RESUMO: O presente ensaio busca analisar a face indutiva do Direito Penal, surgente a partir de exteriorizações doutrinárias, jurisprudenciais e legais, e suas implicações para o Processo Penal. Tipicamente, o Direito Penal é uma ciência normativa, de caráter dedutivo, que utiliza a lógica formal partindo de princípios abstratos para deduzir conclusões, enquanto a criminologia e a política criminal se valem do método indutivo, que se revela a partir da observação de casos específicos e dados empíricos, a fim de construir teorias gerais sobre as causas e consequências do delito. Nos últimos anos, contudo, esse caráter indutivo próprio da política criminal infundiu-se profundamente no Direito Penal.
Introdução
No dizer de Basileu Garcia, a política criminal constitui uma ponte entre a teoria jurídico-penal e a realidade. A criminologia também é uma ciência empírica, que estuda as causas do crime e os modelos de resposta aos diversos tipos de delito em diferentes estratos sociais.
Com isso, almejamos investigar a absorção pelo direito penal deste caráter indutivo, tal como já ocorre com a criminologia e a política criminal. Esse movimento se entrelaça com aspectos do direito processual, o que pode ser constatado por julgados recentes das cortes superiores e pela nascente justiça penal preditiva, que prenuncia o resultado dos julgamentos utilizando algoritmos de inteligência artificial e análise de big data.
Em trabalho de fôlego sobre a temática, Rodrigo Leite e Airto Chaves arrematam que a influência da política criminal na dogmática penal ganhou impulso com a teoria funcionalista moderada de Roxin, um jurista alemão falecido no início de 2025, na véspera de completar 94 anos.
Apesar da idade avançada, Roxin era um jurista atuante, participando nos últimos anos de diversos congressos e entrevistas virtuais, à semelhança de seu conterrâneo e contemporâneo Jügen Habermas, atualmente com 96 anos. O texto feito a quatro mãos pelos autores, que possuem extensa formação acadêmica, inova ao abordar a influência da política criminal e da dogmática no processo penal.¹
Atualmente, o caráter indutivo do Direito penal alicerça inúmeras viragens jurisprudenciais e doutrinárias, aproximando esse ramo do direito da política criminal e da criminologia. O exame aqui proposto é importante para aferir os limites entre a dogmática penal e o dogmatismo punitivista.
A Dogmática Penal em Xeque
O caráter científico da dogmática penal foi questionada pela histórica advertência de Julius Hermann von Kirchmann, nomeado chefe da promotoria pública de Berlim em 1847. Seu pai era da saxônia, território do Sacro Império Romano, que existiu entre 1356 e 1806. Kirchmann foi parlamentar da Assembleia Nacional Prussiana em 1848, e é lembrado pela palestra que proferiu no mesmo ano na Sociedade Jurídica de Berlim, intitulada “Inutilidade da Jurisprudência como Ciência".
O tom crítico da palestra rendeu-lhe uma remoção para a distante cidade de Ratibor, território da atual Polônia. Dois anos depois, em 1850, ele entrou novamente em conflito com o Supremo Tribunal da Prússia, e como já não havia lugar pior para transferi-lo, ele acabou suspenso por três meses. Anos depois, em 1866, após mais uma palestra “reacionária” dirigida aos trabalhadores, o Tribunal Superior de Berlim iniciou uma nova investigação que resultou em sua demissão e na perda da pensão a que tinha direito em decorrência do cargo. Ainda assim, ele continuou atuando como político e filósofo, influindo na elaboração do Código Penal nos anos de 1869 e 1870.
Na palestra tida como “subversiva” intitulada “Inutilidade da Jurisprudência como Ciência”, o termo “jurisprudência” tem o sentido de “ciência jurídica”, não tendo relação com os precedentes dos tribunais. Nela, Kirchmann acusou a legislação de experimentação vacilante e incerta, calcada em discussões circulares, comparando a ciência jurídica com a tecnologia, afirmando que esta direciona a natureza, enquanto aquela é incapaz de controlar o curso dos acontecimentos. Por fim, cravou a frase que o tornou famoso: “Três palavras retificadoras do legislador e bibliotecas inteiras tornam-se papel de embrulho”.
