RESUMO: A Fazenda Pública conta com regime jurídico diverso no âmbito do direito processual civil, dadas as suas tradicionais prerrogativas. Contudo, no que diz respeito à sua forma de pagar, muitas foram as alterações na sistemática ao longo dos anos. O presente estudo busca aclarar temas nodais no que concerne o regime de pagamento da Fazenda Pública.
Palavras-chaves: Fazenda Pública, Precatório, Requisição de Pequeno Valor, Juros e Correção monetária contra a Fazenda Pública.
1.Introdução
A Fazenda Pública conta com regime jurídico específico no âmbito do direito processual civil, dadas as suas tradicionais prerrogativas. Como cediço, o estudo do regime de pagamentos da Fazenda Pública, com especial atenção aos precatórios, é antigo e extenso. Dessa forma, optamos por lhe desenhar balizas gerais, pincelando pontos específicos de interesse, como forma de aclarar o estudo desse tema multifacetado.
2.Modalidades de Pagamento e sua correção monetária
Hodiernamente, o cidadão pode receber valor da Fazenda Pública por meio de dois mecanismos: os precatórios e as requisições de pequeno valor. Vejamos peculiaridades de cada um deles.
O precatório tem a finalidade única de materializar o cumprimento das decisões judiciais que condenaram o Estado ao pagamento de quantia em dinheiro. Conquanto divirja a doutrina acerca do momento em que os bens públicos se tornaram impenhoráveis, fato é que essa impenhorabilidade obsta a execução da Fazenda tal qual ocorre com os particulares. Nesse sentido, a lição que ora transcrevemos acerca das origens dos precatórios:
“Com a consolidação normativa da impenhorabilidade dos bens da Fazenda Pública, surge o problema da execução em face dela, uma vez que sobre seus bens não se podia realizar penhora, meio precípuo de efetivação de decisão judicial de pagar quantia certa. A esse respeito não havia qualquer previsão legal, de modo que coube à jurisprudência enfrentar originalmente a questão. Tal enfrentamento se deu, como bem esclarece Vladimir Souza Carvalho, sobretudo em processos em que figuravam como executadas Câmaras Municipais. Neles, juízes entenderam que os pagamentos apenas poderiam ser efetivados mediante autorização do presidente da Câmara para que o Oficial de Justiça nela adentrasse. Dessa forma, passaram a expedir precatória de vênia, requerendo a entrada do Oficial de Justiça na Câmara para proceder à penhora de dinheiro nos cofres dessa.
O autor salienta que a impenhorabilidade não implicava a isenção do Estado em pagar seus débitos, de forma que, mesmo perante a impenhorabilidade dos bens da Fazenda, se entendeu pela possibilidade da penhora de dinheiro, bem fungível, ainda que condicionada à autorização do Presidente da Câmara. Vladimir Souza Carvalho afirma que o uso do termo precatória de vênia se fez por analogia à comunicação entre juízes, por precatória, e em sinal de respeito ao Poder Público devedor, vez que não era expedido mandado de penhora, mas requisição.” [i]
Sendo apenas uma ordem, no seu nascedouro, o precatório deixava o particular à mercê da Fazenda, que, salvo eventuais conhecimentos do credor em rodas políticas, adiava o pagamento sucessivamente. Entretanto, muito se evoluiu daqueles tempos até hoje, sobretudo considerado o extenso regramento não só constitucional, mas de leis e regulamentos esparsos.
Nessa senda, antes de mais nada, salutar definir o que viriam a ser precatórios. Conforme indica sua origem, precatórios nada mais são do que solicitações de pagamento. Odete Medauar o define como “o ofício emitido pelo Judiciário, determinando o pagamento de importância em que a Fazenda Pública foi condenada à conta dos créditos respectivos”[ii], enquanto Luiz Guilherme Marinoni assim aduz:
“O precatório se assemelha a uma carta de sentença, com a diferença do que sua função não é a de iniciar procedimento judicial, devendo ser enviado à entidade condenada para a inclusão do valor necessário no orçamento respectivo.”[iii]
À vista disso, pode-se afirmar que o precatório é um ato administrativo de comunicação por meio do qual o Poder Judiciário informa o Poder Executivo acerca de uma condenação, instando-o a incluir o numerário devido no orçamento do exercício seguinte.
