RESUMO: este artigo analisa a controvérsia sobre a ausência de cotas raciais em concurso público municipal examinando a legalidade do edital e a possibilidade de aplicar ações afirmativas na ausência de legislação local específica. O entendimento foi firmado em procedimento extrajudicial no âmbito ministerial, iniciado por reclamação popular. A conclusão foi pela inaplicabilidade das cotas raciais para o concurso em questão, pois o ente não possui lei municipal específica. A decisão fundamentou-se nos princípios da legalidade administrativa e da autonomia federativa do município. O Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade, estabeleceu que a aplicação de cotas raciais exige lei específica de cada ente federado. Embora a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, com status de norma constitucional, reforce a legitimidade das ações afirmativas, não impõe automaticamente a reserva de vagas. O procedimento foi arquivado em relação à ausência de cotas raciais para o concurso já realizado, mas expediu-se Recomendação Ministerial ao Prefeito e ao Presidente da Câmara Municipal para criação de lei municipal instituindo a reserva de vagas para cotas raciais em concursos e processos seletivos futuros visando a concretização da igualdade racial e o cumprimento dos objetivos de uma sociedade justa.
Palavras-chave: Cotas raciais. Concurso público. Legalidade administrativa. Autonomia municipal. Ações afirmativas. Ministério Público.
ABSTRACT: This article analyzes the controversy surrounding the absence of racial quotas in a municipal public service exam, examining the legality of the notice and the possibility of applying affirmative action in the absence of specific local legislation. The understanding was reached in an extrajudicial proceeding within the ministerial sphere, initiated by a public complaint. The conclusion was that racial quotas were inapplicable for the exam in question, as the entity lacks a specific municipal law. The decision was based on the principles of administrative legality and the federative autonomy of the municipality. The Supreme Federal Court, in a concentrated review of constitutionality, established that the application of racial quotas requires a specific law for each federated entity. Although the Inter-American Convention against Racism, Racial Discrimination, and Related Forms of Intolerance, with constitutional status, reinforces the legitimacy of affirmative action, it does not automatically impose the reservation of vacancies. The procedure was archived in relation to the absence of racial quotas for the competition already held, but a Ministerial Recommendation was issued to the Mayor and the President of the Municipal Chamber for the creation of a municipal law establishing the reservation of vacancies for racial quotas in future competitions and selection processes aiming at the realization of racial equality and the fulfillment of the objectives of a just society.
Keywords: Racial quotas. Public tender. Administrative legality. Municipal autonomy. Affirmative action. Public Prosecutor’s Office.
1.INTRODUÇÃO.
O presente estudo parte da análise de um procedimento extrajudicial instaurado pelo Ministério Público, presentado pelo autor do artigo, em face de reclamação popular sobre edital de concurso público promovido por um município piauiense, no qual se apontou a ausência de reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos e pardos.
A partir dessa provocação, investigou-se, por meio de diligências administrativas e manifestações institucionais, a legalidade do edital e a possibilidade jurídica de aplicação de ações afirmativas no âmbito municipal na ausência de legislação local específica. Com base em dispositivos constitucionais, infraconstitucionais e em tratados internacionais internalizados com status de norma constitucional, o Ministério Público produziu decisão fundamentada que aqui será transposta integralmente em formato acadêmico, com estrutura típica de artigo científico.
2.METODOLOGIA.
O presente trabalho adota como metodologia a transcrição analítica e comentada de decisão administrativa ministerial, convertida em artigo científico, sem exclusão de conteúdo, mas com adaptação estrutural e terminológica para fins de conformidade com o discurso acadêmico. Referências diretas ao município originalmente citado foram substituídas por expressões genéricas, mantendo-se intactos os fundamentos jurídicos, doutrinários e jurisprudenciais.
3.DO CONTEXTO FÁTICO.