A máxima de Kirchmann ecoou por décadas, sendo rebatida por inúmeros juristas em diferentes épocas, sempre tentando reforçar a utilidade dos escritos provindos da dogmática jurídica, mesmo que ultrapassados pela atividade legiferante.
No âmbito literário, o tema foi objeto obras clássicas, como: “As Misérias do Processo Penal” e “Como se faz um Processo” de Carnelutti; “Eles, os Juízes, Vistos por Nós, Advogados”, de Calamandrei; “Oração aos Moços” e “O Dever do Advogado”, de Ruy Barbosa; “Como Julgar, Como Defender, Como Acusar”, de Roberto Lyra; “Vigiar e Punir”, Michel Foucault; “A Luta pelo Direito”, de Ihering; “Dos Delitos e das Penas”, de Beccaria. Além de livros que expõem dilemas morais na área penal, como: “O Caso dos Denunciantes Invejosos”, de Dimitri Dimoulis; “O Caso dos Exploradores de Caverna", de Lon Fuller; e "Justiça”, de Michael Sandel.
Com efeito, a atividade legislativa pode contornar o dogmatismo reinante numa sociedade totalitária, o que não infirma o caráter científico e evolutivo da dogmática penal. A esse respeito, podemos comparar a repressão da heresia no direito canônico com a atual onda de criminalização de buscas na internet, seja sobre temas relacionados à orientação sexual (Rússia) ou sobre protestos políticos (China). Além disso, em diferentes jurisdições, a proteção do Estado de Direito e das instituições têm servido de álibi para a criação de novos temas heréticos, justificando o dogmatismo repressivo.
A tipificação penal de buscas de assuntos específicos na internet possui relação estreita com o processo penal, em especial com a validade das provas decorrentes da quebra de sigilo destas buscas. Estas provas podem facilitar a investigação de inúmeros crimes graves, desde que observados os requisitos da localidade e temporalidade, e seja vedado seu uso para incriminar o conteúdo buscado. A validade dessas provas é um tema em construção, e a fixação prematura de um entendimento cerrado em sede de repercussão geral pela Suprema Corte pode inibir o aprofundamento da discussão pelas demais instâncias.
Segundo a perspectiva de Mir Puig: “Todo direito penal responde a uma determinada política criminal, e toda política criminal depende da política geral própria do Estado a que corresponde”.²
Essa relação da dogmática penal com a política criminal cresceu bastante nos últimos anos, tanto por ação como por omissão. De fato, mesmo ostentando um aparato de guerra, a omissão do Estado na segurança pública em diferentes países frequentemente é intencional, representando uma forma de controle social, com o manejo da atuação das forças de segurança visando manipular os índices de criminalidade de certos delitos e em localidades específicas.
Para Guilherme Nucci:
“A política criminal se dá tanto antes da criação da norma penal como também por ocasião de sua aplicação. Ensina Heleno Fragoso que o nome de política criminal foi dado a importante movimento doutrinário, devido a Von Liszt, que teve influência como ‘tendência técnica, em face da luta de escolas penais, que havia no princípio deste século na Itália e na Alemanha. Essa corrente doutrinária apresentava soluções legislativas que acolhiam as exigências de mais eficiente repressão à criminalidade, mantendo as linhas básicas do Direito Penal clássico’”.³
Essa contradição entre os extremos da política criminal, com excesso de criminalizações e ausência de punição adequada para determinados tipos de crimes, pode ser vista no atual contexto legislativo e jurisprudencial brasileiro.
Com efeito, o despropósito criminalizante ofende os princípios basilares da fragmentariedade, subsidiariedade e intervenção mínima. Como uma moda de época, qualquer lei aprovada sobre assuntos diversos tem trazido em seu bojo um capítulo repleto de condutas típicas.