A ideia é, portanto, que a execução do título judicial, formado na fase de conhecimento, se dê por meio desse procedimento requisitório específico, conhecido como regime dos precatórios. Embora não seja o enfoque no momento, há de se ressaltar ser ele também aplicável à cobrança de títulos extrajudiciais contra o Estado.
Com efeito, expedido o precatório, conforme jurisprudência remansosa, se encerra a atividade jurisdicional do Poder Judiciário. A partir de então, a atuação do presidente do tribunal se reveste de roupagem eminentemente administrativa, o que se confirma pelo enunciado do verbete sumular nº 311 do STJ: “Os atos do presidente do tribunal que disponham sobre processamento e pagamento de precatório não têm caráter jurisdicional.”
Sendo administrativa sua atividade, não lhe cabe pronunciar-se acerca de eventuais rusgas surgidas após a expedição do precatório, como questionamentos acerca de valores indevidos, juros ou correção monetária. Tais matérias, porquanto atinentes à atividade jurisdicional, serão analisadas pelo juízo competente de 1º grau que julgou o processo.
Quanto ao pagamento via precatórios, ocupou-se o legislador constituinte de fixar-lhe balizas, o que fez por intermédio do art. 100 da CRFB.
Do exposto, alguns pontos merecem destaque. Primeiramente, não se pode olvidar a relativamente recente alteração perpetrada pela EC nº 114/2021 que, alterando a redação do §5º do art. 100 da CRFB, antecipou a data parâmetro para apresentação dos precatórios de 1º de julho para 2 de abril, o que, por razões de segurança jurídica, afeta apenas os precatórios de 2022 em diante.
Ressalte-se, outrossim, a impossibilidade, em regra, de fracionamento de precatórios, a bem do §8º. Assim, não se pode dividir o valor global devido para que parte dele seja recebida via Requisição de Pequeno Valor, por exemplo, e apenas o restante via precatórios.
Nada obstante, a vedação comporta exceções. Uma delas pode ser notada do constante no transcrito §2º, parte final: admite-se fracionamento para pagamento preferencial decorrente da natureza alimentícia do débito, combinada com condição subjetiva de idade ou doença.
Isso porque a própria constituição estabelece limites para essa preferência sobre os demais créditos, no montante de três vezes o valor máximo para pagamento via requisições de pequeno valor. Dessa forma, nesses casos, se apresenta possível o fracionamento, com pagamento do montante inserido no limite de forma preferencial, enquanto o restante segue a ordem cronológica tradicional.
Outra exceção ao fracionamento envolve casos de pagamento de honorários advocatícios. Exsurge possível, outrossim, o fracionamento do valor da execução movida contra a Fazenda Pública para que a cobrança dos honorários sucumbenciais siga o rito da Requisição de Pequeno Valor, ainda que o crédito principal deva ser cobrado mediante precatório. Assim decidiu não apenas a 1ª seção do STJ, no julgamento do REsp nº 1.347.736/RS, analisado sob a sistemática dos recursos repetitivos, como o plenário do STF, no bojo do RE nº 564.132/RS[iv], conforme se afere a seguir (grifos nossos):
EMENTA: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. ALEGADO FRACIONAMENTO DE EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA DE ESTADO-MEMBRO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. VERBA DE NATUREZA ALIMENTAR, A QUAL NÃO SE CONFUNDE COM O DÉBITO PRINCIPAL. AUSÊNCIA DE CARÁTER ACESSÓRIO. TITULARES DIVERSOS. POSSIBILIDADE DE PAGAMENTO AUTÔNOMO. REQUERIMENTO DESVINCULADO DA EXPEDIÇÃO DO OFÍCIO REQUISITÓRIO PRINCIPAL. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DE REPARTIÇÃO DE EXECUÇÃO PARA FRAUDAR O PAGAMENTO POR PRECATÓRIO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 100, § 8º (ORIGINARIAMENTE § 4º), DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. (RE 564132, Relator(a): Min. EROS GRAU, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/2014, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-027 DIVULG 09-02-2015 PUBLIC 10-02-2015 EMENT VOL-02765-01 PP-00001)
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DESMEMBRAMENTO DO MONTANTE PRINCIPAL SUJEITO A PRECATÓRIO. ADOÇÃO DE RITO DISTINTO (RPV). POSSIBILIDADE. DA NATUREZA DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. No direito brasileiro, os honorários de qualquer espécie, inclusive os de sucumbência, pertencem ao advogado; e o contrato, a decisão e a sentença que os estabelecem são títulos executivos, que podem ser executados autonomamente, nos termos dos arts. 23 e 24, § 1º, da Lei 8.906/1994, que fixa o estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. 2. A sentença definitiva, ou seja, em que apreciado o mérito da causa, constitui, basicamente, duas relações jurídicas: a do vencedor em face do vencido e a deste com o advogado da parte adversa. Na primeira relação, estará o vencido obrigado a dar, fazer ou deixar de fazer alguma coisa em favor do seu adversário processual. Na segunda, será imposto ao vencido o dever de arcar com os honorários sucumbenciais em favor dos advogados do vencedor. 