RESUMO: Diante do anúncio de desenvolvedores dando conta da eclosão de um novo nível algorítmico, com o surgimento da inteligência artificial geral, torna-se premente examinar seu possível impacto nas populações vulneráveis, gestando formas eficazes de protegê-las contra a manipulação virtual. Com efeito, algoritmos dessa ordem têm a aptidão de intensificar a propagação de extremismos, autoritarismo estatal e alienação juvenil. Mas também é certo que a regulação de seu progresso pode se mostrar ainda mais nefasta que a sua liberação irrestrita, dando ensejo à censura e ao controle informacional. À vista disso, a tutela coletiva se qualifica como a via mais adequada para filtrar parâmetros democráticos na gestão da IAG.
Introdução
Há muito se propaga o surgimento da IAG, uma tecnologia imbuída de perspectivas antagônicas, com previsões de grandes realizações, como o desenvolvimento de novos medicamentos, ao lado de visões escatológicas sobre seus riscos. Apesar da linguagem hiperbólica que cerca o tema, a corrida comercial e bélica entre EUA e China parece finalmente ter chegado aos primeiros protótipos de algoritmos de inteligência artificial geral, alimentando os riscos de totalitarismo cibernético.
Com efeito, a OpenAI divulgou recentemente o GPT-5, com capacidade para superar as habilidades humanas na maioria dos trabalhos economicamente viáveis. Os algoritmos de IAG podem alternar entre interfaces de texto, áudio e o mundo físico, possibilitando autonomia para raciocinar em direção a objetivos, ao invés de apenas responder prompts. Já no front chinês, a aposta é em abordagens alternativas, como a “IA inspirada no cérebro” e a “IA Incorporada”, que possibilita a imersão em ambientes físicos com dados ilimitados, facilitando o aprendizado autônomo e o compartilhamento entre agentes.
Teoricamente, os especialistas do setor têm afirmado que nada feito de silício pode imitar o cérebro humano. De fato, os tradicionais algoritmos de IA se assemelham a psitacídeos multilíngues, baseados em métodos distantes do real funcionamento cerebral, limitando-se a recolher e organizar os pensamentos humanos. Mesmo os algoritmos mais avançados não se equiparam à consciência, que emerge de 100 trilhões de conexões neurais, de onde surgem os raciocínios lógico e sentimental. Com efeito, por muitos anos a palavra “inteligência” em IA não passou de um slogan comercial, já que evolui por métodos completamente diversos da inteligência humana.
Contudo, mesmo adotando métodos diversos de evolução, o efetivo advento de algoritmos de IAG representa riscos consideráveis em mãos erradas, podendo potencialmente ser utilizados como armas de destruição em massa, manipulação de jovens e diversos outros perigos graves.
Assim como ocorre com o controle das armas nucleares, muito tem se falado sobre a necessidade de criação de uma “agência internacional de controle algorítmico”, com poderes semelhantes aos da AIEA, visando garantir o uso pacífico e democrático da IAG. Mas enquanto essa ideia é amadurecida na comunidade internacional, torna-se urgente a celebração de um tratado bilateral entre EUA e China, para conferir transparência ao desenvolvimento da IAG, semelhante aos tratados STARTS de desnuclearização firmados entre EUA e Rússia.
Essa comparação entre a situação da IAG e das armas nucleares não é exagero. Afinal, as atuais gerações são legatárias da doutrina de “destruição mútua assegurada”, que garantiu as bombas termonucleares dentro de seus silos por muitas décadas, protegendo a todos contra seus efeitos devastadores. Da mesma forma, é preciso gestar uma doutrina de convivência segura com os algoritmos de IAG.
Regulação Jurídica
A busca por parâmetros regulatórios para a IAG já é objeto de obras de destaque, como: Modern Perspectives on Artificial Intelligence and Law (Anastasiadou, Seremeti, Masouras e Anastasiadis, editora IGI Global, 2025), The Challenges of Artificial Intelligence for Law in Europe - Data Science, Machine Intelligence, and Law, Book 6 (Marton Varju e Kitti Mezei, editora Springer, 2025) e The Cambridge Handbook of Private Law and Artificial Intelligence (Ernest Lim e Phillip Morgan, Cambridge University Press, 2024), que examinam as influências mútuas entre o sistema legal e a inovação no setor, buscando conformar um design regulatório.
Com efeito, até o final de 2025 serão 6 bilhões de usuários ativos das mídias sociais, gerando a necessidade de transparência sobre o potencial desta tecnologia emergente. As atuais convenções internacionais sobre controle cibernético são insuficientes para conciliar o livre fluxo de inovação com o uso democrático da IAG.
De fato, os algoritmos de IA há muito são utilizados para a propagação de extremismo violento, com criação de câmaras de eco que aumentam seu alcance, resultando em atos criminosos, como nos Distúrbios em Delhi em 2020. Os grupos extremistas utilizam estas funções matemáticas nas mídias sociais para amplificar a propaganda jihadista, a exemplo dos Tigres da Caxemira, patrocinados pelo Paquistão. Eles produzem conteúdo visual de alta qualidade, utilizando hashtags e engajamento digital, além de distribuir smartphones de última geração para toda a população ter acesso diário ao conteúdo extremista, apresentando-o como “resistência”, mediante o alinhamento com arquiteturas de amplificação.
A IAG pode intensificar a propagação das mensagens jihadistas, além de potencializar o totalitarismo cibernético, controlando o que a população pode acessar. Em países democráticos, a IAG pode ser usada comercialmente para alienar a população mais vulnerável, como crianças e adolescentes, na busca incessante por monetização.
Debasmita De e outros coautores explicitaram esses efeitos em um estudo seminal intitulado “Algoritmos de mídia social e dependência química em adolescentes: impactos neurofisiológicos e considerações éticas” (traduzido do inglês e publicado em 08/01/2025).
Segundo as conclusões do estudo, os algoritmos têm causado efeitos no córtex pré-frontal medial ventral, córtex pré-frontal medial, córtex cingulado posterior e giro frontal inferior direito, que estão ligados ao vício no uso de mídias sociais, constituindo fatores de risco para a ansiedade, depressão, TDAH, transtornos alimentares e pensamentos suicidas.
Os algoritmos de vídeos curtos, conhecidos como shorts, também causam vício e dependência, mediante um sistema de estímulos e recompensas cerebrais. Essa manipulação algorítmica utiliza o recurso de rolagem infinita, atrelado à monetização de conteúdos virais, com alertas constantes, filtros visuais que distorcem a aparência corporal, curtidas e ferramentas de comparação social. Paralelo a isso, as plataformas incentivam o engajamento para aprofundar o vício, enquanto ocultam os efeitos na saúde mental dos adolescentes.
Na ausência de regulação sobre esse efeito na saúde dos jovens, a saída tem sido a tutela coletiva. Nos EUA, as ações coletivas abordam diversos temas ligados ao problema, como: algoritmos que impulsionam o uso compulsivo e criam “tocas de coelho” para manter o usuário preso; feeds infinitos para o usuário rolar indefinidamente; nenhuma advertência durante o cadastro do usuário; ferramentas inadequadas para rastrear conteúdo viciante e limitar seu uso; obstáculos à exclusão de contas; verificação de idade inadequada; e controle parental ineficiente.
De fato, mesmo após constatado o vício, as redes sociais dificultam enormemente a desconexão final do usuário, com algoritmos realizando uma verdadeira “perseguição digital” para retorno ao ambiente viciante.
Diante desse quadro, a tutela coletiva se mostra um mecanismo eficiente para dissuadir os algoritmos perniciosos. Os tribunais norte-americanos já concederam a certificação coletiva a diversas ações de classes versando sobre o tema, com o reconhecimento de um grupo unificado de usuários prejudicados com reivindicações semelhantes, em decorrência dos danos causados pelas plataformas.
Com efeito, entre 2021 e 2022, os tribunais da Califórnia já atenderam mais de 40 milhões de pessoas e 4,5 milhões de casos sobre o tema. Em agosto de 2025, o “Contencioso Multidistrital para Vícios em Mídias Sociais” já contava com 1.922 ações judiciais ativas. Os litígios coletivos cobrem o vácuo da regulação, mitigando os efeitos mais nefastos dos algoritmos. Muitas decisões já reconheceram a criação deliberada de algoritmos viciantes voltados especialmente para menores de idade, enquadrando-os como produtos defeituosos.