Excesso Criminalizante
Um exemplo de punitivismo pode ser constatado no Código de Defesa do Consumidor, que tipifica condutas omissivas como “deixar de entregar termo de garantia” e “deixar de corrigir informação sobre consumidor”, e condutas comissivas como “fazer afirmação enganosa sobre a garantia de produto”, punindo até mesmo a modalidade culposa. São condutas que poderiam ser reprimidas adequadamente nas esferas civil e administrativa.
De fato, o direito penal deve ser utilizado apenas para a punição de condutas graves, sob pena de se mostrar autoritário e contraproducente. Como exemplo marcante da criminalização excessiva, o Decreto-Lei nº 16/66 continua em vigor, criminalizando a fabricação doméstica de açúcar, o que gerou dúvidas sobre a licitude da fabricação caseira de rapadura.
Modernamente, os artigos 170 e 171 da Lei nº 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte) preveem os tipos penais de marketing de emboscada, com uma linguagem prolixa que dificulta a adequação típica, prevendo pena de 3 meses a 1 ano, ou multa.
Por outro lado, o art. 99, §1º, “p” da mesma lei passou a exigir a apresentação ao Ministério Público de laudos técnicos de vistoria das condições de segurança dos alojamentos que mantenha atletas em formação. A norma busca prevenir acidentes, como o que vitimou dez garotos no Clube de Regatas Flamengo em 2019. Para o cumprimento destes requisitos, o art. 100 da lei também inclui a fiscalização pelo conselho tutelar e pelo MPT.
Já o art. 38 da Lei de Drogas prevê o crime culposo de prescrever ou ministrar drogas, sem que o paciente delas necessite, em dose excessiva ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, prevendo pena de 6 meses a 2 anos e multa. Nele incide o profissional de saúde que prescreve culposamente uma droga ao seu paciente de forma irregular. Referido tipo penal não possui relação direta com o escopo da Lei de Drogas, e deveria ser alocado nos crimes contra a saúde pública do Código Penal, incluindo-se o artigo “280-A”.
A Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91) também prevê figuras típicas pitorescas nos arts. 43 e 44, como as contravenções penais de cobrar antecipadamente o aluguel ou exigir mais de uma modalidade de garantia, bem como o crime de recusar recibo do aluguel, prevendo penas que vão de cinco dias de prisão simples a 1 ano de detenção. É perfeitamente possível lidar com estas condutas no âmbito cível de forma satisfatória, não havendo necessidade de se instaurar uma ação penal para tanto.
Proteção Deficiente de Bens Jurídicos
No extremo oposto, o Direito Penal não tem se mostrado suficiente para reprimir condutas graves. Como exemplo, o crime de estupro pode ser praticado na modalidade clássica, com uso de violência ou grave ameaça para subjugar a vítima. Caso a violência seja exercida contra uma adolescente de 13 anos, a conduta se enquadra no crime de estupro de vulnerável do art. 217-A, que possui pena mais grave, com a violência servindo para agravar a pena-base, valorando-se negativamente as circunstâncias, consequências ou culpabilidade. Para a adequada tipificação neste caso, o elemento especializante que prevalece é a idade da vítima, ao invés do uso da violência ou grave ameaça.
O tipo penal do estupro ainda comporta situações limítrofes, como nos casos de consentimento parcial ou condicional da relação sexual. Neste âmbito, discute-se a adequação típica quando o consentimento é dado para uma relação com ou sem ejaculação (coito interrompido), com ou sem uso de preservativo, com ou sem fetiches, como tapas e arranhões, ou se o consentimento foi limitado ao sexo vaginal, anal ou oral.
Também se discute a possibilidade de controle dos impulsos hormonais após iniciada uma relação sexual consentida, com inversão do consentimento no decorrer do ato. Importa ainda examinar a presença ou não de consentimento tácito, em especial nos casos de sexo em grupo, “trisal” ou relações estáveis de coabitação. Por fim, tem se tornado comum na jurisprudência casos de sexo no contexto religioso, enquadrados no tipo penal da violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP). A esse respeito, é preciso distinguir o consentimento antecipado dado por seguidores para práticas sexuais “espirituais”, bem como o fenômeno psíquico do “êxtase religioso”, presente em diversas congregações, além das conhecidas “auras epilépticas” ou epilepsia orgásmica.
