À medida que os sistemas de Inteligência Artificial generativa se tornam capazes de produzir textos, imagens, códigos, músicas e demais conteúdos com níveis crescentes de sofisticação, uma pergunta desconcertante começa a atravessar o campo jurídico: quem é o autor de uma obra criada com auxílio da máquina? A resposta, até aqui, oscila entre a omissão normativa e o voluntarismo interpretativo. Nem a Lei nº 9.610/1998 — marco brasileiro dos direitos autorais — nem o PL 2.338/2023 — que propõe um marco legal para a IA — enfrentam, com clareza, a definição de autoria nesse novo contexto. É nesse vazio que emerge o Projeto de Lei nº 1.685/2025, iniciativa que merece atenção crítica e, sobretudo, apoio: ele propõe uma resposta objetiva, segura e juridicamente compatível com os princípios do direito autoral, sem sufocar a inovação.
O centro normativo do projeto está em recusar o critério subjetivo e de difícil aferição da chamada “intervenção humana significativa”. Tal expressão, embora sedutora à primeira vista, esconde um problema técnico grave: não há perspectiva de método confiável que permita mensurar a “porcentagem humana” em uma obra gerada por IA. Um texto pode ter sido minimamente editado por uma pessoa ou completamente reformulado — e o limite entre um caso e outro não é tecnicamente rastreável. Tampouco é possível saber, com precisão, se a obra nasceu de uma ideia humana ou foi inteiramente sugerida pela máquina, treinada em padrões imensos de dados. O próprio conceito de autoria humana, quando reduzido a um grau mensurável de intervenção, torna-se uma abstração inoperante.
Mais do que isso: ainda que a IA se apresente como um supercérebro digital — treinado com volumes colossais de informação —, ela permanece inerte sem uma provocação humana inicial. Nenhum conteúdo é gerado por impulso próprio. Todo resultado é consequência de um comando, um input, um prompt que parte da vontade, da intenção e da ação de uma pessoa natural. O foco do PL 1.685/2025, portanto, não recai sobre o banco de dados que alimenta esse cérebro artificial, mas sobre o produto intelectual que ele gera, e sobre o agente humano que instiga sua produção.
É por isso que o projeto oferece uma saída simples e segura: reconhece como autora a pessoa natural que exerceu controle efetivo sobre qualquer uma das etapas essenciais da criação — seja pela formulação do prompt, pela curadoria do conteúdo gerado ou pela modificação da resposta. O projeto, assim, afasta os critérios ambíguos e propõe um modelo objetivo de responsabilização e atribuição. É um gesto de clareza normativa que preserva o protagonismo humano no ambiente criativo sem recorrer a arbitrariedades técnicas.
Ao mesmo tempo, o texto não ignora a necessidade de rastreabilidade. Por isso, inova ao instituir o registro tecnológico facultativo — um procedimento formal, digital e seguro, que permite documentar todo o processo criativo: inputs, prompts, respostas e alterações. Ainda que não seja requisito para o reconhecimento da autoria, o registro funciona como um elemento robusto de prova em disputas judiciais ou contratuais, sem burocratizar a criatividade. Ao escolher esse caminho facultativo e digital, o projeto respeita a natureza dinâmica das criações contemporâneas e oferece uma ponte entre liberdade criativa e segurança jurídica.
Outro avanço importante está na conceituação precisa dos elementos envolvidos. A proposta distingue termos como input, prompt, resposta gerada, agente usuário, agente desenvolvedor, obra com auxílio de IA e registro tecnológico — todos definidos com rigor terminológico e coerência lógica. Essa taxonomia não é detalhe técnico, mas a própria estrutura de um regime legal funcional. O que se vê, portanto, é a construção de um vocabulário jurídico novo, capaz de dialogar com a tecnologia sem se perder nela.
No tocante à responsabilidade civil, o projeto inova ao introduzir uma lógica proporcional e compartimentada. Reconhece que diferentes agentes podem atuar na cadeia de criação e uso de uma obra com IA — desde o usuário que fornece o prompt até a empresa que desenvolve ou licencia o sistema — e que o grau de controle de cada um sobre o resultado final deve ser o critério para sua responsabilização. Essa abordagem evita tanto a impunidade quanto o excesso regulatório, propondo uma responsabilidade escalonada, capaz de responder aos danos com equilíbrio.
Importa notar, ainda, que o projeto veda, de forma categórica, qualquer atribuição de personalidade jurídica ou capacidade civil aos sistemas de Inteligência Artificial. Trata-se de uma escolha alinhada à Convenção de Berna e às melhores práticas internacionais: a IA é, e deve continuar sendo, um instrumento de apoio à criação humana, jamais um titular de direitos autorais. Afastar essa hipótese não é uma restrição ao progresso, mas uma defesa da integridade do sistema jurídico e da própria noção de autoria enquanto ato humano.
Se o Brasil deseja se projetar como potência legislativa em temas tecnológicos, precisa agir com coragem e precisão. O PL 1.685/2025 antecipa um problema que já é real — a explosão de conteúdos criados com IA — e oferece uma solução prática, sem cair em modismos ou abstrações. Enquanto outras propostas ignoram a questão ou empurram o debate para instâncias administrativas, o texto propõe uma regulação estruturada, com potencial para influenciar positivamente a discussão global sobre autoria no século XXI.
A criação com auxílio de IA não é um dilema filosófico, mas um desafio jurídico concreto. Trata-se de garantir que quem cria com responsabilidade possa ser reconhecido e protegido — e que, ao mesmo tempo, se evite o uso oportunista da tecnologia como escudo para fraudes, omissões ou anonimato intencional. Nesse sentido, o PL 1.685/2025 é mais do que uma proposta legislativa: é uma afirmação de que o direito ainda pode exercer protagonismo na era dos algoritmos, desde que fale a linguagem do tempo presente com a firmeza dos princípios.
Autoria é responsabilidade. E responsabilidade exige normas claras. O futuro da criatividade, no Brasil, depende dessa clareza. O Congresso Nacional tem, diante de si, a chance de garantir que o país não apenas acompanhe a revolução tecnológica — mas também a governe. Aprovar o PL 1.685/2025 é, portanto, uma decisão jurídica, política e civilizatória.
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