No Reino Unido, a regulação instituiu um controle de acesso a determinados sites mediante reconhecimento facial do usuário, para a verificação de idade, o que teve pouco efeito prático, pois a imposição foi contornada com o uso de redes virtuais privadas - VPN.
No âmbito do direito brasileiro, os algoritmos nocivos podem ser equiparados a produtos perigosos, decorrendo a responsabilidade do fornecedor (big techs) por vício ou fato do produto, nos termos do CDC.
Para reforçar a proteção dos jovens, foi aprovado no Brasil o Estado Digital da Criança e do Adolescente para combater a chamada “adultização” de crianças nas redes sociais. Também foram adotados princípios sobre o uso das mídias sociais, como a pluralidade e o dinamismo dos atores no ecossistema digital.
Contudo, tanto as regulações nacionais quanto internacionais ainda são ineficazes contra o uso indevido dos algoritmos de IAG, devendo-se recorrer à tutela inibitória coletiva. Para tanto, é preciso garantir a efetividade desta modalidade de processo, por meio de um olhar apurado para os contornos da tutela coletiva comparada.
Aperfeiçoamento da Tutela Coletiva
O sistema de tutela coletiva brasileiro é bastante avançado na teoria, mas reconhecidamente ineficiente na prática.
Com efeito, a doutrina do direito coletivo avançou bastante em temas como: controle ope legis e ope iudicis da legitimidade ativa, em especial nos casos de cooperativas, comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas; legitimidade bifronte ou intervenção móvel, podendo o ente público atuar ao lado do autor; litisconsórcio entre colegitimados, como MP e MPF, DPE e DPU ou entre MP e DP; litisconsórcio entre indivíduo e legitimado coletivo; intervenção anômala do ente público; regime da coisa julgada secundum eventum probationis e secundum eventum litis; transporte in utilibus da coisa julgada; princípio do máximo benefício da tutela coletiva; relação entre a ação individual e a ação coletiva como um caso especial de continência, variando caso a ação individual seja anterior ou posterior à ação coletiva; ações pseudocoletivas e pseudoindividuais; execução pseudocoletiva; execução negociada; ação inibitória coletiva; e ação coletiva passiva, semelhante à defendant class action, como a ação contra uma torcida organizada.
Apesar deste desenvolvimento teórico, a prática revela uma deficiência estrutural na tutela coletiva em solo pátrio, que pode ser aperfeiçoada pelo exame dos institutos do direito comparado. De fato, o microssistema de tutela coletiva brasileiro serve de base para o Processo Coletivo Ibero-Americano, que convive ao lado do sistema Collective Redress (adotado na Europa Continental) e das Class Action norte-americanas.
As Class Action costumam ser identificadas com o sistema common law, mas nem sempre essa relação é verdadeira. De fato, as Class Action finca raízes no “contencioso de grupo” que vigia na Inglaterra medieval, por volta do ano 1200, e que envolvia os grupos de época, como as paróquias. Esse sistema foi levado para os EUA pelo juiz da Suprema Corte Joseph Story, em especial pela sua opinião proferida em 1820 no caso West v. Randall. Esse sistema foi positivado na Regra 48 das Regras Federais de Equidade de 1842, sendo substituído pela Regra 38 em 1912 e, finalmente, pela Regra 23 das Regras Federais de Processo Civil de 1938. Em 1966, essa regra passou por reformulação, adotando-se a sistemática opt-out como padrão nas ações coletivas.
Inobstante essa origem comum, o sistema de tutela coletiva atualmente em vigor no Reino Unido difere substancialmente do modelo norte-americano, estando mais próximo do Collective Redress adotado na Europa continental. Mas mesmo esse sistema atual enfrentou dificuldades na agregação de interesses e no financiamento das demandas de massa. Para contornar essas dificuldades, o Reino Unido aprovou uma reforma legislativa em 2015, passando também a adotar um sistema de agregação opt-out, ao invés de opt-in.
Sobre essa mudança de parâmetro dos optantes, a Suprema Corte dos EUA decidiu por maioria apertada (5 a 4) contra a certificação de classe nas ações coletivas dos casos Wal-Mart v. Dukes em 2011 e Comcast Corp. v. Behrend em 2013, tendo em conta diferenças nas circunstâncias de cada membro da classe.
Importante pontuar que o sistema de Class Action não é infenso a críticas, como os altos custos do litígio e os baixos acordos que se limitam a oferecer cupons de desconto aos demandantes para compras futuras. Com base nisso, foi aprovada a “Lei de Equidade de Ações Coletivas” de 2005, dispondo que um perito independente pode avaliar se um acordo de cupons é vantajoso para os membros do grupo antes da homologação judicial (28 USCA 1712(d)).
Outra crítica comum ao sistema de class action é sua semelhança com uma extorsão sancionada judicialmente, conforme exposto por Milton Handler no célebre artigo de 1971 intitulado “Questões Éticas em Acordos de Ações Coletivas” (traduzido do inglês), onde enfrentou indagações que não perderam sua atualidade (“como é possível representar adequadamente os diversos interesses de centenas, milhares ou até milhões de membros da classe em um único acordo?” ou “ quem determina se o acordo proposto é justo?”).
No âmbito da Europa continental, após o escândalo do dieselgate, a Comissão Europeia aprovou uma reforma em 2018, com a intenção de estabelecer um sistema diferente das class action. Pela reforma, a ação coletiva não poderia ser ajuizada por escritórios de advocacia, mas apenas por associações de consumidores, buscando com isso evitar litígios abusivos e desprovidos de mérito. De fato, a Diretiva 1028/2020 do parlamento europeu e do conselho da Europa expressou preocupações com os custos da ação e com a intensa litigiosidade do sistema das class action. Porém, o novo sistema se mostrou frágil, com problemas graves relacionados à viabilidade econômica das ações coletivas.
Apesar de não haver identidade, a maioria dos países de common law adota o sistema de class action, com bancas advocatícias divulgando resultados estratosféricos e oferecendo oportunidades de ingresso em ações em curso (v.g. https://www.mauriceblackburn.com.au/class-actions/join-a-class-action). Apesar das críticas, reconhece-se que o sistema de class action prioriza uma investigação mais aprofundada do caso, com o levantamento robusto de evidências, proporcionando com isso uma posição mais vantajosa na mesa de negociações.
Nos EUA, as ações de classe envolvem temas como direito antitruste, segurança cibernética, patentes, valores mobiliários e bônus de executivos, revelando uma realidade bem diferente da prática brasileira, onde as ações civis públicas são utilizadas em sua maioria na garantia de serviços públicos básicos, como o fornecimento de água e esgotamento sanitário. Mas há pontos de contato entre os dois sistemas, como na oferta de produtos impróprios ao consumo, tornando oportuno um estudo comparativo.
Impende destacar que o modelo de Ação Civil Pública Ibero-Americano tem origem na Ação Popular brasileira de 1934, seguindo-se a atual Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, que serviram de base para o sistema adotado em Portugal, Espanha e América Latina. Em 2004, o Instituto Ibero-Americano de Direito Processual divulgou o “Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América”, contendo um esboço sintético de regras processuais. No ano seguinte, o Ministério da Justiça brasileiro apresentou o “Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos”, bem mais extenso, contendo regras detalhadas do trâmite de uma ação coletiva, e produzido por uma comissão de juristas coordenada por Ada Pellegrini Grinover.
Apesar das diferenças, os distintos sistemas de tutela coletiva possuem pontos em comum, como a busca pela agregação de interesses, permitindo que poucos indivíduos litiguem em nome de pessoas que sequer têm conhecimento de que possuem uma causa viável. Mas os sistemas norte-americano e brasileiro possuem nuances próprias. Enquanto nos EUA grandes bancas de advocacia pagam valores adiantados para incentivar potenciais clientes a ingressarem com ações coletivas, o protagonismo no Brasil fica por conta de sindicatos e associações de servidores públicos, além de entidades estatais, como Ministério Público e Defensoria Pública.
Acerca da legitimidade do Ministério Público, Mauro Cappelletti chegou a refutá-la na obra “Acesso à Justiça”, escrita a quatro mãos com Bryant Garth em meados da década de 1980, levando em conta a conformação do MP italiano, que era ligado ao Poder Executivo. Na mesma época, vigia no Brasil a Lei de Ação Civil Pública e a CF/69, que também colocava o MP junto ao executivo. Atualmente, contudo, tanto o MP quanto a DP conquistaram a autonomia institucional, transformando-se em protagonistas na tutela coletiva.
