RESUMO: O presente artigo analisa a transição paradigmática do sistema penal brasileiro, que migra de um modelo puramente carcerário e conflitivo para uma justiça negocial e restaurativa. Partindo do reconhecimento do "Estado de Coisas Inconstitucional" do sistema penitenciário pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347), examina-se a eficácia das penas restritivas de direitos e a introdução revolucionária do Acordo de Não Persecução Penal pela Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime). O estudo investiga, ainda, a aplicação destes institutos na legislação especial, confrontando a flexibilização no tráfico privilegiado com o rigorismo na violência doméstica (Súmula 588 do STJ).
Palavras-chave: Penas Alternativas. Acordo de Não Persecução Penal. Crise Penitenciária. Tráfico Privilegiado. Justiça Negocial.
1. INTRODUÇÃO: O ESGOTAMENTO DO MODELO DE PRISÃO
A história da punição no Ocidente, conforme narra Michel Foucault, evoluiu do suplício dos corpos para a disciplina das almas. O nascimento da prisão moderna, no século XVIII, prometia ser a solução humanitária e racional para a criminalidade, substituindo a vingança pela correção. Contudo, no cenário brasileiro contemporâneo, essa promessa transformou-se numa distopia.
O sistema penitenciário nacional enfrenta um colapso estrutural sem precedentes. A superlotação carcerária, a insalubridade das celas e o domínio territorial das facções criminosas transformaram o presídio em um fator criminógeno. O cárcere, longe de ressocializar, estigmatiza o indivíduo e funciona como um centro de recrutamento para o crime organizado.
Diante desta realidade, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 347, reconheceu que o sistema vive um "Estado de Coisas Inconstitucional", legitimando a busca por medidas descarcerizadoras não como uma opção de política criminal, mas como um imperativo de Direitos Humanos. O presente estudo analisa como o ordenamento jurídico brasileiro tem respondido a esta crise através de dois vetores: as penas restritivas de direitos e a nova justiça negocial.
2. A SISTEMÁTICA DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS
A Reforma da Parte Geral de 1984 e a Lei 9.714/98 consolidaram no Brasil o sistema vicariante ou substitutivo. Diferente de outros países onde a pena alternativa é cominada diretamente no tipo penal, no Brasil o juiz primeiro fixa a pena de prisão para, num segundo momento, substituí-la.
2.1. Requisitos de Admissibilidade (Art. 44 do CP)
Para que a substituição ocorra, o Código Penal impõe filtros rígidos:
a) Requisito Objetivo: A pena privativa de liberdade não pode ser superior a 4 anos para crimes dolosos. Nos crimes culposos, a substituição é permitida qualquer que seja a pena.
b) Requisito da Não-Violência: O crime não pode ter sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, reservando-se o cárcere para condutas que atingem a integridade física.
c) Requisito Subjetivo: O réu não pode ser reincidente em crime doloso, salvo se a medida for socialmente recomendável e a reincidência não for específica.
2.2. As Espécies de Sanção e sua Eficácia
Dentre as modalidades do artigo 43, a prestação de serviços à comunidade destaca-se como a sanção mais eficaz. Ao impor ao condenado o trabalho gratuito em hospitais, escolas ou entidades assistenciais, o Estado promove uma reparação simbólica e pedagógica, mantendo o indivíduo produtivo e inserido no seio familiar.
Já a prestação pecuniária e a perda de bens e valores (confisco alargado) demonstraram-se instrumentos vitais no combate à criminalidade econômica e de colarinho branco, atingindo o infrator na sua esfera patrimonial e evitando a sensação de impunidade que muitas vezes acompanha os crimes financeiros.
3. A REVOLUÇÃO DO PACOTE ANTICRIME: O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP)
Se as penas alternativas clássicas atuavam após a sentença, a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) alterou a lógica temporal do sistema ao introduzir o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) no artigo 28-A do Código de Processo Penal.
3.1. Do Conflito ao Consenso
O ANPP representa a superação do dogma da obrigatoriedade da ação penal em favor do princípio da oportunidade regrada. Inspirado no plea bargaining norte-americano e no modelo europeu de justiça consensual, o instituto permite que o Ministério Público deixe de oferecer denúncia caso o investigado confesse o crime e aceite cumprir condições imediatas.