No embate entre o relativismo moral e a proteção do bem jurídico, a exceção Romeu e Julieta, antes acatada apenas pelos tribunais de segunda instância, finalmente aportou no STJ, que passou a albergá-la em situações específicas, a despeito de manter incólume a súmula 593.
No delito de homicídio, também surgiram contradições advindas de alterações legais recentes. Com efeito, as Leis nº 14.344/2022 (Lei Henry Borel), Lei nº 14.811/2024 e Lei nº 15.159/2025 buscaram recrudescer a punição do homicídio praticado contra menores de 14 anos, mas devem ser interpretadas de forma sistemática para manter a lógica na aplicação da lei. Esse recrudescimento adveio na forma de qualificadoras e majorantes, tanto pelo local do crime quanto pela qualidade do autor, a exemplo do crime praticado no interior de estabelecimento de ensino ou perpetrado pelo cônjuge da vítima.
Quanto ao local do crime, a Lei nº 15.159/2015 inclui o inciso X ao art. 121 do CP, prevendo a qualificadora do homicídio cometido nas dependências da instituição de ensino. No entanto, a Lei nº 14.811/2024 já havia incluído o §2-B, III, prevendo o aumento de dois terços para o homicídio de menor de 14 anos em instituição de educação básica pública ou privada.
Já quanto à qualidade do perpetrador do homicídio, o §2-C prevê aumento idêntico ao §2-B, II, dispondo das mesmas qualificações do autor. Contudo, a maioria dos ataques em escolas são cometidos por ex-alunos, que não se enquadram em nenhuma das qualificações elencadas na lei. Além disso, quanto à qualificação de “cônjuge” da vítima menor de 14 anos, há contradição com a Lei nº 13.811/2019, que proibiu casamentos com menores de 16 anos.
Ainda no campo da proteção dos infantes, os arts. 240, §1º e 241-B do ECA foram incluídos na lista de crimes equiparados a hediondos pela Lei nº 14.811/2024. Este último crime pune o armazenamento de pornografia infantil com pena mínima de 1 ano de reclusão. Contudo, as condutas mais graves dos arts. 241 e 241-A, com penas mínimas de 4 anos e 3 anos de reclusão, não foram incluídas na referida lista, demonstrando contradição na proteção do bem jurídico.
Em sentido oposto, buscando manter a lógica do sistema punitivo, o art. 1º, §5º, da Lei nº 14.717/2023 excluiu as crianças e adolescentes que cometeram ato infracional análogo ao crime de feminicídio do direito ao recebimento da pensão decorrente do crime, seja ele consumado ou tentado.
A esse respeito, o caráter indutivo do direito penal se mostrou evidente nas interpretações dada à Lei nº 11.340/2006 pelo Supremo Tribunal Federal. Com efeito, examinando o art. 16 da referida lei, o STF assentou na ADI 4424, julgada em 2012, a natureza incondicionada da ação penal nos casos de lesão contra a mulher, independentemente da extensão, podendo o Ministério Público denunciar o agressor mesmo sem a representação da vítima.
Após pouco mais de uma década, em 2023, o STF julgou a ADI 7267 sobre o mesmo art. 16, entendendo que o não comparecimento da vítima à audiência designada de ofício pelo magistrado não caracteriza retratação tácita ou renúncia tácita ao direito de representação.
Com estes dois entendimentos, a Suprema Corte transpôs dois importantes obstáculos à punição dos agressores, dada a característica específica da agressão doméstica, em que a vítima em geral continua convivendo com o agressor após os episódios de violência. Contudo, percebe-se, empiricamente, que os feminicídios se concentram em cidades específicas, além de a maioria dos perpetradores já possuírem extensas fichas criminais.