O estudo comparativo dos dois sistemas é objeto de atenção da doutrina pátria, desde antes da CF/88, como na obra de Péricles Prade (Conceito de Interesses Difusos, editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1987). Kazuo Watanabe também contribuiu para o tema, com o artigo “Demandas coletivas e os problemas emergentes na práxis forense” (in “As garantias do cidadão na justiça”, editora Saraiva, 1993, pp. 185-196), tendo cunhado a expressão “molecularização da demanda”. Por sua vez, Antônio Gidi publicou a obra “A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada” (editora Revista dos Tribunais, 2007) e o texto “A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta (Revista dos Tribunais. v.108. n.61. p. 68), onde defende que o juiz brasileiro avalie a representação adequada do legitimado ativo, tal como no sistema de class action.
Em meados da década de 1990, Cassio Scarpinella Bueno publicou o robusto artigo “As Class Action norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: pontos para uma reflexão conjunta” (Revista de Processo, editora RT, V. 82, 1996, pp. 92-151). De seu turno, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes publicou a obra “Ações coletivas: no direito comparado e nacional" (Revista dos Tribunais, 2010). Em 2011, Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Linda Mullenix publicaram o livro “Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito comparado".
Modernamente, Hermes Zaneti Jr. publicou um artigo provocativo intitulado “Processo Coletivo no Brasil: Sucesso ou Decepção?” (Civil Procedure Review, vol. 10, n.2, maio-agosto de 2019), onde faz uma análise quantitativa e qualitativa das ações coletivas ajuizadas no Brasil em diversos temas. O autor conclui que a próxima geração de processos coletivos deve ter maior participação de órgãos públicos de controle, como as agências reguladoras, e propugna a descentralização do cumprimento das decisões judiciais coletivas, com a criação no ordenamento pátrio de um modelo semelhante aos “Claims Resolution Facilities” adotados no sistema de Class Action.
Simões Pessoa escreveu o brilhante artigo “O Novo Processo Coletivo Brasileiro” (Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Paraná, n. 10, 2019, pp. 283 - 317), embasando-se também em levantamentos empíricos sobre as ações coletivas, desta feita no âmbito do STJ e do STF, traçando um paralelo entre o processo coletivo brasileiro, o alemão (musterverfahren - procedimento padrão e verbandsklage - ações coletivas) e o norte-americano (class action).
Por fim, Humberto Dalla Bernardina de Pinho e José Roberto Mello Porto inovaram em sua obra aos realizarem um exame econômico e ético sobre o tema (“Manual de Processo Coletivo”, editora Saraiva, 2° edição, 2025, capítulo 13 - Aspectos econômicos e éticos da tutela coletiva).
De fato, muitos estudos recentes em análise econômica do direito têm focado na tutela coletiva, avaliando o ganho de escala e os incentivos econômicos, dado que o custo do litígio é muito elevado para um único membro da classe, buscando analisar também os efeitos dissuasórios dos acordos quanto às práticas comerciais espúrias.
A esse respeito, a obra The Law and Economics of Class Actions (James Langenfeld, editora Emerald Publishing LTD, 2014) faz uma incursão neste campo, analisando os casos Wal-Mart Stores, Inc. v. Dukes e Comcast Corp. v. Behrend, em que foi chancelado o depoimento de especialistas em economia e estudos econométricos para a configuração de uma ação coletiva. Estes estudos buscam identificar os membros da classe que foram economicamente impactados por um ato ilícito a partir do estabelecimento de uma abordagem sistemática confiável.
Expondo as vantagens e desvantagens das class action, Gregory C. Cook e Jocelyn D. Larkin pontuam:
“A vantagem mais óbvia de uma ação coletiva é que, se bem-sucedida, o resultado terá um impacto muito maior. O réu provavelmente pagará indenizações muito maiores por sua conduta em uma ação coletiva e será dissuadido de práticas comerciais arriscadas no futuro. Mais vítimas estarão cientes de suas perdas e serão indenizadas por elas. Uma ação coletiva também pode resultar em medidas cautelares sistêmicas para reformar práticas ou impedir novas condutas ilegais, muitas vezes sujeitas a monitoramento judicial futuro. Tal medida normalmente não está disponível em um processo individual. O impacto de uma ação coletiva frequentemente vai muito além das partes envolvidas no litígio. Ações coletivas recebem muito mais atenção da mídia do que processos judiciais comuns. Empresas do mesmo setor monitorarão o litígio e podem ser dissuadidas de ações semelhantes pela perspectiva de responsabilidade coletiva. O público também obtém maior acesso a informações sobre condutas ilegais que possam representar um risco à segurança pública. Ações coletivas também podem apresentar vantagens na descoberta de provas. Os tribunais geralmente permitem uma descoberta mais ampla em uma ação coletiva…Há uma lista igualmente convincente de desvantagens para litígios coletivos. Os casos são processualmente complexos e exigem muito tempo, atenção e experiência. A certificação de classe apresenta um obstáculo assustador, o que torna as ações coletivas particularmente arriscadas. Devido aos altos riscos, o advogado pode esperar que os réus contratem advogados altamente qualificados e montem uma defesa agressiva. Os casos coletivos também são muito caros, exigindo extensos depoimentos e documentos e descoberta eletrônica, depoimento de especialistas e notificação coletiva, todos pagos pelo advogado coletivo. Esses casos normalmente levam muito mais tempo para litigar do que o litígio comum, e a resolução pode ser adiada por anos por recursos interlocutórios e pós-julgamento. Os clientes podem receber menos por suas reivindicações em uma ação coletiva do que em um caso individual e devem ser avisados disso. As ações coletivas estão sujeitas à supervisão e aprovação judicial, o que pode limitar como e quando os casos são resolvidos ou rejeitados. Mesmo quando as partes chegam a um acordo judicialmente sancionado, um terceiro objetor pode contestar o acordo e entrar com um recurso”. (Class Action Strategy & Practice Guide, editora American Bar Association, 2019).
Já na visão de John Coffee Jr.
“Os americanos são distintos em muitos aspectos, mas nenhum mais do que na forma como litigam. Em muitos litígios de alto risco nos Estados Unidos, o advogado do autor controla o litígio e o financia. Em outros lugares, esse padrão é desconhecido. De fato, o litígio é desencorajado na maior parte do mundo por regras que impedem o financiamento do litígio e que forçam o perdedor a arcar com os custos legais, muitas vezes muito maiores, do vencedor. Acima de tudo, a maioria dos sistemas jurídicos considera inaceitável que um advogado possa representar um grande grupo de indivíduos que não consentiram especificamente com a representação, mas que, ainda assim, estariam vinculados ao resultado da ação movida em seu nome. No entanto, litígios em que advogados representam e vinculam clientes "involuntários" ocorrem diariamente na prática de ações coletivas nos Estados Unidos”. (Entrepreneurial Litigation, Harvard University Press, 2015).
As class action são uma exceção à regra de que as partes prejudicadas devem ingressar individualmente com suas demandas. Posto isso, a Regra 23 das Regras Federais do Processo Civil elenca os seguintes pressupostos para obter a certificação como ação de classe: numerosidade, comunalidade, tipicidade e representatividade adequada.
A certificação de classe é o momento em que o juiz define os contornos da ação e o preenchimento dos pressupostos para seguir como uma ação de classe. A denegação da certificação ainda permite que a ação siga como ação individual. A certificação define o grupo de pessoas que serão afetadas pela decisão coletiva. Este exame judicial não adentra o mérito da causa, funcionando como um despacho saneador de admissibilidade, similar às condições e pressupostos processuais da ação coletiva.
O faseamento é a divisão do processo em fases distintas. O Trial Plan é um plano de julgamento, tido como uma ferramenta processual valiosa, onde se estipula a forma como o autor irá apresentar evidências e rebater as alegações defensivas, caso não haja acordo. A Regra 23(d) permite que os réus solicitem ao autor a elaboração de um plano de julgamento, a fim de avaliar a viabilidade das provas coletivas. O plano visa o julgamento perante o júri, mas na maioria dos casos contribui para o fechamento de um acordo entre as partes.
No âmbito jurisprudencial, vige o princípio American Pipe Tolling (pedágio na American Pipe), estabelecido pela Suprema Corte no caso American Pipe & Construction Co. v. Utah, de 1974. Por meio dele, opera-se a suspensão da prescrição no caso de uma certificação de classe ser negada, ou não houver participação em uma classe certificada. Este princípio estimula a eficiência, pois permite que uma ação coletiva represente muitos indivíduos, evitando litígios duplicados.
