A decisão do TST, ao negar provimento ao Agravo de Instrumento interposto por entregador vinculado à plataforma Rappi, reacende um debate profundo e necessário sobre os contornos jurídicos das novas formas de prestação de serviço mediadas por tecnologia. Mesmo com o reconhecimento da transcendência jurídica do tema, o Tribunal reafirma sua posição conservadora ao afastar a possibilidade de vínculo empregatício entre trabalhador plataformizado e empresa, com base na ausência dos requisitos do art. 3º da CLT, especialmente a subordinação jurídica.
Embora o voto dialogue com a realidade histórica e traga uma narrativa interessante sobre a evolução do trabalho — do maquinismo ao uberismo —, o argumento central permanece ancorado numa interpretação estritamente formal da relação de trabalho. O acórdão parece desconsiderar a perspectiva mais ampla da primazia da realidade sobre a forma, princípio consagrado no Direito do Trabalho e previsto expressamente no art. 9º da CLT, que torna nulo qualquer ato que vise fraudar ou desvirtuar direitos trabalhistas.
As justificativas adotadas pela Corte, como a suposta liberdade do trabalhador em escolher horários, aceitar ou não corridas e se desconectar da plataforma a qualquer momento, não enfrentam adequadamente os elementos da subordinação algorítmica, discutida amplamente pela doutrina contemporânea — a exemplo de Jorge Luiz Souto Maior e do próprio Maurício Godinho, que reconhecem que o controle do trabalho pode ocorrer de maneira indireta, mediada por pontuação, ranqueamento, GPS e metas embutidas no funcionamento da plataforma.
O acórdão também relativiza a ausência de CTPS assinada e a falta de contrato formal como indício de autonomia, ignorando que a própria teoria do contrato-realidade, reforçada por Mario de La Cueva, sustenta que o vínculo empregatício se forma com base na efetiva prestação do serviço, e não na vontade formalizada pelas partes. Essa perspectiva, inclusive, foi reforçada nas aulas com base na teoria eclética adotada pela CLT: embora reconheça a liberdade contratual, também admite que, na prática, essa liberdade é mitigada em relações marcadas por hipossuficiência e desequilíbrio estrutural.
Outro ponto problemático da decisão é o uso recorrente de precedentes do STF — como o julgamento da Reclamação 60.347 — como fundamento para o afastamento do vínculo. Embora se reconheça a importância da disciplina judiciária e da força normativa das decisões do Supremo, é preocupante observar como isso tem se transformado numa espécie de blindagem contra a apreciação concreta de casos em que há claros indícios de relação empregatícia. A autonomia do Direito do Trabalho, como ramo que lida com normas cogentes e princípios próprios, vai sendo, aos poucos, substituída por uma leitura economicista e funcional da Constituição.
O acórdão também não leva em conta o princípio da proteção, que informa todo o sistema trabalhista. Em vez de promover a máxima efetividade dos direitos fundamentais sociais — conforme os arts. 6º e 7º da Constituição —, a decisão opta por preservar uma suposta liberdade contratual, ignorando que, no contexto atual, essa liberdade muitas vezes é apenas uma formalidade imposta aos trabalhadores em situação de vulnerabilidade. Como discutido em aula, o contrato de trabalho é um contrato de adesão, e a vontade do trabalhador é, muitas vezes, condicionada pela necessidade econômica — o que enfraquece qualquer argumento baseado em autonomia plena.
Ainda, quando a Corte afirma que cláusulas contratuais, como avaliação de desempenho e sanções por descumprimento de condutas, seriam meramente naturais dos contratos privados e não configurariam subordinação, ela ignora a realidade fática. A gestão algorítmica impõe obrigações, metas e punições que moldam o comportamento do trabalhador, caracterizando um claro exercício do poder diretivo, mesmo que disfarçado sob o véu da tecnologia. Esse é o cerne da subordinação moderna.
Por fim, o acórdão reforça o entendimento de que a regulação do trabalho plataformizado deve ser feita pelo legislador, não pelo Judiciário. Contudo, essa inércia legislativa não pode ser pretexto para negar direitos. O próprio Direito do Trabalho nasceu da judicialização e da resistência, como vimos no contexto brasileiro com a institucionalização da Justiça do Trabalho ainda no Estado Novo. Esperar que o Congresso regulamente uma situação que já é dramática para milhares de trabalhadores é abdicar do papel constitucional de garantidor da dignidade do trabalho, valor fundante da República (art. 1º, III e IV da CF/88).
Em síntese, o acórdão do TST representa mais um capítulo da tensão entre a proteção ao trabalho e a lógica de flexibilização que se intensificou com a Reforma Trabalhista de 2017. Ao optar por uma leitura restritiva dos elementos da relação de emprego e ao aderir de forma quase irrestrita à jurisprudência do STF, a Corte afasta-se de sua vocação protetiva e contribui para a normalização da precariedade laboral em nome de uma suposta modernização.
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