Por outro lado, no âmbito ambiental, a Lei nº 22.978/2024 do Estado de Goiás estabeleceu penas de 4 a 7 anos de reclusão para quem provocar incêndio florestal, podendo a pena chegar a 10 anos de reclusão, além de vetar a estipulação de fiança ao acusado.
Em 2025, o STF declarou a inconstitucionalidade formal da lei goiana na ADI 7.712. Porém, a legislação federal é inadequada para reprimir a conduta, em especial nos casos praticados por incendiários contumazes. O art. 250 do CP estipula uma pena de 3 a 6 anos de prisão para quem causar incêndio expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem. Mas a maioria das condutas são enquadradas no tipo penal do art. 41 da Lei dos Crimes Ambientais, que estipula uma pena mínima de dois anos de reclusão. O projeto de lei nº 3.330/24, aprovado na Câmara dos Deputados, eleva essa pena para 3 a 6 anos de prisão. Mas mesmo que essa alteração legal se concretize, ainda resultará na aplicação de pena inferior a 4 anos, passível de substituição (art. 7º, I, da Lei 9.605/98) e regime aberto.
De seu turno, o art. 4º, VII, da Lei nº 14.478/2022 prevê que os serviços em criptomoedas devem evitar a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa. Apesar de a realidade brasileira ser adstrita ao crime de lavagem de capitais, as duas últimas condutas têm como base os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Jurisprudência Penal Indutiva
Além da legislação penal, o caráter indutivo também tem se manifestado na jurisprudência dos tribunais superiores. Inicialmente, é preciso pontuar a extrema dificuldade destes tribunais cancelarem súmulas com entendimentos superados há décadas, o que é compensado firmando-se teses em precedentes qualificados.
Com efeito, no Recurso Especial nº 1.999.604/MG, julgado em 20/03/2023, o STJ definiu que a solicitação do preso para trazer drogas para o interior do presídio não se enquadra no tipo penal do tráfico, configurando mero ato preparatório do núcleo “adquirir”, caso os entorpecentes sejam interceptados pelos policiais penais.
Neste caso, o direito penal indutivo pode ser contornado pela política criminal, com a inclusão pelo legislador do verbo “solicitar” no tipo misto alternativo previsto no caput do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.
Já no Recurso Especial nº 2.009.839/MG, julgado pelo STJ em 09/05/2023, a corte entendeu que o cumprimento de mandado judicial para apreensão de menor em residência não valida o encontro fortuito de entorpecentes e petrechos para o tráfico no local. Nesta assentada, a corte diferenciou as “fundadas suspeitas” das “atitudes suspeitas”, à luz do entendimento firmado pelo STF no Tema 280.
Essa questão relaciona-se com o tema muito debatido acerca da entrada forçada de policiais sem mandado em domicílio onde ocorre tráfico de drogas. A esse respeito, imperava intensa divergência entre o STJ, e a 1ª e 2ª Turmas do STF, em especial nos casos em que a polícia constata nervosismo dos suspeitos. Mas o desacordo foi superado no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Extraordinário nº 1492256 realizado em 14/02/2025, com o plenário do STF definindo por maioria de votos que a prova é lícita, reafirmando o Tema 280 da repercussão geral, tendo como base as fundadas razões e a natureza permanente do crime de tráfico de drogas.
Outro exemplo de jurisprudência indutiva pode ser visto no julgamento do Habeas Corpus nº 716.210/DF pela 6ª Turma do STJ em 10/05/2022, entendendo a corte que a semi-imputabilidade não se confunde com a teoria da actio libera in causa prevista no art. 28, II, do Código Penal. Logo, o tráfico praticado sob o efeito imediato ou duradouro do consumo frequente de entorpecentes não retira a hediondez do crime e tampouco perfaz a figura privilegiada do art. 33, §4º, da Lei nº 11.343/2006.