O Litígio Multidistrital (MDL) engloba vários autores contra o mesmo réu, não se configurando propriamente como uma class action, pois visa precipuamente o fechamento de acordos, e não condenações.
Os Testes de Bellwether servem para avaliar o valor das reivindicações para facilitar um acordo global (settlement), sendo muito utilizado nos casos de produtos defeituosos. De seu turno, o Case Management Orders se assemelha a uma reunião de demandas repetitivas.
No âmbito do direito coletivo brasileiro, o artigo 104 do CDC garante o direito de saída (right to opt out), com o optante, autor da ação individual, tendo a escolha de sair da esfera de incidência dos efeitos da coisa julgada formada na ação coletiva. Concerne salientar que o termo “coisa julgada” advém do latim (res iudicata), com o substantivo res traduzido como coisa, tal como em res publica (coisa pública). Apesar de ser mantido pela tradição, o real significado de res na expressão res iudicata é o de “assunto” julgado, e não “coisa”, significando a imutabilidade da relação jurídica subjacente à causa.
Percebe-se que o direito de opção na ação coletiva advém da possibilidade de haver decisões diferentes nas duas ações, a depender do padrão probatório produzido em cada uma delas. Além disso, a solução encontrada na ação coletiva costuma ser padronizada, adotando-se um meio termo visando colocar fim ao litígio. Já na ação individual, o autor pode postular uma solução mais extensa, que atenda aos seus anseios de justiça.
De uma maneira geral, o ordenamento pátrio adota o sistema opt-out nas ações coletivas e o sistema opt-in no julgamento de casos repetitivos, tal como explicitado no artigo 1.040, §§ 1º e 2º, do CPC, referentes aos Recursos Especiais e Extraordinários repetitivos, estendendo-se igualmente ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.
Uma particularidade do modelo de tutela coletiva no Brasil é a possibilidade de controle incidental de constitucionalidade no âmbito da Ação Civil Pública, além de ser extensivamente utilizada no controle de políticas públicas, o que não é comum nos demais sistemas de tutela coletiva. O próprio controle concentrado de constitucionalidade, mediante ADI, ADC, ADO e ADPF, é classificado doutrinariamente como um caso especial de tutela coletiva.
Cleber Masson aponta o erro do legislador ao tratar da classificação dos direitos coletivos ao tratar sobre a litispendência entre ação individual e ação coletiva, quando ambas estão em andamento, conforme explica:
Ao tomar conhecimento, nos autos de sua ação individual, acerca da existência da ação coletiva, para poder se beneficiar da futura coisa julgada coletiva, a vítima deverá requerer, no prazo de 30 dias, a contar da ciência da existência da ação coletiva, a suspensão do seu processo individual (CDC, art. 104). Atente-se que o art. 104, em sua parte final, refere-se à coisa julgada dos incisos II e III do art. 103. Trata-se de um erro de redação, devendo-se ler como incisos I, II e III. Logo, trate-se de ação coletiva em prol de defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, a vítima só poderá beneficiar de sua coisa julgada caso requeira tempestivamente a suspensão de seu processo individual. Como o réu das ações individuais necessariamente terá conhecimento sobre a ação coletiva (pois nela também figurará como réu), cumprirá a ele trazer a informação sobre a existência da ação coletiva aos autos das ações individuais, caso queira que as vítimas sejam instadas a decidir sobre eventual pedido de suspensão. (Interesses Difusos e Coletivos, editora Método, 8ª edição, 2020, p. 253)
De seu turno, Fabrício Bastos pontua:
O art. 103, III do CDC estabelece a eficácia erga omnes. Parte da doutrina, como já visto, critica a adoção dessa nomenclatura, pois enseja a ideia de que o resultado do processo coletivo será aplicável a todos de forma indistinta. Nos direitos individuais homogêneos os titulares são determinados, não fazendo sentido a eficácia subjetiva ser tão ampla. A sentença de procedência vai impedir a renovação da demanda coletiva, mas não impede a ação individual, a não ser que a indivíduo (sic) tenha ingressado na demanda coletiva, na forma do art. 94, CDC. Em regra, o resultado de um processo coletivo só atinge a esfera jurídica individual para beneficiá-la, jamais para prejudicá-la. Logo, se o resultado de uma ação coletiva for pela improcedència, aquele indivíduo, que não integrou a relação jurídica processual, pode promover ação individual, se o resultado for positivo o indivíduo, (sic) mesmo que não tenha integrado a relação jurídica processual, poderá liquidar e executar a sentença coletiva. (Curso de Processo Coletivo, editora Foco, 2ª edição, 2022, p. 460).
Diferentemente do sistema de class action, no microssistema brasileiro o indivíduo somente tem legitimidade coletiva para a Ação Popular, mas não pode utilizar essa via processual para demandar serviços públicos genéricos, cabendo indicar na petição inicial um ato administrativo específico.
Com efeito, a Ação Popular é indicada pela doutrina como uma forma de participação popular no ambiente público, ao lado da iniciativa popular de lei, referendo e plebiscito, fortalecendo o princípio democrático e republicano.
Mas atualmente há outras formas de participação popular tão ou mais efetivas, como o lobby político e judicial, participação em coletivos e manifestações populares, abaixo-assinados, além dos reclamos virtuais, com vídeos virais, memes e críticas coordenadas nas redes. Com efeito, as mídias digitais viraram a praça pública, onde são discutidos os principais assuntos da população.
Esse quadro pressiona a classe política para a criação de uma agência reguladora das Big Techs, distorcendo as previsões de Hermes Zaneti Junior sobre o papel dessas agências no futuro da tutela coletiva. De fato, esse controle pode desaguar no autoritarismo, cerceando a liberdade de pensamento e de expressão, ressuscitando-se a proposta de criação da Agência Nacional de Comunicação - ANC, que estabelecia o controle do conteúdo veiculado no rádio e na televisão, e que foi enterrada em 2010.
Percebe-se que essas diversas análises doutrinárias que confrontam os sistemas de tutela coletiva no Brasil e nos EUA pecam pelo foco essencialmente teórico, quando o cotejo entre os dois sistemas deve centrar-se na sua eficácia, em especial na coleta de evidências. Além disso, a importação de institutos das class action não pode ser feita sem uma avaliação crítica, já que esse sistema também padece de defeitos, com foco excessivo em demandas que rendem altos honorários (seguros, direito antitruste e mass torts - prejuízos causados por produtos empresariais), desvirtuando o escopo de compensar os membros da classe prejudicados e dissuadir condutas irregulares.
Um exemplo pode fornecer uma ideia do funcionamento do sistema de class action. O Caso People of The State of California, et. al., v. Chunghwa Picture Tubes (Tribunal Superior de São Francisco, Processo nº CGC-11-513.732) não foi intentado por grandes bancas advocatícias, mas pela Procuradora-Geral do Estado da Califórnia, Kamala Harris, em nome de todas as subdivisões políticas do estado, tendo como objeto uma queixa de danos, contando com pedido de medida liminar baseada em violações da Lei de Concorrência Desleal e em enriquecimento injusto do réu.
A ação se baseou na conspiração de mercado nos painéis de LCD entre 1996 e 2006. Com efeito, os produtos eletrônicos se caracterizam por uma tendência constante de queda nos preços após sua introdução no mercado, mas o mercado de painéis de LCD manteve a estabilidade de preços altos em decorrência de conluio. Autoridades do Japão, Coreia do Sul, União Europeia e Estados Unidos investigaram as atividades anticompetitivas entre fabricantes de painéis LCD, concluindo que houve ocultação fraudulenta do conluio entre eles. O relatório da investigação foi divulgado em 2006, cinco anos antes do ajuizamento da ação de classe, mas as partes acordaram em suspender todos os prazos de prescrição de qualquer potencial ação civil estadual ou federal a partir de 30 de agosto de 2010.
O capítulo X da ação de classe descreveu o dano, argumentando que, não fossem os atos anticompetitivos do réu e de seus cúmplices, os autores da ação teriam conseguido comprar painéis LCD a preços mais baixos ou com melhor desempenho. Como resultado direto e imediato da conduta ilícita, os autores não conseguiram comprar painéis LCD a preços determinados pela livre concorrência, sofrendo prejuízos em seus negócios e propriedades, pois, inter alia, pagaram mais por tais produtos do que pagariam em um mercado livre e aberto.
Importante mencionar que, quanto à abrangência, a regra 1855(b) do Regulamento do Tribunal permitia aos autores modificar a descrição de classe com maior especificidade ou dividi-la em subclasses em questões específicas.