Este mecanismo racionaliza a justiça criminal: retira do Judiciário milhares de processos de médio potencial ofensivo (furtos, estelionatos, receptação), permitindo que magistrados e promotores foquem na criminalidade violenta e complexa.
3.2. Requisitos e a Polêmica da Confissão
Para a celebração do acordo, exige-se: (i) não ser caso de arquivamento; (ii) confissão formal e circunstancial; (iii) ausência de violência ou grave ameaça; e (iv) pena mínima inferior a 4 anos.
A exigência da confissão na fase inquisitorial tem sido criticada por parte da doutrina garantista como violação ao princípio nemo tenetur se detegere. Contudo, prevalece o entendimento de que a confissão é o pressuposto lógico de um modelo negocial: ao optar pelo acordo, o investigado renuncia estrategicamente ao silêncio em troca da liberdade e da primariedade.
4. O EMBATE NA LEGISLAÇÃO ESPECIAL
A aplicação das medidas descarcerizadoras enfrenta seus maiores desafios na legislação extravagante, onde o populismo penal muitas vezes colide com a técnica jurídica.
4.1. A Lei de Drogas e o Tráfico Privilegiado
A Lei 11.343/06 trouxe avanços e retrocessos. Embora tenha despenalizado o usuário (art. 28), endureceu a pena do traficante. Contudo, criou a figura do "tráfico privilegiado" (§ 4º do art. 33) para o pequeno varejista primário.
Inicialmente, a lei vedava expressamente a conversão da pena deste traficante em restritiva de direitos. O STF, no julgamento do HC 97.256, declarou tal vedação inconstitucional por ferir a individualização da pena. Posteriormente, no HC 118.533, a Corte afastou a natureza hedionda do tráfico privilegiado.
Hoje, é pacífico que "mulas" e pequenos traficantes podem cumprir penas alternativas. Essa jurisprudência é vital para evitar o encarceramento em massa de mulheres vulneráveis, que muitas vezes ingressam no tráfico por coação ou necessidade, sem integrar o núcleo duro das facções.
4.2. A Lei Maria da Penha e a Tolerância Zero
Em sentido diametralmente oposto, na violência doméstica (Lei 11.340/06), o sistema fechou-se a qualquer benefício. A Lei Maria da Penha veda expressamente penas pecuniárias (art. 17).
O Superior Tribunal de Justiça consolidou este rigor através da Súmula 588: "A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos".
Neste microssistema, entende-se que a substituição da pena gerava uma proteção deficiente. A aplicação de "cestas básicas" para agressores de mulheres banalizava a violência de gênero. Portanto, mesmo em lesões leves, impõe-se a pena de prisão (ainda que suspensa pelo sursis), garantindo maior fiscalização estatal.
5. CONCLUSÃO
O Direito Penal brasileiro contemporâneo caminha para um modelo de "duas velocidades" ou dupla via:
a) A via consensual e descarcerizadora: Destinada à criminalidade sem violência e patrimonial, operada através do ANPP e das penas restritivas de direitos, focada na reparação do dano e na eficiência.
b) A via do rigor carcerário: Destinada à criminalidade violenta, ao crime organizado e à violência de gênero, onde a segregação se mantém como instrumento necessário de defesa social.
Conclui-se que os instrumentos legislativos para superar a crise prisional já existem. O ANPP e a jurisprudência progressista do STF no tema de drogas fornecem a base técnica para uma política criminal racional. O desafio remanescente é cultural: superar a mentalidade inquisitorial de que "justiça" é sinônimo de "prisão", implementando uma fiscalização efetiva das medid1as alternativas para que estas sejam legitimadas pela sociedade como sanções sérias, suficientes e necessárias para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2014.
GOMES, Luiz Flávio. Penas e Medidas Alternativas à Prisão. RT, 2002.
STF. Habeas Corpus 97.256. Relator: Min. Ayres Britto.
STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347.
STJ. Súmula 588.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINENA, IGOR DANIEL BORDINI. A crise do encarceramento e a justiça negocial: do colapso prisional às alternativas penais no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2025, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/69917/a-crise-do-encarceramento-e-a-justia-negocial-do-colapso-prisional-s-alternativas-penais-no-direito-brasileiro. Acesso em: 13 dez 2025.
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