O procedimento foi instaurado no âmbito ministerial em virtude de manifestação popular pela qual o reclamante insurge-se sobre um edital de concurso público municipal lançado no ano de 2024, para o provimento de cargos efetivos no quadro de pessoal, que deixou de reservar vagas para candidatos autodeclarados pretos e pardos no certame. O ente municipal informou a inexistência de lei municipal que estabeleça cotas raciais para o ingresso no serviço público municipal.
4.FUNDAMENTAÇÃO.
Nos termos do art. 127, caput, da Constituição Federal de 1988, "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O procedimento que originou este artigo tratou especificamente a respeito da observância da ordem jurídica, mais precisamente sobre o princípio da legalidade estrita que deve iluminar toda a realização da administração pública, e o direcionamento do serviço público para a prestação do direito difuso e social de atendimento das necessidades públicas através do acesso igualitário dos cargos públicos, com fundamento no princípio da igualdade.
Neste sentido, uma vez que o Estado tem por finalidade o alcance do interesse público primário, ou seja, o interesse social, o Ministério Público igualmente deve verificar de qual forma, em qual intensidade e com quais meios esse objetivo pode e deve ser cumprido. Diferenciam-se os interesses públicos primário e secundário, pois este último é o interesse patrimonial do Estado. Assim, enquanto melhores salários estimulariam e atrairiam melhores profissionais para o serviço público, aumentando a eficiência do serviço público em homenagem ao interesse primário, ao mesmo tempo demandaria mais dispêndios ao Estado, o que conflitaria com o interesse secundário. É uma harmonia, e por vezes conflito, entre a eficiência administrativa e o equilíbrio fiscal.
Os pontos a serem analisados, ponderados e decididos nesta decisão dizem respeito a:
a) Reserva de vagas para pessoas pretas e pardas no concurso público regido pelo edital de concurso público lançado pela municipalidade;
b) Colisão entre os princípios da inclusão social (ações afirmativas) e da autonomia federativa.
4.1 Da reserva de vagas para pessoas pretas e pardas no concurso público regido pelo sobre Edital de Concurso Público nº 001/2024.
A questão a ser deslindada é a legalidade do edital que não reservou vagas para candidatos negros e pardos. Poderia a municipalidade ter deixado de reservar tais vagas? Sobre as cotas raciais, preleciona José dos Santos Carvalho Filho[1] (2017, 692):
“Trata-se de reserva étnica implementada pelo sistema de cotas, com a finalidade de proporcionar a inclusão social e reduzir as desigualdades de caráter racial.
[...]
A reserva de vagas é destinada a candidatos negros, assim considerados o que se autodeclararem pretos ou pardos quando da inscrição no concurso, conforme o critério de cor ou raça adotado pela Fundação IBGE. Sendo falsa a declaração, instaura-se processo administrativo com a garantia do contraditório e da ampla defesa e, confirmada a falsidade, dele resultará a eliminação do candidato ou, no caso de nomeação, a anulação da investidura. É evidente que nada disso funcionará se a Administração não dispuser de órgão de fiscalização, e, em consequência, muitas fraudes, sem dúvida, poderão ser cometidas.
A lei impõe que os editais de concurso especifiquem o número de vagas reservadas, mas a reserva só é compulsória quando o número de vagas for superior a três. Caso o resultado do percentual redunde em número fracionado, será este aumentado, se a fração exceder a 0,5 (cinco décimos), para o número inteiro superior, ou diminuído em caso contrário.” (Grifo nosso).
O último parágrafo do excerto citado reflete o dever jurídico de o Estado pautar-se pelo princípio constitucional da legalidade administrativa insculpido no art. 37, caput, da Constituição Federal. Salvo quando expressamente autorizado por norma prévia, a vontade da Administração Pública é aquela indicada na lei, pelo que o agente público não pode dela se afastar. Assim como os cargos públicos devem ser criados por lei, sua reserva em cotas deve ser estipulada pelo mesmo instrumento jurídico, uma vez que o princípio da isonomia não implica necessária submissão do princípio da legalidade, pois, salvo necessidade absoluta, não é razoável praticar ilegalidades sob justificativa de promover a justiça.