Já no capítulo XIV da ação foi alegado enriquecimento sem causa, uma vez que os autores conferiram ao réu um benefício econômico, na forma de lucros anticompetitivos resultantes de sobretaxas ilegais e lucros de monopólio. Também foi alegada restrição ilegal ao comércio, com violação da Lei Cartwright, seção 16720 do Código de Negócios e Profissões.
Ao final, a ação elenca dez pedidos, sendo o primeiro a determinação pelo tribunal de que as reivindicações apresentadas pela classe possam ser mantidas como uma ação coletiva, seguindo-se oito pedidos específicos relacionados ao objeto da ação. O capítulo de pedidos é finalizado com um pedido genérico, comum a este tipo de ação, solicitando que o tribunal conceda outras medidas legais e equitativas que considere justas e adequadas para reparar e prevenir a recorrência da suposta violação, dissipar os efeitos anticompetitivos e restaurar a concorrência.
Em 2013, houve um termo de acordo na ação, onde foi definida a abrangência da classe, incluindo-se quem adquiriu painéis de cristal líquido com transistor de película fina (TFT-LCD) ou produtos contendo painéis LCD, como monitores de computador, laptops e televisores, entre 01/01/1996 e 31/12/2006. O acordo previu um benefício monetário, consistente no pagamento em dinheiro, disponibilizado aos membros da ação coletiva por meio de um fundo de distribuição fluido para subsídios relacionados à tecnologia, e um benefício não monetário, na forma de medidas cautelares, mudanças nas práticas comerciais e cooperação. Por fim, o acordo estabeleceu o pagamento de honorários advocatícios e a exoneração do réu quanto às reivindicações envolvendo os fatos da causa em qualquer outro foro.
Referido acordo foi aprovado pelo Tribunal Superior do Condado de São Francisco no bojo da “audiência de imparcialidade”, constando o direito dos interessados de se retirar de seus termos (opt-out), com a consequente exclusão no recebimento de qualquer parcela do benefício monetário, mas mantendo o direito de litigar individualmente com base no objeto da ação coletiva. Para tanto, foi prevista a formalidade de envio de uma carta declarando o desejo de se excluir do acordo coletivo, contendo nome, endereço e assinatura de um representante autorizado.
No direito pátrio, o objeto da class action explicada acima se enquadraria no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011), que prevê a legitimidade ativa para a ação tanto aos próprios prejudicados quanto aos legitimados coletivos do artigo 82 do CDC, como o MP e a DP.
A Lei nº 14.470/2022 incluiu quatro parágrafos a este dispositivo, acrescentando ainda o artigo 47-A. O §1º dispõe que os prejudicados terão direito a ressarcimento em dobro pelos prejuízos sofridos em razão de infrações à ordem econômica previstas nos incisos I e II do § 3º do art. 36 da referida lei, onde se encaixa a conduta de combinar os preços de bens ofertados individualmente e promover a adoção de conduta concertada entre os concorrentes, que compunham o objeto da class action analisada. Os §§ 2º e 3º prestigiam o acordo de leniência e o termo de compromisso de cessação de prática. Já o §4º dispõe que o repasse de sobrepreço, uma alegação defensiva bastante comum nos casos de infração à ordem econômica, não se presume, cabendo ao réu comprová-lo cabalmente. Por fim, o art. 47-A dispõe que o juiz pode conceder a tutela da evidência liminarmente nestas, nos casos de formação de título executivo extrajudicial por decisão do plenário do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, que é um órgão componente do CADE.
Apesar das disposições da Lei 14.471/2022, o STJ decidiu que é possível a cumulação da condenação judicial por danos morais coletivos por conduta anticompetitiva com as sanções administrativas impostas pelo CADE contra um agente por infração à ordem econômica, ainda que ele tenha celebrado acordo de leniência com a autarquia (AgInt no REsp. nº 2.013.053/DF, julgado em 20/02/2024).
É possível também ver semelhanças na cronologia da tutela coletiva na seara ambiental, como nos casos dos desastres de Mariana e da Deepwater Horizon. Este último consistiu no derramamento de óleo no golfo do México, cujo vazamento começou em 20/04/2010 e se estendeu por 87 dias, sendo selado apenas em 19/09/2010, poluindo mais de 2.000 km de litoral.
Logo em maio de 2010, antes de o vazamento acabar, foram movidas mais de 130 ações judiciais. Em abril de 2011, a empresa BP também moveu ações judiciais contra a proprietária da plataforma (Transocean), a cimentadora (Halliburton) e a fabricante de dispositivos preventivos de explosão (Cameron) no importe de 40 bilhões de dólares.
Em setembro de 2011, foi publicado o relatório de investigação governamental apontando a BP como responsável final pelo vazamento, compartilhando parte da culpa com a Halliburton e a Transocean. O relatório concluiu que a causa central da explosão foi a falha da barreira de cimento, o que permitiu que o óleo fluísse pelo poço.
Em 2012, a BP e as outras três empresas firmaram um acordo que resolveu mais de 100 mil reivindicações de indivíduos e empresas afetadas. Em janeiro de 2013, a BP pagou um acordo parcial para despesas médicas no valor de 7,8 bilhões de dólares. Em setembro de 2014, a justiça finalmente reconheceu a BP como a principal responsável pelo desastre.
Em junho de 2015, a BP concordou em pagar 18,7 bilhões de dólares. Por fim, em 04/04/2016, o Tribunal Federal em Nova Orleans homologou o acordo (consent) de 18,7 bilhões de dólares firmado com a União e com os cinco estados do golfo (Alabama, Flórida, Louisiana, Mississipi e Texas). A BP provisionou mais 69 bilhões de dólares para restaurações ambientais e indenizações.
Já no Brasil, o rompimento da barragem de Mariana ocorreu em 05/11/2015, sendo a culpa igualmente compartilhada entre três empresas: Samarco, Vale e BHP Billiton. Tal como no acidente do golfo, a responsabilidade não se resumiu ao acidente, havendo falta de contenção após o desastre.
A exemplo do que ocorreu no golfo, no desastre de Mariana as empresas tentaram se livrar da responsabilidade acusando-se mutuamente. Em 2016, foi firmado um acordo para encerrar o litígio. Esse acordo com os entes estatais e os indivíduos prejudicados passou por inúmeros percalços, que envolveram a atuação dos órgãos públicos legitimados para a ação coletiva e a responsabilidade por omissão das entidades fiscalizadoras. Para tanto, foi criada a Fundação Renova por meio de um termo de transação de ajustamento de conduta - TTAC.
Em novembro de 2024, um novo acordo foi homologado pelo STF, prevendo o pagamento de R$ 132 bilhões, sendo R$ 100 bilhões para a União, os estados afetados (MG e ES) e os municípios que aderiram aos seus termos, e R$ 32 bilhões para recuperação ambiental e indenizações, a serem pagas em 20 parcelas anuais. As ações persistiram quanto aos municípios que não aderiram ao acordo por se sentirem prejudicados na distribuição dos recursos, como Ouro Preto. Em junho de 2025, foi paga a primeira parcela, destinando-se R$ 2,5 bilhões às vítimas. Ao todo, a negociação envolveu 52 mil acordos.
Jurisprudência Comparada
Do ponto de vista jurisprudencial, a justiça norte-americana tem limitado a abrangência da ação coletiva, circunscrevendo a classe apenas aos membros da área de atuação do tribunal distrital.
Foi o que decidiu o tribunal de apelações dos EUA para o nono circuito em 01/07/2025 no caso Harrington v. Cracker Barrel Old Country Store, Inc, que envolveu direitos trabalhistas da Lei de Normas Trabalhistas Justas - FLSA (gorjetas dos trabalhadores da rede de restaurantes). Na origem, o tribunal distrital havia considerado que um único autor com ações judiciais contra a empresa Cracker Barrel era suficiente para estabelecer a jurisdição sobre a rede de restaurantes para todas as ações na ação coletiva, estabelecendo a abrangência da arbitragem aos autores optantes em todo o território nacional.
Contudo, o 9º Circuito anulou a certificação de classe preliminar dada pelo tribunal distrital na ação coletiva nacional, que se fundamenta na aplicação FLSA. Com isso, o 9° Circuito conferiu o direito de ingressar na ação coletiva (opt-in) apenas a quem trabalhou no território do estado do tribunal distrital.