3. Já na sentença terminativa, como o processo é extinto sem resolução de mérito, forma-se apenas a segunda relação, entre o advogado e a parte que deu causa ao processo, o que revela não haver acessoriedade necessária entre as duas relações. Assim, é possível que exista crédito de honorários independentemente da existência de crédito "principal" titularizado pela parte vencedora da demanda. 4. Os honorários, portanto, constituem direito autônomo do causídico, que poderá executá-los nos próprios autos ou em ação distinta. 5. Diz-se que os honorários são créditos acessórios porque não são o bem da vida imediatamente perseguido em juízo, e não porque dependem de um crédito dito "principal". Assim, não é correto afirmar que a natureza acessória dos honorários impede que se adote procedimento distinto do que for utilizado para o crédito "principal". Art. 100, § 8º, da CF. 6. O art. 100, § 8º, da CF não proíbe, nem mesmo implicitamente, que a execução dos honorários se faça sob regime diferente daquele utilizado para o crédito dito "principal". O dispositivo tem por propósito evitar que o exequente se utilize de maneira simultânea - mediante fracionamento ou repartição do valor executado - de dois sistemas de satisfação do crédito (requisição de pequeno valor e precatório). 7. O fracionamento vedado pela norma constitucional toma por base a titularidade do crédito. Assim, um mesmo credor não pode ter seu crédito satisfeito por RPV e precatório, simultaneamente. Nada impede, todavia, que dois ou mais credores, incluídos no polo ativo da mesma execução, possam receber seus créditos por sistemas distintos (RPV ou precatório), de acordo com o valor que couber a cada qual. 8. Sendo a execução promovida em regime de litisconsórcio ativo voluntário, a aferição do valor, para fins de submissão ao rito da RPV (art. 100, § 3º da CF/88), deve levar em conta o crédito individual de cada exequente. Precedentes de ambas as Turmas de Direito Público do STJ. 9. Optando o advogado por executar os honorários nos próprios autos, haverá regime de litisconsórcio ativo facultativo (já que poderiam ser executados autonomamente) com o titular do crédito dito "principal". 10. Assim, havendo litisconsórcio ativo voluntário entre o advogado e seu cliente, a aferição do valor, para fins de submissão ao rito da RPV, deve levar em conta o crédito individual de cada exequente, nos termos da jurisprudência pacífica do STJ. 11. O fracionamento proscrito pela regra do art. 100, § 8º, da CF ocorreria apenas se o advogado pretendesse receber seus honorários de sucumbência parte em requisição de pequeno valor e parte em precatório. Limitando-se o advogado a requerer a expedição de RPV, quando seus honorários não excederam ao teto legal, não haverá fracionamento algum da execução, mesmo que o crédito do seu cliente siga o regime de precatório. E não ocorrerá fracionamento porque assim não pode ser considerada a execução de créditos independentes, a exemplo do que acontece nas hipóteses de litisconsórcio ativo facultativo, para as quais a jurisprudência admite que o valor da execução seja considerado por credor individualmente considerado. RE 564.132/RS, submetido ao rito da repercussão geral 12. No RE 564.132/RS, o Estado do Rio Grande do Sul insurge-se contra decisão do Tribunal de Justiça local que assegurou ao advogado do exequente o direito de requisitar os honorários de sucumbência por meio de requisição de pequeno valor, enquanto o crédito dito "principal" seguiu a sistemática dos precatórios. Esse recurso foi submetido ao rito da repercussão geral, considerando a existência de interpretações divergentes dadas ao art. 100, § 8º, da CF. 13. Em 3.12.2008, iniciou-se o julgamento do apelo, tendo o relator, Ministro Eros Grau, negado provimento ao recurso, acompanhado pelos votos dos Ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Brito. O Ministro Cezar Peluso abriu a divergência ao dar provimento ao recurso. Pediu vista a Ministra Ellen Gracie. Com a aposentadoria de Sua Excelência, os autos foram conclusos ao Min. Luiz Fux em 23.4.2012. 14. Há, portanto, uma maioria provisória, admitindo a execução de forma autônoma dos honorários de sucumbência mediante RPV, mesmo quando o valor "principal" seguir o regime dos precatórios. 15. Não há impedimento constitucional, ou mesmo legal, para que os honorários advocatícios, quando não excederem ao valor limite, possam ser executados mediante RPV, ainda que o crédito dito "principal" observe o regime dos precatórios. Esta é, sem dúvida, a melhor exegese para o art. 100, § 8º, da CF, e por tabela para os arts. 17, § 3º, da Lei 10.259/2001 e 128, § 1º, da Lei 8.213/1991, neste recurso apontados como malferidos. 16. Recurso especial não provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ n. 8/2008. (REsp 1347736/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/10/2013, DJe 15/04/2014)
Cediço, portanto, que a vedação ao fracionamento se coloca como medida a evitar fraudes, ou seja, a obstar que o credor escolha o método de pagamento da forma que melhor lhe aprouver. Nessa senda, a vedação deve ser lida levando-se em conta a mens legis do dispositivo, conforme assentou a jurisprudência, importante força motriz do estudo da temática.