As cotas raciais dizem respeito ao que a doutrina e a jurisprudência por vezes nomeiam como ações afirmativas ou discriminações positivas. Com efeito, destinam-se a compensar uma dívida histórica e cultural com a população negra que foi, por séculos, inclusive na atualidade, marginalizada pelas mais diversas razões. Assim como a criminalização da injúria racial e do racismo, fundamentam-se no ideal aristotélico de justiça, pelo qual “deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”.
Ursusa Wolf, na obra A Ética a Nicômaco de Aristóteles[2], realizou um estudo profundo e sistematizado sobre o pensamento do filósofo grego. Quanto ao livro V dos ensinamentos de Aristóteles a seu filho Nicômaco, que trata sobre justiça, a escritora assim explicou (2010, pág. 105):
Aristóteles cita três tipos de relações de igualdade, que devem estar presentes na distribuição igual: o justo, no sentido da justiça distributiva, deve ser um termo médio, algo igual e algo relativo. Enquanto termo médio, o justo se constitui como o meio-termo entre o demasiado e o muito pouco. Enquanto algo igual, é a igualdade entre duas coisas (dos bens que devem ser repartidos). Enquanto relação, é justo para as referidas pessoas. A partir desses seis pontos de referência, os primeiros dois, que dizem respeito a toda e qualquer arete, enquanto postura mediana, são suspensos, o que é justo na distribuição, então, se determina de tal modo que se constitui numa relação de pelo menos quatro elementos: trata-se de duas pessoas, para as quais é justo haver uma distribuição, e de duas coisas, que são distribuídas.
Aristóteles explica o tipo dessa relação dizendo que é a mesma relação entre as pessoas e entre as coisas. Se as pessoas não são iguais, também as coisas devem ser distribuídas de modo desigual. Segundo Aristóteles, as disputas surgem precisamente do fato de iguais possuírem coisas desiguais e de desiguais possuírem coisas iguais. Para confirmar isso, refere-se ao fato de que a distribuição se orienta pela axia (dignidade, valor) da pessoa, que cada pessoa portanto deve receber o tanto que corresponde ao seu valor. Nesse ponto, posteriormente, ficará claro que essa fala de uma relação de igualdade fica vazia enquanto não se esclarece em que consiste a axia, que baliza o julgamento sobre a igualdade. É o que explica Aristóteles por meio de sua concepção da igualdade proporcional.
Compatibilizando o princípio da isonomia, sob aspecto material de inclusão social, com o princípio da legalidade, a União editou duas leis prevendo cotas para parcelas da população.
A Lei 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis federais, em seu art. 5º, § 2º, reservou às pessoas portadores de deficiência até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso. Assim, referida lei estipulou o teto dessa cota. Por sua vez, o art. 1º, § 1º, do Decreto Federal nº 9.508/2018 fixou o percentual mínimo de 5º% (cinco por cento) das vagas reservadas para pessoas com deficiência. Ressalta-se que ambas as normas se aplicam apenas na administração pública federal.
Quanto às cotas raciais, a Lei nº 12.990/2014, em seu art. 1º, reservou 20% das vagas oferecidas em concursos no âmbito da administração pública federal. Vejamos:
Art. 1º Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei. (grifo nosso).
Interpretando as duas normas, verifica-se que as cotas para pessoas com deficiência foram fixadas em percentual variável (entre cinco e vinte por cento), ao passo que as cotas para pessoas negras foram estipuladas de modo fixo, a saber, sempre vinte por cento.
No mesmo sentido, o Estado do Piauí publicou a Lei nº 7.626, de 11/11/2021[3], que reservou às pessoas negras e pardas 25% (vinte e cinco por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos e processos seletivos no âmbito da administração pública estadual (art. 1º).
Na esfera jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal foi instado a analisar a constitucionalidade das cotas raciais em razão do ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41/DF, julgada em 08/06/2017, fixando a seguinte tese de julgamento:
"É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta.”