Para esta decisão, o tribunal de apelações do 9º circuito seguiu entendimento da Suprema Corte no caso Bristol-Myers Squibb Co. v. Superior Court de 2017, entendendo que as ações coletivas baseadas na FLSA são análogas às ações de massa, cabendo ao tribunal distrital analisar se a reivindicação de cada autor optante (opt-in) tem conexão suficiente com as atividades do réu no estado do foro.
Este entendimento seguiu a orientação já predominante nos 3º, 6º, 7º e 8º circuitos, diferindo apenas do entendimento do 1º Circuito, que mantém a posição favorável à abrangência nacional, exigindo apenas que o tribunal distrital tenha jurisdição pessoal específica sobre a reivindicação do autor nomeado.
Na prática, o 9º circuito vedou o ingresso de autores que trabalharam para um réu no estado do Tennessee, limitando o escopo das ações coletivas, mediante a interdição de seus efeitos para réus localizados em outros estados, exigindo-se a análise caso a caso.
Comparativamente, em 18/10/2024 o STJ decidiu em sentido semelhante a este no julgamento do Tema 1130, entendendo que a eficácia da sentença em ação coletiva promovida por sindicato estadual de servidores é restrita aos servidores, filiados ou não, que tenham domicílio necessário na base territorial do sindicato. Com isso, os efeitos da decisão coletiva não beneficiam a categoria em outros estados.
Quanto a esta questão, é importante diferenciar a legitimidade dos sindicatos (art. 8º, III, da CF) e das associações civis (art. 5º, XXI, da CF), com a primeira se dando por substituição processual, que alcança tanto os filiados quanto os não filiados. Já a segunda se dá por representação processual, abrangendo apenas os filiados, com a exigência constitucional de autorização específica de cada associado.
O STF também construiu uma jurisprudência defensiva, limitando as ações coletivas de servidores públicos, cuja extensão retroativa a todos os possíveis beneficiários poderiam representar bombas fiscais, com impactos substanciais no orçamento público. Com efeito, no julgamento do Tema 499 o pretório excelso limitou os efeitos subjetivos da coisa julgada em ações coletivas propostas por associações civis, que só alcançam os filiados até a data da propositura da demanda, com os novos filiados não se beneficiando dos efeitos da decisão.
Por outro lado, o STF declarou a inconstitucionalidade do art. 16 da Lei de Ação Civil Pública no julgamento do Tema 1075, retirando a limitação territorial dos efeitos da sentença coletiva. Assim, os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos da sentença, levando-se em conta a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo.
Contudo, percebe-se da jurisprudência pátria uma oscilação no entendimento acerca do alcance do processo coletivo, operando-se limitações subjetivas, temporais e territoriais, tanto para a ação de conhecimento quanto para a execução, a depender da qualidade do legitimado coletivo e do direito material em jogo (público ou privado, acidentalmente coletivo ou essencialmente coletivo).
Doutrinariamente, os direitos difusos e coletivos stricto sensu são tidos como direitos propriamente coletivos, ao passo que os direitos individuais homogêneos são acidentalmente coletivos. Quanto a estes últimos, o ministro do STF Teori Zavascki deixou expresso seu escólio ao relatar o paradigmático Recurso Extraordinário n° 631.111 em 07/08/2014, que conferiu legitimidade ativa ao Ministério Público para a tutela coletiva do seguro DPVAT. Na assentada, o relator diferenciou a ação civil pública (para tutelar direitos difusos e coletivos) da ação civil coletiva (para tutelar direitos individuais homogêneos). Quanto a estes, a fase de conhecimento irá definir o núcleo de homogeneidade, consistente na existência da obrigação (an debeatur), natureza da prestação devida (quid debeatur) e o sujeito passivo (quis debeat). Já a execução irá definir a margem de heterogeneidade, consistente no sujeito ativo (cui debeatur) e a prestação devida (quantum debeatur).
De acordo com o Tema 499 da repercussão geral do STF, as associações civis devem juntar à ação coletiva para defesa de direitos individuais homogêneos autorização ou procuração específica dos associados, ou concedida pela assembleia geral da associação, acompanhadas da lista nominal dos associados representados. Essa listagem deve ser apresentada no momento do protocolo da ação, não se estendendo aos que se associarem posteriormente a este marco. Mas a jurisprudência entende que essa autorização específica é dispensável se os direitos em jogo tiverem reflexo no interesse público, como na defesa do consumidor, transmudando-se a ação coletiva de representativa para substitutiva.
Já se a alteração for na qualidade do legitimado coletivo, o alcance pode ser alargado. Como exemplo, o STJ julgou em 2025 o AgInt no AgInt no AgInt no Agravo em REsp. n° 2189867, tendo por base o entendimento firmado pelo STF no Tema 823, conferindo ampla legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender direitos coletivos e individuais dos integrantes da categoria, inclusive nas liquidações e execuções de sentenças, independentemente de autorização dos substituídos. Segundo o STJ, a unicidade e especificidade sindicais do art. 570 da CLT não impedem a legitimidade da parte exequente, pois a coisa julgada deve beneficiar o maior número de pessoas que se enquadrem na mesma situação jurídica.
Com efeito, a jurisprudência recente do STJ oscila quanto aos aspectos processuais da tutela coletiva, com julgados tanto das turmas de direito privado quanto das de direito público.
Há uma década, em 09/12/2015, a 2° Seção do STJ, que reúne as 3° e 4° Turmas, julgou o REsp. n. 1.302.596/SP, decidindo que, se a ação coletiva de direitos individuais homogêneos for julgada improcedente, independente se por insuficiência de provas ou não, descaberá nova propositura com o mesmo objeto, seja por outro legitimado coletivo ou em outro estado da federação. Com isso, o recurso à tutela coletiva ficará obstado, restando apenas a via da ação individual, caso o interessado não tenha intervindo como litisconsorte na ação coletiva.
Já no recente julgamento do AgInt. no REsp. n. 1.438.257/SP, realizado em 24/03/2025, a 4° Turma do STJ firmou o entendimento de que a associação civil que atuou como substituta processual na fase de conhecimento passa a atuar como representante processual na fase de execução da sentença coletiva, tendo a obrigação de apresentar procurações individuais dos interessados.
A mesma 4° Turma julgou o REsp. n. 1.762.278/MS em 05/11/2024, decidindo que o efeito erga omnes da sentença genérica em ação coletiva, previsto no artigo 103, III, do CDC, não se aplica ao cumprimento individual da sentença, sendo irrelevante que questões semelhantes tenham sido decididas em procedimentos de cumprimentos de sentença diversos envolvendo outros credores.
De seu turno, a 3° Turma do STJ julgou o REsp. n. 2.059.781/RJ em 12/12/2023, tendo como pano de fundo o desastre ambiental de Brumadinho/MG, entendendo que as vítimas do acidente têm legitimidade ativa para executar individualmente o TAC firmado entre a DP/MG e a empresa Vale S/A, quanto aos direitos individuais homogêneos, em especial os danos já quantificados, como a cláusula 15.7 do referido TAC, que estipula a quantia de R$ 100 mil pelos danos à saúde mental e emocional de cada indivíduo afetado.
Por fim, a 1° Seção do STJ, que reúne as 1° e 2° Turmas, julgou o REsp. n. 2.078.485/PE em 14/08/2024, chancelando a execução individual de sentença coletiva, ainda que proposta após cinco anos do trânsito em julgado. Para a corte, a prescrição intercorrente operada contra a execução coletiva proposta pelo sindicato não alcança as execuções individuais propostas pelos substituídos, já que aquela interrompe a prescrição destas.
Mais dois temas pendentes merecem atenção especial, porquanto se qualificam como vigas-mestras da tutela coletiva.
De fato, o STF iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário 1449302/MS, objeto do Tema 1270 da repercussão geral, tendo o relator, Min. Dias Toffoli, encabeçado a corrente pela limitação da legitimidade do Ministério Público para a execução de sentença coletiva no caso de direitos individuais homogêneos, entendendo que ela deve se limitar à reparação fluida (fluid recovery), seguida de ampla publicidade para futura liquidação e execução pelos demais legitimados.
A outra corrente de julgamento é encabeçada pelo Min. Alexandre de Moraes, e confere ampla legitimidade executiva ao Ministério Público, que pode promover a liquidação e execução coletiva da sentença genérica sobre direitos individuais homogêneos em favor das vítimas e seus sucessores, bastando estar presente o interesse social disposto no art. 127 da CF.
Caso prevaleça o entendimento do relator, a tutela coletiva será pulverizada em inúmeras execuções individuais para satisfação do crédito, quando poderiam ser reunidas em uma única execução coletiva, com simples habilitação dos interessados.