De outro viés, anote-se a possibilidade de cessão de precatórios. Como cediço, é permitido ao credor transferir, gratuita ou onerosamente, seu crédito a terceiros que não tenham participado originariamente da relação obrigacional. A essa transferência da posição ativa de credor dá-se o nome de cessão de crédito.
Negociada a cessão de crédito, o cessionário passa a ocupar, perante o devedor, a mesma posição jurídica até então exercida pelo cedente, anterior titular do direito obrigacional. No caso dos precatórios, a cessão encontra autorização não apenas na regra geral do art. 286 CC[v], mas também no art. 78 do ADCT.
Importante frisar que tal cessão poderá se dar por instrumento público ou particular, por inteligência do art. 107 do CC[vi] e ausência de normativa diversa que imponha forma específica para o ato. Nessa esteira, malgrado o art. 288 do CC estabeleça tratar-se, em regra, de contrato solene, o mesmo dispositivo apresenta, in finis, possibilidade excepcional de pactuação por instrumento particular revestido das solenidades do § 1º do art. 654 CC, quais sejam: “indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do outorgante e do outorgado, a data e o objetivo da outorga com a designação e a extensão dos poderes conferidos”. Nesse sentido, a decisão da 1ª turma do STJ, no REsp 1.881.149/DF.
Nada obstante, em qualquer caso, a cessão pode se dar a título total ou parcial, conforme inteligência dos §§ 13 e 14 do art. 100 da CRFB, com redação dada pela EC nº 113/2021.
De forma clara, se observa que os precatórios podem ser de dois tipos: alimentares ou não alimentares. Nesse particular, cabe pontuar que, da redação do §13, in finis, se tem que, a despeito do crédito manter-se alimentar, sendo essa sua origem, não gozará o cessionário dos privilégios a que faria jus o cedente, em termos de preferência de pagamento, por idade ou doença, ou de qualidade de pequeno valor.
Atente-se, outrossim, para o §14 e a necessidade de comunicação ao juízo da execução e ao ente federativo executado, por meio de petição. Ademais, como destacado pela novel redação, levar-se-ão em conta as eventuais compensações.
Por derradeiro, e como terceiro ponto digno de nota, tem-se a disciplina do sequestro. A despeito da criação do regime de precatórios ter se dado em consequência da impenhorabilidade dos bens do Estado, importante consignar que isso não significa a impossibilidade de sequestro ou bloqueio de verbas públicas.
Com efeito, não havendo o pagamento do crédito inscrito em precatório – e sem prejuízo da aplicação de juros moratórios –, é possível o sequestro em casos excepcionais, conforme disciplina o §6º do art. 100 da CRFB.
Da dicção legal se extrai que possível o sequestro de verba pública tanto nos casos de preterição da ordem cronológica de pagamento, como nas situações de falta de alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do crédito exequendo.