Cumpre destacar que o STF fixou a tese no julgamento da constitucionalidade da Lei Federal nº 12.990/2014, a qual, conforme mencionado acima, aplica-se apenas aos concursos federais. Ademais, a conclusão não pode ser dissociada da fundamentação. Nesse sentido, em suas razões de decidir na ADC 41/DF[4], o STF expressamente fundamentou que:
Aqui eu concordo também com o que foi dito da tribuna de a regra vale para todos os órgãos e, portanto, para todos os Poderes. Nós estamos aqui discutindo a validade de uma lei federal, mas, evidentemente, se afirmamos a validade da lei federal, estaremos afirmando também que os Estados e Municípios podem, quando não, devem seguir a mesma linha. Portanto, o caso concreto é de lei federal, mas o efeito transcendente do reconhecimento da constitucionalidade me parece fora de dúvida. (pág. 25).
[...]
Também não adiro à proposta de estender automaticamente a disciplina da Lei nº 12.990/2014 aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, visto que o diploma também é claro ao afirmar que a reserva de vagas se restringe aos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração direta e indireta da União, devendo ser resguardada a autonomia dos entes federativos. (pág. 130).
[...]
Além disso, na tese que eu propus - a de que é constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos -, eu também fiz de modo a que a política não seja impositiva para Estados e Municípios. No entanto, já fica definido que, se eles quiserem institui-la, será legítimo. (pág. 131). (grifo nosso).
A conclusão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que a reserva de cotas raciais em concursos públicos prevista na Lei 12.990/2014 é constitucional, pois homenageia o princípio da isonomia, compensando desigualdades. Todavia, em razão do princípio constitucional da autonomia federativa, aplica-se somente à administração pública federal, não produzindo efeitos automaticamente nas esferas estaduais, distrital e municipais. No entanto, caso os estados, o Distrito Federal e os municípios editem leis semelhantes, estas serão constitucionais em razão do princípio da simetria.
Cabe ainda trazer à baila que tanto o Tema 203 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal quanto a ADPF 186/DF disseram respeito ao sistema de reserva de vagas, como forma de ação afirmativa de inclusão social, estabelecido para ingresso no ensino superior em universidades. Dispõe a tese 203 do STF que:
É constitucional o uso de ações afirmativas, tal como a utilização do sistema de reserva de vagas ("cotas") por critério étnico-racial, na seleção para ingresso no ensino superior público. (grifo nosso).
Embora com a rubrica de ações afirmativas, as cotas para ingresso no ensino superior público não se confundem com aquelas para reserva de cargos no serviço público. O tema 203 do STF tratou da primeira espécie, mas não desta última, pelo que se faz necessário estabelecer um distinguish.
Com efeito, a autonomia didático-científica das universidades (CF/88, art. 207) permite que estas criem cursos de ensino superior sem necessidade de lei específica, o que não ocorre com os cargos públicos, os quais exigem lei em sentido estrito, nos termos do art. 48, X, da CF/88, aplicável a todos os entes federativos em razão do princípio da simetria constitucional. Além disso, o provimento dos cargos públicos exige o preenchimento de requisitos estabelecidos em lei (CF/88, art. 37, I). Por isso, entendo que, embora ambas fundamentadas nas ações afirmativas, as cotas raciais para ingresso no ensino superior são distintas das cotas de reservas em concursos públicos, sendo este o motivo de o STF ter tratado sobre ambas em decisões distintas, bem como a razão de a Lei nº 12.990/2014 referir-se apenas às cotas para concursos públicos.
Uma vez que o princípio da autonomia federativa veda a imposição da Lei Federal 12.990/2014 aos estados e municípios, forçoso concluir que idêntico princípio proíbe a aplicação automática da Lei Estadual do Piauí nº 7.626/2021 aos municípios piauienses.
