RESUMO: O presente artigo tem por finalidade ponderar o uso das ferramentas de inteligência artificial na fiscalização tributária e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico em vigor. Serão analisados os principais riscos e desafios no que se refere à garantia dos direitos fundamentais e, consequentemente, a legitimidade das ações fiscais. A análise possui como referência a Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados) e o Projeto de Lei Complementar n.º 2.338/2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial.
Palavras-chave: inteligência artificial; fiscalização tributária; limites constitucionais; direitos e garantias fundamentais.
1.INTRODUÇÃO
A administração fazendária representa atividade essencial para a manutenção da máquina estatal. Sem a arrecadação de tributos, todo o Estado fica comprometido. Dada a sua relevância institucional, a Constituição Federal assegura expressamente a precedência da administração fazendária e de seus servidores fiscais sobre os demais setores administrativos dentro de suas áreas de competência e jurisdição.
Historicamente, o exercício dessa função se pautou pela observância de uma dualidade intrínseca: de um lado, a necessidade de cumprir a atividade vinculada de arrecadar o tributo e, de outro, a obrigação de respeitar os limites constitucionais e os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes.
Entretanto, essa dinâmica ganhou novos capítulos com a chegada da Inteligência Artificial (IA). Processos que, anteriormente, demandavam considerável dispêndio de tempo e recursos humanos foram automatizados por meio de algoritmos capazes de identificar divergências e atividades atípicas em questão de segundos. Essa transformação tecnológica eleva consideravelmente a eficiência do fisco, mas também levanta questionamentos jurídicos importantes.
A celeridade e a abrangência da IA obrigam a reavaliação da forma como são assegurados os direitos e garantias fundamentais e observados os limites legais no ambiente de fiscalização automatizada. O desafio encontra-se, principalmente, em conciliar a eficiência algorítmica com a preservação do devido processo legal.
2.ATIVIDADE FISCALIZATÓRIA
O exercício da fiscalização tributária encontra seu fundamento de validade na própria Carta Magna. Conforme disposto no art. 145, § 1º, da Constituição Federal, é assegurado à administração tributária o poder-dever de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes. Tal prerrogativa visa conferir efetividade aos princípios da capacidade contributiva e do caráter pessoal dos impostos.
Em nível infraconstitucional, a Lei n.º 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN) dedica um capítulo específico à fiscalização, estabelecendo, entre os artigos 194 e 200, o rol de atribuições e deveres dos agentes fiscais, além de obrigações acessórias impostas aos contribuintes e a terceiros.
No cotidiano da Administração, o exercício da função fiscalizatória exige o manejo de uma quantidade massiva de dados. O monitoramento de milhares de contribuintes, a gestão de procedimentos burocráticos e o atendimento a diversas demandas acabam por sobrecarregar as fazendas públicas, limitando a sua eficiência operacional e a assertividade de suas ações.
Nesse cenário, mediante a complexidade e o volume de dados a serem analisados, o uso da inteligência artificial revela-se um instrumento de grande valor para o desempenho das atividades fiscalizatórias. A IA potencializa significativamente a capacidade analítica da administração tributária, permitindo o processamento célere e a correlação precisa de informações.
3.A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO FERRAMENTA ESTRATÉGICA NA FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA
Conforme verificado, a inteligência artificial surge como um meio de concentrar os esforços estatais para aprimorar e ampliar a arrecadação e, além disso, combater a evasão fiscal. Os algoritmos de aprendizado de máquina são capazes de identificar padrões atípicos, anomalias e irregularidades indicativas de sonegação ou omissão de receitas que seriam de grande complexidade para análise humana, permitindo, assim, o direcionamento do fisco para situações de maior importância.
O Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) é um exemplo do uso da IA. Trata-se de uma plataforma de consolidação e de organização de dados contábeis e fiscais transmitidos eletronicamente pelos contribuintes. Com essa ferramenta é possível realizar o cruzamento automático de dados provenientes de diferentes fontes.
Outro exemplo é o Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizado de Máquina (SISAM), que é empregado pela Receita Federal no processo de despacho aduaneiro de importação. Sua principal função é analisar o histórico de Declarações de Importação e detectar, por meio de aprendizado de máquina, possíveis irregularidades e infrações características do despacho aduaneiro. Jorge Eduardo de Schoucair Jambeiro Filho (2016) aponta o fato de o Sisam ser a primeira inteligência artificial on-line desenvolvida na RFB e a primeira de uso totalmente generalizado em sua área de atuação.
A Receita Federal do Brasil também tem demonstrado um avanço significativo na aplicação de IA com o desenvolvimento do Projeto Analytics. Essa plataforma é utilizada para incentivar a autorregularização por parte dos contribuintes, resultando em um consequente incremento da arrecadação sem a necessidade de instauração de litígio. Além disso, demonstrou ser essencial na identificação de indícios de fraude e de esquemas complexos de sonegação.