Entretanto, o termo “sequestro” não se encontra a salvo de críticas doutrinárias, posto que destinado a atingir quantias em dinheiro. Nesse sentido, a lição de Freddie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha:
“O referido sequestro nada mais é do que um arresto, sendo imprópria a designação de sequestro. Tal arresto, contudo, não ostenta a natureza de medida cautelar, consistindo numa medida satisfativa, de natureza executiva, destinada a entregar a quantia apreendida ao credor preterido em sua preferência.”[vii]
Salvo regimes especiais, apenas se procede a sequestro em havendo requerimento do credor e após oitiva do Ministério Público.
Ressalte-se que, nesse caso, o sequestro pode ocorrer tanto em relação ao Ente Público devedor, incidindo diretamente sobre o patrimônio público, como em relação ao particular, credor, que recebeu antes do tempo, em preterição da ordem de pagamento. Havendo dois legitimados passivos, afigura-se possível a existência de litisconsórcio entre eles.
No que tange à legitimidade ativa, por outro viés, qualquer credor preterido pode requerer o sequestro, nos moldes constitucionais, ainda que haja outros créditos também preteridos anteriores ao dele. Isso diverge apenas no caso de não alocação orçamentaria adequada dos recursos, porquanto apenas o crédito de determinados exequentes é atingido. Nessa hipótese, apenas o credor afetado na satisfação de seu crédito possuirá legitimidade ativa para requerer o sequestro.
Por derradeiro, apenas a título de nota, observe-se que a não efetuação do pagamento do precatório na data devida abre a possibilidade de intervenção nos Estados ou nos Municípios, conforme o caso, ex vi dos arts. 34 e 36 da CRFB, não a obstando o pagamento parcial da dívida. No entanto, jurisprudencialmente se tem que a intervenção não decorrerá do não pagamento sem dolo, quando ausentes recursos para fazer frente aos inúmeros precatórios[viii].
2.2 Requisições de Pequeno Valor
A disciplina das Requisições de Pequeno Valor é constitucionalmente alicerçada, principalmente, no art. 100, §§ 3º e 4º, que já tivemos oportunidade de transcrever. Da mesma forma como fizemos no que pertine os precatórios, teceremos breves comentários estruturais ao entendimento das Requisições de Pequeno Valor, sem qualquer pretensão, entretanto, de esgotamento dos seus tópicos de estudo.
Isso posto, importante consignar que a Requisição de Pequeno Valor – ou RPV – se apresenta como meio diverso de pagamento, a par dos precatórios, quando em tela quantias de baixo valor.
Nessa esteira, já pontuamos quais seriam as quantias de baixo valor ao tratarmos do cumprimento de sentença nos juizados especiais. A Lei Federal nº 10.259, de 12 de julho de 2001, ao dispor sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, definiu em seu artigo 17, § 1º (grifos nossos):
Art. 17. Tratando-se de obrigação de pagar quantia certa, após o trânsito em julgado da decisão, o pagamento será efetuado no prazo de sessenta dias, contados da entrega da requisição, por ordem do Juiz, à autoridade citada para a causa, na agência mais próxima da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil, independentemente de precatório.
§ 1º Para os efeitos do § 3º do art. 100 da Constituição Federal, as obrigações ali definidas como de pequeno valor, a serem pagas independentemente de precatório, terão como limite o mesmo valor estabelecido nesta Lei para a competência do Juizado Especial Federal Cível (art. 3o, caput).
Cristalino, assim, que, ao menos no âmbito federal, se terão por de pequeno valor as condenações de até 60 salários mínimos, como consequência do art. 3º da Lei nº 10.259/2001. Já no âmbito estadual, distrital, e municipal, o art. 87 do ADCT figura esclarecedor, na medida em que, “até que se dê a publicação oficial das respectivas leis definidoras pelos entes da Federação”, aplicar-se-ão os limites de 40 ou de 30 salários mínimos, para Estados ou Distrito Federal, e Municípios, respectivamente.
De toda sorte, o art. 100 §4º não permite que os entes públicos fixem, ao seu alvedrio, valores irrisórios como teto para pagamento de RPVs. Assim é que, em sua parte final, estabelece que as leis próprias fixarão tal valor “sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social”.
Conforme já sublinhado, pode o credor renunciar aos valores excedentes com o fito de receber via RPV. Dessarte, não se pode dizer que incabível a escolha do credor pelo regime de pagamento; ela é possível, mas apenas ante a renúncia de valores – dito de forma simples, o particular, credor, pode receber de forma mais rápida e simples, se der um “desconto” ao pagador, a Fazenda Pública devedora.