Levando-se em consideração a ausência de lei municipal sobre a matéria, e constatada a impossibilidade jurídica de aplicação automática ao município tanto da Lei Federal nº 12.990/2014 quanto da Lei Estadual do Piauí nº 7.626/2021, o Promotor de Justiça, como guardião constitucional da higidez da ordem jurídica, concluiu que as cotas raciais não devem ser aplicadas ao concurso público regido pelo edital da municipalidade, com ausência de lei municipal sobre cotas raciais, uma vez que tal aplicação viola, a um só tempo, o princípio da legalidade (CF/88, art. 37), a autonomia federativa do município (CF/88, art. 18, caput, c/c art. 30, I, c/c art. 34, VII, “c”) e o precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC nº 41/DF (CF/88, art. 102, § 2º, c/c CPC, art. 927, I).
Pelas razões acima expendidas, entendeu-se pela inaplicabilidade das cotas raciais ao concurso público realizado pela municipalidade.
4.2 Colisão entre os princípios da inclusão social (ações afirmativas) e da autonomia federativa. Análise da possibilidade de a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância fundamentar a reserva de cotas raciais.
Sabe-se que o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e solidária (CF/88, art 3º, I) e o princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput) exigem que a as políticas públicas sejam implementadas ininterruptamente. Deste modo, não obstante o entendimento pela inaplicabilidade, no momento, da reserva de cotas ao concurso municipal em análise, fato é que a municipalidade deve providenciar meios para concretizar tal objetivo, uma vez que isonomia e sociedade justa não são interesses disponíveis do administrador.
A questão que se analisa neste tópico é:
i. A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 10.932/2022, de 10/01/2022, com status de norma constitucional, poderia fundamentar a imposição de reserva de cotas raciais ao concurso público realizado por ente municipal sem prévia lei reservando cotas raciais?
ii. Caso a resposta seja negativa, haveria algum reflexo dele no âmbito normativo da municipalidade?
Primeiramente, cumpre destacar uma distinção epistemológica entre os princípios da igualdade, da inclusão social e da autonomia federativa (todos previstos na CF/88 e os dois primeiros contidos na Convenção contra o Racismo acima indicada), de um lado, e a regra do percentual de 20% de reserva de cotas fixada no art. 1º da Lei 12.990/2014. Ambos, princípios e regras, são espécies de normas, mas com grau de generalidade distintas. Quanto ao tema, ensina Robert Alexy[5]:
Há diversos critérios para se distinguir regras de princípios. Provavelmente aquele que é utilizado com mais frequência é o da generalidade. Segundo esse critério, princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo. Um exemplo de norma de grau de generalidade relativamente alto é a norma que garante a liberdade de crença. De outro lado, uma norma de grau de generalidade relativamente baixo seria a norma que prevê que todo preso tem o direito de converter outros presos à sua crença. Segundo o critério de generalidade, seria possível pensar em classificar a primeira norma como princípio, e a segunda como regra. (grifo nosso).
Verifica-se que a própria Constituição Federal de 1988 implicitamente exigiu que as cotas raciais em concursos públicos fossem estabelecidas através de regras, não bastando princípios. Isso porque, no âmbito federal, mesmo após a promulgação da CF/88, as cotas somente foram implementadas com a edição de lei fixando percentual específico, ou seja, regras (cotas raciais da Lei 12.990/2014 e cotas para pessoas com deficiência na Lei 8.112/90). Além disso, o STF, guardião e intérprete máximo da Carta Magna (CF/88, art. 102), no julgamento da ADC 41/DF, decidiu que a aplicação de reserva de vagas raciais exige lei específica de cada ente federado, o que seria desnecessário caso os princípios previstos na CF/88 fossem suficientes.
Assim, conclui-se que princípios e regras coexistem harmoniosamente, mas há aspectos de incidência adequados para cada uma das duas espécies de normas. Com efeito, embora nem tudo deva ser disciplinado de forma específica pelas regras, há temas que não podem ser disciplinados de modo amplamente genérico pelos princípios. Compatibilizando ambos, o princípio da inclusão racial determina a previsão de cotas raciais. Todavia, será a regra de cada Ente Federativo, em respeito aos princípios da legalidade e da autonomia, que criará os percentuais.