Já no âmbito do STJ, pende de julgamento na corte especial os Embargos de Divergência acerca da responsabilidade do réu vencido em ações coletivas ajuizadas por associações civis pelo pagamento de honorários advocatícios. Os réus requerem a simetria de tratamento, com aplicação do art. 18 da Lei 7.347/85 e do art. 87 do CDC, que dispensam as custas e os honorários de sucumbência das associações civis em demandas coletivas, salvo má-fé. Contudo, a aplicação simétrica tem potencial de minar a efetividade da tutela coletiva, desestimulando a atuação das associações civis, que se qualifica como um pilar do microssistema de tutela coletiva, por representar a participação da sociedade civil organizada na defesa dos direitos transindividuais.
A esse respeito, a 1ª Turma do STJ julgou o REsp. 2.137.086/PA em 18/06/2024, decidindo que a extinção da ação popular por perda do objeto decorrente da satisfação da pretensão do autor em tutela antecipada não exime o réu de pagar os honorários advocatícios, porquanto este deu causa à propositura da demanda, com aplicação do art. 12 da Lei nº 4.717/65. Este julgamento envolveu a ação popular, que possui restrição no polo ativo, com incidência do princípio da causalidade. Já nos Embargos de Divergências citados acima, a corte especial irá analisar a aplicação do princípio da simetria num leque mais amplo de ações.
Apesar das matérias diversas, os dois julgamentos pendentes acima, tanto do STF quanto do STJ, se complementam, com este se relacionando à efetividade no ingresso da ação coletiva e aquele na efetividade da execução coletiva.
Tutela Coletiva da Personalidade Algorítmica
A proteção da personalidade no ambiente digital requer a adoção de uma vertente extensiva que albergue uma cláusula geral da personalidade, sem se limitar aos direitos taxativamente enumerados. Essa extensão, contudo, não pode impedir o avanço tecnológico, com a tutela coletiva se mostrando um meio idôneo para filtrar um regime virtual sadio e democrático.
É preciso ter em mente que a utilização abusiva da justiça coletiva pode puerilizar seu uso, resultando no esvaziamento de sua eficácia. Com isso, a utilização desta via deve focar nas questões mais prementes da sociedade. Com efeito, a tutela coletiva foi manejada por órgãos públicos, como MP e DP, para a proteção de inúmeros grupos vulneráveis, como crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência.
Nos últimos anos, porém, esses grupos se alargaram, abarcando quase toda a população, como pessoas transgênero, pessoas em situação de rua, viciados em tóxicos, alcoólatras, famílias atípicas, tutores de cães e gatos, egressos do sistema prisional, beneficiários de programas de transferência de renda, residentes em comunidades periféricas, migrantes de outras regiões do país, ciclistas, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades tradicionais, jovens menores de 29 anos, agricultores familiares, aposentados e refugiados. Essa lista cresce a cada ano, com a inclusão de novos grupos, como as demandas coletivas dos therians (pessoas que se identificam como animais) e dos usuários de chupetas.
Como exemplo de tutela coletiva da personalidade, cite-se a Ação Civil Pública n° 0315505-57.2011.8.19.0001 da justiça fluminense, que envolveu os direitos das pessoas privadas de liberdade nos estabelecimentos prisionais diante da obrigação de cortar o cabelo e a barba. No caso da ação acima, após a ponderação de direitos, prevaleceu a prevenção à transmissão de doenças no ambiente prisional, mantendo-se a obrigação.
É preciso rememorar que os direitos da personalidade encontraram barreiras dogmáticas para sua consolidação, seja como um direito geral da personalidade ou como uma vertente dos direitos subjetivos. Os autores contrários argumentam que não seria concebível que os titulares de um direito fossem ao mesmo tempo objeto deste direito, além de albergar o direito ao suicídio, o que seria inconcebível.
No embate entre os jusnaturalistas, que pregavam a natureza imanente dos direitos da personalidade, e os positivistas, que apregoam a necessidade de lei prevendo sua proteção, prevaleceu a última corrente.
Rosa Maria de Andrade Nery denomina os direitos de personalidade de “direitos de humanidade”, justificando a opção terminológica nas seguinte razões:
“Esta é a terminologia correta que deveria ter sido adotada pelo CC no lugar de direitos de personalidade, porque os objetos básicos desses direitos são componentes da natureza do homem (humanitas = humanidade) e não da pessoa: a) o corpo; b) a alma; c) as potências (vegetativa, sensitiva, locomotiva, apetitiva, intelectiva); d) os atos (potência realizada)...Pode-se identificar a técnica de realização dos denominados direito de humanidade por um exemplo: as expressões da atividade intelectual e moral do homem são aspectos de suas potencialidades (potência intelectiva). A propriedade intelectual é realidade do direito civil, expressão da inteligência do homem, potência inerente a sua natureza. Quando elabora peças de conteúdo teórico (palavra escrita ou falada) ou realiza formas de expressão do belo em suas variadas manifestações - desenvolvendo trabalhos científicos e/ou tecnológicos de produtos e serviços que decorram de sua atividade intelectual, ou confeccionando obras de arte etc. - o sujeito realiza atividades decorrentes dessa potência intelectiva. São elas as causas jurígenas do surgimento de direitos (operação jurídica) que geram outros direitos e colocam o sujeito em situação de merecer proteção jurídica bem como desafiam essa técnica requintada dos denominados direitos de personalidade. E o sujeito (portanto a pessoa, ente com personalidade) atuando, pela potência intelectiva inerente à natureza humana, ela própria elemento do nascimento de direitos de personalidade (rectius: direitos de humanidade), ou seja, de direitos cujos ‘objetos’ estão na natureza humana.” (Código Civil Comentado, editora Revista dos Tribunais, 13ª edição, 2023).
No decorrer do século XX, a doutrina se debruçou sobre a natureza dos direitos destes direitos. De início, já se negou a sua existência como direitos subjetivos, como nos trabalhos de Thon, Unger, Jellinek, Enneccerus, Crome, Oertmann, Von Thur, Ravà, Simoncelli, Cabral de Moncada e Orgaz. Argu-mentaram esses autores que não poderia haver direito do homem sobre a própria pessoa, porque isso justifi-caria o suicídio. Tendências para negar esse direito manifestam-se, ainda, na prática, em face da evolução da ciência e da tecnologia, como tem sido lembrado pelos doutrinadores. Mas prospera atualmente - com De Cupis, Tobeñas, Raymond Lindon, Ravanas, Perlingieri, Limongi França, Milton Fernandes, Orlando Gomes e outros tantos juristas a tese do reconhecimento concreto desses direitos, embora discussões persistam quanto à sua natureza. São conceituados por alguns autores (a maioria) como poderes que o homem exerce sobre a própria pessoa (objeto do direito: o próprio homem), com Puchta, Windscheid, Chironi, Campogrande, Ravà, Fadda e Bensa, Ruiz Tomás, embora sob diversas modalidades. Outros escritores os definem como direitos sem sujeito, assinalando que se não deve buscá-los na pessoa, mas nos demais indivíduos, que os devem respeitar, como Ferrara. Nesse sentido, a colocação como direito à inviolabilidade da pessoa, de Vanni.
No escólio de Pietro Perlingieri: “A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações. Nenhuma previsão especial pode ser exaustiva e deixaria de fora algumas manifestações e exigências da pessoa que, mesmo com o progredir da sociedade, exigem uma consideração positiva.” (Perfis do Direito Civil, editora Renovar, 2ª edição, 2002, p. 156).
Na visão tradicional de Adriano de Cupis: "A personalidade, ou capacidade jurídica, é geralmente definida como sendo uma susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações jurídicas. Não se identifica nem com os direitos, nem com as obrigações, e nem é mais do que a essência de uma simples qualidade jurídica…O ordenamento jurídico é, pois, árbitro na atribuição da personalidade. A confirmação histórica nos foi dada quando o princípio de que a personalidade diz respeito a todos igualmente, salvo as limitações sofridas em lei, sofreu uma ulterior limitação (sucessivamente eliminada) devida às preocupações de índole racial. Tal característica manifesta-se igualmente na atribuição da personalidade aos nascituros e a entes diversos dos homens”
A tese prevalecente considera que são direitos ínsitos na pessoa, em função de sua própria estruturação física, mental e moral. Daí, são dotados de certas particularidades, que lhes conferem posição singular no cenário dos direitos privados, de que avultam, desde logo, as seguintes: a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade, que se antepõem, inclusive como limites à própria ação do titular (que não pode eliminá-los por ato de vontade, mas, de outro lado, deles, sob certos aspectos, pode dispor, como, por exemplo, a licença para uso de imagem, entre outras hipóteses). Contudo, esse consentimento não desnatura o direito, representando, ao revés, exercício de faculdade inerente ao titular (e que lhe é privativa, não comportando, de uma parte, uso por terceiro sem expressa autorização do titular e quando juridicamente possível, e, de outra, execução forçada, em qualquer situação, visto que incompatível com a sua essencialidade).