Assunto que não pode ser olvidado, ainda, é o referencial utilizado para cotejo do respeito ou não à limitação de valores possíveis de serem pagos via RPV. Conforme sublinhado no tópico anterior, ao tratarmos da exceção à vedação de cisão de precatórios no tocante aos honorários advocatícios, andou bem o STJ no julgamento do REsp nº 1.347.736/RS, ao dispor que “havendo litisconsórcio ativo voluntário entre o advogado e seu cliente, a aferição do valor, para fins de submissão ao rito da RPV, deve levar em conta o crédito individual de cada exequente, nos termos da jurisprudência pacífica do STJ”.
Nesse sentido, nas hipóteses de litisconsórcio ativo, o valor considerado para adequação de valores ao teto das RPVs será o individual, e não o global. Mesma lógica se aplica, sem embargo, à aferição de valores para dispensa de precatório: ela decorrerá da averiguação do montante devido a cada credor litisconsorte, do que se extrai que, tanto a escolha pelo regime de pagamento quanto a vedação de fracionamento são aferidas tomando-se cada credor individualmente, e não o valor total da causa ou da dívida fazendária.
Por certo, o que a Constituição veda é que o mesmo credor receba parte de sua dívida em RPV e outra parte dela em precatório, intencionalmente. Consequentemente, conclui-se que também as custas, como a taxa judiciária adiantada, por exemplo, não poderão ser ressarcidas por meio de RPV se o pagamento do valor principal se fará no regime de precatórios.[ix]
Importante trazer à baila, a título de comentário, a possibilidade de aplicação excepcional da disciplina do art. 526 do CPC, possível apenas para valores a serem pagos via RPV. Assim, nesses casos, poderá a Fazenda, antecipando-se à intimação, proceder ao pagamento voluntário e efetuar depósito do montante que entende devido.[x]
Por derradeiro, uma vez consolidada a requisição, o prazo para seu pagamento é de 60 dias, contados de sua entrega, consoante inteligência tanto do CPC, em seu art. 535, §3º, II, como da Lei nº 12.153/2009, em seu art. 13, I, e da própria resolução do CNJ de nº 303/2019.
Assim, descumpridos tais prazos, cabe ao juiz determinar o sequestro dos valores devidos, em semelhança ao já comentado acerca do sequestro no tópico anterior. Diversamente do que vimos anteriormente, no entanto, tratando-se de requisição de pequeno valor, despicienda a requisição do credor, podendo o juiz fazê-lo assim que verificado o desrespeito ao prazo legalmente imposto.
Tudo isso posto, passemos agora à análise dos juros e da correção monetária.
2.3 Juros e Correção Monetária
Anote-se que, até a entrada em vigor da EC nº 103/21, impositivo que o quantum debeatur fosse atualizado monetariamente conforme o Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), que foi considerado pelo Recurso Extraordinário nº 870.947/SE, com Repercussão Geral reconhecida, como aquele a melhor refletir a perda inflacionária. Assim, seria esse o índice a ser aplicado desde o vencimento, enquanto os juros moratórios, por sua vez, viriam a correr na forma do art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação conferida pelo art. 5º da Lei nº 11.960/09, a contar da citação.
Em idêntico sentido, a tese firmada em caráter vinculante pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema nº 905[xi], ao ensejo do Recurso Especial Repetitivo nº 1.495.146/MG (Rel. Min. Mauro Campbell Marques), destacadamente nas seções 1.2 e 3.
Entretanto, com o advento da EC nº 113/21, forçoso reconhecer a intenção do legislador de alterar o tratamento que a jurisprudência vinha dispensando à questão. Vejamos o seu art. 3º (grifos nossos):
Art. 3º Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente.
Cabe ressaltar, quanto ao tema, que a taxa SELIC traz ínsitas tanto a correção monetária quanto os juros de mora, conforme vem decidindo o STJ há cerca de duas décadas. Nessa linha, o REsp nº 411.164, julgado em 14/5/2002, em que o Ministro Luiz Fux afirmou, em seu voto[xii], que:
“a taxa Selic é o valor apurado no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, mediante cálculo da taxa média ponderada e ajustada das operações de financiamento por um dia. A referida taxa reflete, basicamente, as condições instantâneas de liquidez no mercado monetário e se decompõe em taxa de juros reais e taxa de inflação no período considerado, razão pela qual não pode ser aplicada cumulativamente. com outros índices de reajustamento, como por exemplo, com a Ufir, o IPC e o INPC"
A aventada decomposição em taxa de juros e inflação remonta a outros julgados das cortes superiores (a citar, o REsp nº 187.401, julgado em 3/11/1998, que veio a embasar tantos outros julgados do STJ), embora haja voto vencido excluindo de seu bojo a correção monetária. De toda sorte, ainda que sujeita a críticas, a jurisprudência dominante é no sentido de que na taxa Selic já se encontra embutida a correção monetária, o que explica a opção legal pela sua incidência isolada, uma única vez[xiii].