A ideia clássica de Hans Kelsen, em sua teoria pura do direito, estabelece que a validade de uma norma depende de outra superior a si. O jusfilósofo conclui que a validade da norma constitucional deriva de um conceito abstrato que chamou de norma hipotética fundamental[6]. Embora pudesse ser indagado o fundamento de validade dessa norma hipotética fundamental, fato é que tal pergunta é estranha à finalidade desta decisão, sendo adequada a uma tese de mestrado ou doutorado. Por ora, cumpre fixar que, no ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988 é o ápice do sistema normativo, de modo que todas as demais normais devem ser compatíveis com ela, sob pena de uma espécie de nulidade especial nominada de inconstitucionalidade.
São normas constitucionais aquelas promulgadas originalmente pela Constituição Federal de 1988, bem como as que forem posteriormente constituídas pelo Congresso Nacional na forma dos procedimentos previstos no art. 60 da CF/88 (norma constitucional derivada reformadora) ou no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (norma constitucional derivada revisora). A Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu o § 3º no art. 5º da CF/88 e criou uma quarta categoria de norma que são equivalentes às emendas constitucionais, quais sejam, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros”. Este último é o caso do Decreto 10.932/2022, que promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Assim, referido tratado tem status de norma constitucional.
Cumpre destacar que a doutrina constitucional estabelece diversas classificações de normas constitucionais, sendo uma delas a de normas constitucionais originárias e normas constitucionais derivadas. Pedro Lenza (2023, pág. 283)[7] ensina que:
As normas constitucionais fruto do trabalho do poder constituinte originário serão sempre constitucionais, não se podendo falar em controle de sua constitucionalidade. Os aparentes conflitos devem ser harmonizados por meio da atividade interpretativa, de forma sistêmica.
Quanto ao trabalho dos poderes derivados, como visto, pode ser declarado inconstitucional, uma vez que referidos poderes são condicionados aos limites e parâmetros impostos pelo originário. (grifo nosso).
Assim, verifica-se que há uma hierarquia entre as normas com natureza constitucional, estando as normas constitucionais originárias no topo normativo e as demais normas constitucionais, quais seja, reformadoras, revisoras e tratados internacionais com status de emenda, logo abaixo. Assim, conclui-se que as normas constitucionais originárias sempre serão válidas e as demais normas constitucionais lhes devem compatibilidade.
Compulsando detidamente a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, verificou-se os seguintes dispositivos com relação próxima ao tema das cotas raciais para concursos públicos:
Artigo 1, item 5. As medidas especiais ou de ação afirmativa adotadas com a finalidade de assegurar o gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais de grupos que requeiram essa proteção não constituirão discriminação racial, desde que essas medidas não levem à manutenção de direitos separados para grupos diferentes e não se perpetuem uma vez alcançados seus objetivos.
Artigo 5. Os Estados Partes comprometem-se a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos. Tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias ou incompatíveis com o propósito ou objeto desta Convenção, não resultarão na manutenção de direitos separados para grupos distintos e não se estenderão além de um período razoável ou após terem alcançado seu objetivo.
Artigo 6. Os Estados Partes comprometem-se a formular e implementar políticas cujo propósito seja proporcionar tratamento equitativo e gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em conformidade com o alcance desta Convenção; entre elas políticas de caráter educacional, medidas trabalhistas ou sociais, ou qualquer outro tipo de política promocional, e a divulgação da legislação sobre o assunto por todos os meios possíveis, inclusive pelos meios de comunicação de massa e pela internet.
Artigo 7. Os Estados Partes comprometem-se a adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas, tanto no setor público como no privado, especialmente nas áreas de emprego, participação em organizações profissionais, educação, capacitação, moradia, saúde, proteção social, exercício de atividade econômica e acesso a serviços públicos, entre outras, bem como revogar ou reformar toda legislação que constitua ou produza racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância.