Na Alemanha, os estudos sobre direitos da personalidade continuaram florescendo no início do século XX. Enquanto isso, na França uma primeira verdadeira teoria dos direitos da personalidade vai ser desenvolvida na obra de Bérard, em 1902, que defende a existência, no direito positivo, de um certo número de direitos cuja função imediata seria a de garantir a liberdade e a dignidade da pessoa. Apesar da importância do trabalho de Bérard, atribui-se a Perreau o mérito de ter consolidado a categoria dos direitos da personalidade no direito francês, o que teria se dado em um artigo publicado em 1909 na Revista Trimestral, intitulado ‘Des droits de la personnalité’. Seja como for, é interessante notar que uma série de autores franceses consideram a teoria dos direitos da personalidade uma invenção alemã, que estava, no início do século XX, em vias de implantação na França.
Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, foi promulgado o Código Civil italiano, o qual inovou no que toca aos direitos da personalidade (arts. 5º a 10), trazendo uma disciplina parcial da matéria. A codificação italiana serviu de modelo para os novos códigos que foram surgindo, entre eles o Código Civil português de 1966.
É relevante lembrar que o Código Civil alemão de 1896 (BGB) já reconhecia alguns dos direitos de personalidade, a exemplo do direito à vida, à saúde, ao corpo, à liberdade, à honra e ao nome.
Na mesma linha, o Código Civil suíço de 1907 (Schweizerisches Zivilgesetzbuch ZGB) também contemplou o direito ao nome (arts. 29 e 30), conceituou como irrenunciável a liberdade, impedindo a sujeição, no uso da mesma, a uma limitação incompatível com o direito e a moral (art. 28) e fixou a obrigação de indenização no atentado contra a pessoa (art. 27).
Diferentemente do que ocorria no âmbito legislativo, que apresentava previsões bastante tímidas, a teoria dos direitos da personalidade prosperou na jurisprudência. A despeito da ideia da necessária positivação dos multifacetados direitos da personalidade, bem como dos desencontros da doutrina do período, a categoria dos direitos da personalidade é apontada como criação do século XIX, devendo seus avanços particularmente ao trabalho dos tribunais, que contribuíram decisivamente para a sua construção.
O maior embate doutrinário do período, no que toca aos direitos da personalidade, deu-se entre a Escola Histórica do Direito e o Positivismo Jurídico. Tais escolas acabaram alterando fundamentalmente a tutela da pessoa humana, a qual ainda era protegida pela actio iniuriarum, particularmente na Alemanha, não obstante o desenvolvimento ocorrido nos séculos XVII e XVIII.
Segundo Savigny, e a maior parte da Escola Histórica, a admissão de um direito subjetivo da personalidade levaria ao reconhecimento de um direito que teria como objeto a própria pessoa, fundado no ius in se ipsum, o que autorizaria a disposição sobre si mesmo, inclusive o suicídio. Por isso, tal escola negava a existência dos direitos da personalidade, não reconhecendo aos eventuais atributos, arrolados na lei, a natureza de direitos subjetivos.
Ainda, os adeptos da Escola Histórica desconstruíram a crença na possibilidade de descoberta de um sistema absoluto de direito, baseado na pura razão, bem como se opuseram ao direito natural. Segundo eles, não havia um direito eterno e universal, baseado na natureza abstrata do homem, uma vez que o direito, como a linguagem e os outros elementos da cultura, é uma forma de expressão da individualidade de um povo.
Já para o positivismo jurídico, os diversos direitos que derivam da pessoa humana apenas poderiam ser reconhecidos como direitos da personalidade se estivessem expressamente tipificados no ordenamento jurídico, o que garantia a tutela do Estado, já que se tratavam de direitos subjetivos.
Ao lado dessa visão dos direitos da personalidade como "direito à própria pessoa", surgiu, no decorrer da segunda metade do século XIX, um outro ponto de vista, o qual viu, nos direitos da personalidade, o direito ao respeito da própria individualidade. Tal teoria foi fortemente influenciada pelo desenvolvimento dos direitos autorais, tendo sido fundada por Gareis e aperfeiçoada por Kohler.
O estudo dos direitos da personalidade no ambiente digital prosperou em obras recentes, como: “Direitos da Personalidade” (José Antonio Dias Toffoli, Kim Renato Barbosa e Silvano Andrade do Bomfim, editora Almedina, 2023), “Contornos atuais dos direitos da personalidade” (Rodrigo Eduardo Camargo, 2023) e “Direitos da Personalidade” (Leonardo Estevam de Assis Zanini, editora Foco, 2° edição, 2024), “O Direito Civil na Era da Inteligência Artificial”, (Gustavo Tepedino e Rodrigo da Guia Silva, editora Revista dos Tribunais, 2020), que examinaram a sua aplicação a questões relacionadas à utilização das mídias sociais e na herança digital, como o uso de IA na reprodução de voz e imagens de pessoas mortas e a criação de conteúdo sonoro e visual inéditos.
A adoção da cláusula geral da personalidade e sua visão como um valor, ao invés de um direito subjetivo, tal como propugnado por Perlingieri, respalda a proteção da personalidade algorítmica diante dos riscos iminentes da IAG.
A solução para a proteção das populações mais vulneráveis contra o uso prejudicial destes algorítmos, com foco na personalidade algorítmica das crianças e adolescentes, deve vir na forma de acordos em ações coletivas, utilizando para tanto a tradição em ações coletivas de proteção da saúde, como no caso das empresas de cigarro, utilizando o supedâneo de institutos do sistema de class action.
Conclusão
O surgimento da IAG ocorre às vésperas do centenário da obra “Admirável Mundo Novo”, publicada por Aldous Huxley em 1932. O título remete à frase pronunciada pela personagem Miranda na peça “A Tempestade” de Shakespeare, que revela um tom irônico, já que a inocência da jovem a faz desconhecer a natureza maligna dos visitantes da ilha.
Huxley usa a frase para contrastar a riqueza emocional do passado com sua sociedade imaginária, tecnologicamente avançada, mas estéril de sentimentos e relações humanas. Três décadas depois, em 1962, após se converter à vedanta hindu, Huxley publicou o romance "A Ilha", que faz um contraponto à sua obra mais famosa, que também inspirou os versos da música do Guns N’ Roses de mesmo nome: "aprisione esta mente, entorpeça este cérebro" (close this mind dull this brain).
De fato, o efetivo advento dos algoritmos de Inteligência Artificial Geral - IAG irá potencializar os problemas já observados nas populações vulneráveis, em especial a alienação das crianças e adolescentes, mas como toda inovação tecnológica, é preciso filtrar sua aplicação benéfica.
Com efeito, a IAG tem o apanágio de solucionar inúmeras questões em aberto da ciência em áreas diversas. No âmbito do mercado de trabalho, a inteligência artificial passou a ser denominada de co-inteligência, em referência à cooperação no desempenho da função, e não substituição integral. Essa denominação objetiva superar a visão escatológica da IAG, que se apresenta como uma ferramenta aprimorada para coadjuvar a execução do trabalho humano.
Para tanto, é preciso aperfeiçoar os métodos de tutela coletiva e focar sua utilização em questões pressurosas, criando-se um filtro que evite a busca desenfreada por monetização à custa da sanidade das populações mais vulneráveis. Junto aos aspectos processuais da tutela coletiva, também é necessário adotar vertentes abrangentes dos direitos da personalidade algorítmica, aliando o direito material e processual na garantia fundamental de acesso à IAG sadia e democrática.
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Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. O Prenúncio da Inteligência Artificial Geral - IAG: Tutela Coletiva como Via Adequada de Proteção da Personalidade Algorítmica. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 nov 2025, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69889/o-prenncio-da-inteligncia-artificial-geral-iag-tutela-coletiva-como-via-adequada-de-proteo-da-personalidade-algortmica. Acesso em: 21 nov 2025.
Por: Rafael Ferreira Filippin
Por: JULIANA PEREIRA DA SILVA ROSSI CONTE

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