Disso tudo se conclui que, a partir da entrada em vigor da EC nº 103/202, em 9 dezembro de 2021, a correção monetária e os juros de mora devem ser computados segundo a taxa Selic, por expressa dicção legal.
Atente-se, nessa linha intelectiva, para a necessidade de atenção à não retroatividade, de forma que a nova forma de contagem de juros e correção apenas deve ser aplicada tendo-se em conta a retroatividade mínima, não podendo, ainda a despeito de sua estatura constitucional, retroagir para modificar a incidência mensal da correção monetária sobre dívida judicial já sujeita ao IPCA-E.
Seguindo raciocínio semelhante, a 2ª turma do STJ entendeu que “[n]ão se pode alterar o índice de correção monetária fixado na sentença transitada em julgado mesmo que o STF tenha declarado tal índice inconstitucional posteriormente à sentença”[xiv], em resguardo à coisa julgada e à segurança jurídica.
3.Conclusão
Conquanto o estudo das modalidades de pagamento do poder público seja relegado a segundo plano quando em comparação ao tema da execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, aquele possui papel igualmente fundamental no nosso ordenamento jurídico e deve ser amplamente conhecido pelo operador do direito, sob pena de se desvirtuarem os institutos, seja por tentativa de fraude, seja por desconhecimento dos requisitos legais.
[i] MOREIRA, Egon Bockmann; GRUPENMACHER, Betina Treiger; KANAYAMA, Rodrigo Luís; AGOTTANI, Diogo Zelak. Precatórios: O Seu Novo Regime Jurídico. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2022. RB-1.2. E-book. Disponível em <https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/135729965/v4/page/RB-1.2>. Acesso em: 16/06/2022.
[ii] MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 19. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 468.
[iii] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil, volume 3: execução. 2 ed. rev. e atual. 3. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 406.
[iv] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Advogado pode receber honorários por RPV mesmo que o crédito da parte seja por precatório. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/ab8aa05e782481f55fc1412a97e7ac34>. Acesso em: 17/06/2022
[v] “Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.”
[vi] “Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”
[vii] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; DE OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil: execução. V. 5. 12. Ed. ver., ampl. e atual. São Paulo: Ed. Juspodium, 2022, p. 722.
[viii] Nesse sentido, a IF 1317 SP: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido. (STF - IF: 1317 SP, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 26/03/2003, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 01-08-2003 PP-00113 EMENT VOL-02117-20 PP-04147)
[ix] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; DE OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil: execução. V. 5. 12. Ed. ver., ampl. e atual. São Paulo: Ed. Juspodium, 2022, p. 727.
[x] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 477.
[xi] “Aplicabilidade do art. 1º-F da Lei 9.494/97, com redação dada pela Lei 11.960/2009, em relação às condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza, para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora”.
[xii] JUSBRASIL. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/895820056/agravo-em-recurso-especial-aresp-411164-sp-2013-0346748-7/decisao-monocratica-895820083>. Acesso em: 16/06/22.
[xiii] Para mais: MEIRELES, Edilton. “Uso da taxa Selic como índice de correção monetária é um equívoco a ser reparado” in Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-jan-06/edilton-meireles-uso-taxa-selic-correcao-monetaria>. Acesso em: 16/06/22.
[xiv] Para mais, vide CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Não se pode alterar o índice de correção monetária fixado na sentença transitada em julgado mesmo que o STF tenha declarado tal índice inconstitucional posteriormente à sentença. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/021f6dd88a11ca489936ae770e4634ad>. Acesso em: 09/06/2022.
Bacharel em direito pela UERJ, pós graduada pela AMPERJ, técnica administrativa do MPRJ .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMANDA DE CARVALHO MAGALHãES, . Aspectos Principais acerca do Regime de Pagamentos da Fazenda Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2025, 05:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69716/aspectos-principais-acerca-do-regime-de-pagamentos-da-fazenda-pblica. Acesso em: 16 out 2025.
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