Verificou-se que o tratado internacional não estabeleceu percentual de vagas reservadas para negros em concurso público, ou seja, não instituiu regra. Com efeito, sua contribuição para igualdade racial assentou-se no reforço da legitimidade das ações afirmativas e da busca do aperfeiçoamento da legislação com vistas à igualdade material, em outras palavras, estabeleceu princípios.
Uma vez que a promulgação da convenção internacional ocorreu no ano de 2022, ou seja, cerca de cinco anos após o julgamento da ADC nº 41/DF que ocorreu em 2017, poder-se-ia indagar: o status constitucional da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância impõe automaticamente a reserva de vagas raciais em concursos públicos aos entes federados? A resposta é negativa.
Primeiramente, tal qual a Constituição Federal de 1988, a convenção internacional não estipulou percentual de cotas, o que demandaria necessariamente lei específica para tal finalidade, assim como ocorreu com a Lei. 12.990/2014. O fortalecimento do impulso para concretização de ações afirmativas não se equipara a reserva de vagas, uma vez que essas demandam lei em sentido estrito, ou seja, regras.
Em segundo lugar, relembre-se que os fundamentos avocados no tópico anterior para fundamentar a inaplicabilidade das cotas raciais no concurso público multicitado foram os princípios da legalidade administrativa (CF/88, art. 37), e da autonomia federativa do município (CF/88, art. 18, caput, c/c art. 30, I, c/c art. 34, VII, “c”). Ambos se encontram em norma constitucional originária, ou seja, a constitucionalidade deles é presumida de forma absoluta. Por outro lado, as normas da convenção internacional, embora equiparadas a emendas constitucionais, devem observância e compatibilidade com as normas constitucionalmente originárias.
Cumpre ressaltar que nem mesmo as normas constitucionais originárias da Constituição Federal de 1988 fundamentaram automaticamente a reserva de cotas raciais em concursos públicos, razão pela qual o STF entendeu pela necessidade de lei específica de cada Ente Federativo para tal finalidade, entre as quais a Lei Federal 12.990/2014.
Assim, entendo que a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância não possui força vinculante para impor, por si própria, reserva de cotas raciais em concursos públicos.
Fato é que as razões apresentadas no presente momento dizem respeito a situações jurídicas passadas.
A efetiva implementação de políticas de ação afirmativa, consubstanciadas na reserva de vagas em certames concursais municipais sob o critério racial, subordina-se à edição de legislação específica no âmbito de cada ente federativo local.
Embora a República Federativa do Brasil seja signatária de diversos instrumentos internacionais voltados para a eliminação da discriminação racial e para a promoção da igualdade, alguns deles internalizados com status de emenda constitucional, como a Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância, ratificada pelo Decreto nº 10.932/2022, deve-se notar que esses instrumentos normativos estabelecem princípios e diretrizes gerais, atribuindo aos Estados Partes a responsabilidade pela adoção das medidas concretas necessárias para a efetiva realização dos direitos que estabelecem.
O princípio da legalidade, basilar para a atuação da Administração Pública (CF/88, art. 37, caput), impõe que esta somente pode agir em estrita conformidade com a lei. No caso em apreço, a inexistência de lei municipal que preveja a reserva de vagas para candidatos pretos e pardos obsta que o Poder Executivo municipal implemente tal medida com efeitos retroativos.
Em vista da inexistência de regulamentação municipal da matéria, conclui-se pela ausência de requisito legal essencial, condicionado para o estabelecimento de cotas raciais no concurso público em questão. No caso, a ausência de lei municipal específica sobre o tema, mesmo que questionável em termos de sua política pública para incentivar a igualdade racial, não equivale, por si só, a uma ilegalidade merecedora de suspensão ou anulação do certame, pois tal conclusão afrontaria os princípios da autonomia federativa e da legalidade administrativa.
