve, por anos, silenciado pela violência estrutural, pela coação e pelo medo — elementos que, por si só, inviabilizam o exercício pleno de seus direitos.
A natureza da lesão praticada nesses casos é tão profunda que desconfigura a própria lógica do vínculo empregatício. A relação deixa de ser regida pela subordinação contratual para se tornar um regime de dominação, incompatível com os princípios da boa-fé e da liberdade de trabalho. Nesse contexto, exigir que a vítima aja dentro dos prazos comuns é não apenas insensível, mas também juridicamente inconsistente.
Ainda que se levante o argumento da segurança jurídica, cumpre ponderar que o direito não pode ser utilizado como instrumento de manutenção da injustiça. A estabilidade normativa não pode prevalecer sobre o direito à reparação de violações que atentam contra a própria humanidade do trabalhador. A prescrição, nesse caso, se transformaria em escudo para a perpetuação da impunidade.
Ademais, ao se reconhecer a imprescritibilidade, reforça-se um importante aspecto pedagógico do Direito: o de sinalizar, com clareza, que o trabalho escravo moderno é inaceitável e que o Estado brasileiro não tolerará práticas que nos remetem aos períodos mais sombrios da nossa história. É uma mensagem tanto para empregadores quanto para a sociedade em geral de que certas condutas não serão jamais normalizadas ou legitimadas pelo tempo.
Entretanto, é compreensível que haja divergências. Alguns juristas poderão sustentar que essa exceção à prescrição deveria ser prevista expressamente em lei ordinária ou em emenda constitucional específica, de modo a evitar o risco de insegurança jurídica. Embora válida como preocupação teórica, essa visão, a meu ver, peca por ignorar a especificidade e a gravidade das situações envolvidas.
Assim, ao final dessa análise, não me resta senão concordar com a posição adotada pelo Tribunal Superior do Trabalho. Trata-se de uma interpretação que, longe de subverter o ordenamento, o enobrece. O direito do trabalho, nascido para corrigir assimetrias e proteger os mais vulneráveis, não pode se esquivar do seu papel quando enfrenta sua prova mais dura: lidar com a herança e a permanência da escravidão em pleno século XXI.
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