Outro sistema de IA utilizado pelo fisco federal, dessa vez para agilizar o julgamento de processos tributários no CARF, é o chamado IARA, que utiliza ferramentas de machine learning, processamento de linguagem natural e técnicas de análise de dados. Suas principais funções são a interpretação de relatórios, a classificação de processos e a sugestão de decisões, com o objetivo final de reduzir o tempo de análise de processos tributários.
Ainda, mais recentemente, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) passou a utilizar o “Spoiler”, que é um programa de IA generativa para administrar as execuções fiscais. A ferramenta é capaz de analisar os andamentos processuais, identificar estágios dos processos e sugerir providências a serem tomadas, sempre sujeito à revisão do procurador.
4.PRINCIPAIS DESAFIOS NO USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Não obstante as inegáveis benesses trazidas pela incorporação da inteligência artificial nos processos administrativos, torna-se imperioso ponderar sobre os potenciais riscos e problemas inerentes a essa utilização.
Entre tais riscos, há a questão da opacidade algorítmica causada pela complexidade dos modelos de deep learning. Pelo fato de possuírem várias camadas de redes neurais, seu processo de decisão é extremamente complexo de ser compreendido.
A dificuldade em entender como os algoritmos chegam a determinada decisão, também conhecida como "caixa-preta", é ocasionada pela falta de transparência que, consequentemente, implica na dificuldade em compreender o modo de funcionamento das decisões algorítmicas. Essa falta de transparência cria empecilhos para a atribuição de responsabilidade em casos de erros ou decisões injustas. O processo interno de tomada de decisão de alguns algoritmos não é facilmente compreensível, sendo possível entender os dados de entrada e os dados de saída, mas não as etapas intermediárias que levaram à conclusão. Thatiane Cristina Fontão Pires e Rafael Peteffida Silva enfatizam esse problema:
Por outro lado, há quem afirme que os algoritmos baseados em deep learning são como uma caixa de pandora (black-box), simplesmente pelo fato de que programam a si mesmos e, portanto, não conhecem limites. Criadores de determinados algoritmos de deep learning admitem que não sabem como tais algoritmos realmente funcionam e como eles estão chegando aos resultados. (PIRES; SILVA, 2017, p. 243)
Frequentemente, os contribuintes não possuem acesso aos dados de treinamento e aos critérios utilizados nas decisões automatizadas pelas quais serão afetados. Dessa forma, a ausência de explicabilidade acaba impedindo o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, comprometendo a legitimidade da atuação fiscal.
A superação desse obstáculo exige a implementação de transparência algorítmica que garanta o direito do contribuinte à informação e à transparência. Os critérios de seleção fiscal, parâmetros de risco e decisões automatizadas devem ser divulgados, permitindo a sua verificação pelos contribuintes.
5.LIMITES LEGAIS NO USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
A Administração Tributária, no desempenho de suas funções, deve observar os princípios constitucionais da transparência, da legalidade, da motivação, da segurança jurídica e do contraditório e ampla defesa, que funcionam como limites à atuação estatal. Além disso, para que a ação fiscal seja legitimada, é fundamental seguir estritamente a legislação aplicável. Conforme expõe Hugo de Brito Machado Segundo:
Especificamente no que tange ao Direito Tributário, se pode dizer, sem medo de errar, que sua finalidade não é garantir uma maior arrecadação ao Fisco. Tampouco o trabalho das autoridades consiste em aplicar as suas normas apenas quando isso conduzir a uma maior arrecadação. A finalidade do Direito Tributário – a História é riquíssima em exemplos – é a de fazer com que a arrecadação de tributos siga normas pré-estabelecidas, dentro de parâmetros que garantam equidade, previsibilidade, e afastem o arbítrio. Nessa ordem de ideias, algoritmos devem ser projetados para garantir que tais fins sejam obtidos: que se arrecade o montante definido em lei, nem mais, nem menos, e nos moldes igualmente previstos em lei. Devem respeitar o direito do contribuinte, alertando a ocorrência de pagamentos indevidos, e realizando restituições, com a mesma presteza com que formalizam exigências de quantias recolhidas de forma deficiente. Devem, por igual, ser utilizados de sorte a simplificar e facilitar o cumprimento de tais obrigações, reduzindo a burocracia a elas inerente16, que implica aumento de custos e de insegurança aos agentes econômicos, sem que isso reverta em proveito aos cofres públicos. (MACHADO SEGUNDO, 2020, p. 71)
Nesse contexto, a Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD) assume grande relevância ao trazer modificações relevantes no ordenamento jurídico brasileiro. A LGPD estabelece, em seu art. 20, direitos específicos aplicáveis a situações em que o titular dos dados é submetido a decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais. Tal dispositivo confere ao contribuinte o direito de solicitar a revisão dessas decisões e de obter informações claras e adequadas sobre os critérios e procedimentos utilizados. Ademais, o §1º desse mesmo artigo exige que o controlador dos dados forneça, sempre que solicitado, informações claras e adequadas a respeito dos critérios e procedimentos utilizados para a decisão automatizada.