Por tais razões, embora a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância não tenha força vinculante para impor cotas raciais, fato é que a igualdade é objetivo que deve ser buscado a todo instante. Em face disso, entendo que o município, por meio de seus Poderes Executivo e Legislativo, deve ser instado a implementar políticas públicas de ações afirmativa para inclusão racial, especialmente através da aprovação de lei municipal criando reserva de cotas raciais nos processos seletivos e concursos públicos do porvir.
5.CONCLUSÃO.
Por tais razões, as conclusões formuladas são as que abaixo seguem:
1. Considerando a ausência de legislação municipal específica sobre reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos e pardos em concursos públicos do município, e em respeito aos princípios da legalidade administrativa e da autonomia federativa dos municípios, bem como a ausência de força vinculante da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância para impor automaticamente a fixação de reserva de vagas de forma automática em concursos públicos, entende-se que a reserva de vagas para cotas raciais exige lei municipal específica, não sendo juridicamente possível aplicação analógica de norma de outra esfera federativa ou a incidência direta do tratado internacional para imposição de percentual;
2. Não obstante o entendimento do parágrafo anterior para o concurso público já realizado, considerando a relevância da temática da igualdade racial, o teor dos tratados internacionais de direitos humanos internalizados no ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional e a necessidade de promover ações afirmativas que busquem a superação das desigualdades históricas e estruturais, necessária a expedição de Recomendação Ministerial, com fulcro no art. 6º, inciso XX, da Lei Complementar nº 75/93 e no art. 27, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 8.625/93, ao Prefeito Municipal e ao Presidente da Câmara Municipal para que envidem esforços no sentido da elaboração e subsequente votação de projeto de lei que institua a reserva de vagas para candidatos autodeclarados pretos e pardos nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos no âmbito da Administração Pública municipal com eficácia para os concursos e processos seletivos futuros.
6.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 3ª ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 out. 1988. Atualizada.
BRASIL. Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 dez. 1990. Atualizada.
BRASIL. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 10 jun. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, Distrito Federal. Julgada em 08/06/2017.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado.27ª edição. São Paulo: Saraivajur, 2023.
PIAUÍ. Lei nº 7.626, de 11 de novembro de 2021. Reserva às pessoas negras e pardas 25% (vinte e cinco por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos e processos seletivos no âmbito da administração pública estadual.
WOLF, Ursula. A ética a Nicômaco de Aristóteles. Tradução Enio Paulo Giachini. São Paulo: edições Loyola, 2010. (Coleção Aristotélica).
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
[2] WOLF, Ursula. A ética a Nicômaco de Aristóteles. Tradução Enio Paulo Giachini. São Paulo: edições Loyola, 2010. (Coleção Aristotélica).
[3] http://www.diariooficial.pi.gov.br/diario.php?dia=20211111.
[4] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=312447860&ext=.pdf
[5] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 3ª ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.
[6] A Constituição, por seu turno, tem o seu fundamento de validade na norma hipotética fundamental, situada no plano lógico, e não no jurídico, caracterizando-se como fundamento de validade de todo o sistema, determinando a obediência a tudo o que for posto pelo Poder Constituinte Originário. (LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado.27ª edição. São Paulo: Saraivajur, 2023).
[7] Pedro Lenza. Idem.
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Piauí. Promotor Eleitoral da 67ª Zona Eleitoral do Piauí. Bacharel em Direito. Especialista em Direito Civil. Especialista em Direito Processual Civil. Especializando em Sistema de Justiça Criminal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIRANDA, MAYLTON RODRIGUES DE. Ausência de lei municipal prevendo cotas raciais em concurso público realizado: colisão entre os princípios da autonomia federativa e da inclu-são racial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 ago 2025, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69365/ausncia-de-lei-municipal-prevendo-cotas-raciais-em-concurso-pblico-realizado-coliso-entre-os-princpios-da-autonomia-federativa-e-da-inclu-so-racial. Acesso em: 14 ago 2025.
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