A aplicação da LGPD ao contexto fiscal impõe a observância de seus princípios essenciais. Dentre os pontos principais, destacam-se a exigência de transparência dos algoritmos fiscais, a adesão aos princípios da necessidade, adequação e finalidade no tratamento dos dados, e a necessidade de garantia da segurança e do sigilo fiscal das informações.
Em suma, a LGPD atua como um mecanismo de controle que tem como objetivo conter a opacidade algorítmica, assegurando que a utilização eficiente da IA respeite os direitos fundamentais do contribuinte, a proteção de seus dados e a justiça fiscal.
Por sua vez, o Projeto de Lei nº 2.338/2023, em trâmite no Congresso Nacional, surge como um marco na regulação da inteligência artificial no Brasil. Seu objetivo é estabelecer um conjunto de normas para o desenvolvimento e o uso ético e responsável da IA, tendo como princípio orientador a centralidade da pessoa humana. O projeto propõe uma regulação específica para sistemas de IA, prevendo regras essenciais como o dever de explicabilidade e o princípio da não discriminação. Ademais, o PL prevê o direito do indivíduo de solicitar a supervisão humana em decisões automatizadas e define a responsabilidade civil por eventuais danos causados por esses sistemas.
A existência desses dois importantes marcos regulatórios revela uma evolução normativa marcada pela tentativa de garantir uma proteção de direitos fundamentais mais ampla no contexto da IA. Em resumo, a LGPD garante o direito de contestação após a decisão, entretanto não detalha os requisitos técnicos e éticos para o desenvolvimento e uso dos sistemas de IA. Neste ponto, o PL 2.338/2023 figura como um complemento à LGPD ao propor a classificação de risco e a não discriminação desde a fase inicial do sistema. Desse modo, o PL busca prevenir os riscos, e não apenas remediá-los.
Não obstante a importância de tais regulamentações, verifica-se a ausência de legislação específica que discipline o emprego da inteligência artificial no âmbito da matéria tributária. A implementação de normatização própria permitiria, por exemplo, a delimitação do uso de algoritmos preditivos, a garantia da supervisão humana sobre os processos decisórios automatizados e a instituição de critérios claros de verificabilidade. Tais medidas são imprescindíveis para assegurar a legitimidade e a transparência do emprego da IA na administração tributária, mitigando riscos e garantindo a plena observância do devido processo legal.
6.CONCLUSÃO
A incorporação da Inteligência Artificial (IA) na fiscalização tributária, embora promissora em termos de eficiência arrecadatória e combate à evasão, pode estabelecer conflitos diretos com os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes. A capacidade preditiva e analítica dos algoritmos, que otimiza a atividade fiscalizatória, não pode sobrepor os princípios basilares do Direito.
A ausência de legislação específica cria incertezas que põe em risco a segurança jurídica e pode levar à desconsideração de garantias fundamentais como o devido processo legal e o contraditório e a ampla defesa. A mera eficiência algorítmica, desacompanhada de transparência, representa grave risco à legitimidade da atuação administrativa.
É fundamental que a normatização futura estabeleça limites claros para o uso de algoritmos e garanta a supervisão humana em todas as etapas decisórias. Somente através da conciliação entre tecnologia e garantias fundamentais será possível aproveitar os benefícios da IA para um sistema tributário mais justo e eficiente.
Contudo, além da imprescindibilidade de disposição normativa, também resta necessária a existência de instrumentos concretos de controle e responsabilização. Sem a previsão de auditorias independentes e o estabelecimento de meios de contestação, há o risco de que a legislação se torne mera fachada de legalidade, desprovida de proteção e eficácia real para o contribuinte. A responsabilidade do uso de inteligência artificial na fiscalização tributária não pode ser minimizada pela complexidade do seu uso.
7.REFERÊNCIAS
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PIRES, Thatiane Cristina Fontão; SILVA, Rafael Peteffida. A responsabilidade civil pelos atos autônomos da inteligência artificial: notas iniciais sobre a resolução do Parlamento Europeu. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, n. 3, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.5102/rbpp.v7i3.4951. Acesso em: 19 nov. 2025.
Auditora Fiscal do Município de Brusque/SC. Bacharel em Direito. Pós-Graduada em Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NICOLINI, Bruna Tomazi. Análise sobre a legalidade e eficácia da utilizaçãoo da inteligência artificial na fiscalização tributária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2025, 04:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/69920/anlise-sobre-a-legalidade-e-eficcia-da-utilizaoo-da-inteligncia-artificial-na-fiscalizao-tributria. Acesso em: 17 dez 2025.
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