Já no Habeas Corpus nº 926862, julgado em 31/03/2025, o STJ decidiu em benefício do acusado, entendendo que a tomada de aparelho celular das mãos da vítima configura furto por arrebatamento, e não roubo. O caso concreto ocorreu no ano de 2019, mas essa modalidade de subtração de celulares dos transeuntes usando bicicleta ou motocicleta para o ataque e evasão do local cresceu enormemente nos últimos anos. Segundo o STJ, o cenário probatório “não permite concluir que o comportamento perfaz as elementares do tipo previsto no art. 157 do Código Penal, mas, sim, daquele estabelecido no art. 155 do mesmo diploma legal.”
Em suma, a corte entendeu que o furto por arrebatamento não configura grave ameaça ou violência à vítima da subtração. No caso julgado, o acusado havia sido condenado à pena mínima do art. 157 do CP, de quatro anos de reclusão. Com a desclassificação da conduta operada pelo STJ, a pena mínima passou a 1 ano de reclusão.
O crime de furto qualificado possui pena mínima de 2 anos, havendo modalidades com pena mínima de 4 anos, como o furto eletrônico previsto no art. 155, §4º-B, do CP, incluído pela Lei nº 14.155/2021. Com base nisso, o governo federal enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional em 25/06/2025, estipulando o aumento da pena mínima do furto de celular para 4 anos de reclusão, e criando a figura da receptação qualificada do aparelho. Ainda assim, o furto por arrebatamento continua com uma diferença essencial em relação ao crime de roubo, por permitir a substituição da pena por penas alternativas.
De seu turno, o roubo com uso de simulacro ou arma de brinquedo também é tema da jurisprudência indutiva. Sobre o assunto, o STJ cancelou a súmula 174 em 2001, que previa a aplicação da majorante do uso de arma de fogo nestes casos. O ministro Edson Vidigal foi o único a votar pela manutenção da súmula, entendendo ser cabível a aplicação da majorante.
Com o tempo, a corte compensou esse abrandamento, firmando a compreensão de que a potencialidade lesiva da arma é pressuposta, constituindo ônus da defesa infirmá-la, a fim de desclassificar a conduta para o furto. Logo, a configuração da grave ameaça prescinde da perícia na arma, podendo a potencialidade lesiva ser constatada por outras provas.
Contudo, sem a aplicação da majorante, a pena frequentemente é fixada no mínimo legal de 4 anos, resultando no regime aberto. Ao tempo da validade da súmula 174, o roubo com uso de simulacro ou arma de fogo inoperante resultava em condenação no regime semi-aberto. Para compensar o regime aberto, a jurisprudência passou a entender que a grave ameaça decorrente do uso de arma de brinquedo ou de simulacro serve tanto para perfazer o crime de roubo quanto para afastar a substituição da pena, segundo o art. 44, I, do CP.
Processo Penal Indutivo
Essa nova face indutiva também alcança o processo penal. Com efeito, no Habeas Corpus 625.274/SP, julgado pelo STJ em 17/10/2023, restou decidido que a inspeção de bagagens em ônibus e veículos pela Polícia Rodoviária Federal tem natureza administrativa, prescindindo do requisito da fundada suspeita exigida pelo CPP.
A esse respeito, a Lei nº 11.719/08 incluiu os pressupostos processuais e as condições da ação penal no art. 395, II, do CPP, à semelhança do que ocorre no processo civil, o que gerou muitas críticas doutrinárias. Em 2015, com o advento do novo CPC, as condições da ação foram alteradas, com o art. 17 não elencando mais a possibilidade jurídica do pedido.
Por outro lado, o Pacote Anticrime também trasladou a fundamentação do processo civil para o processo penal. No âmbito do processo civil, o art. 489, §1º, do CPC/2015 trouxe regras para a fundamentação das decisões judiciais, incluídas na seção sobre os elementos da sentença. De igual maneira, o art. 927, §1º, do CPC exigiu esse mesmo nível de fundamentação nas decisões que aplicam os precedentes qualificados. Caso esse nível de fundamentação não seja observado, o art. 1.022, parágrafo único, do CPC permite a oposição de embargos declaratórios para sanar a omissão.
Quatro anos depois do CPC/2015, a Lei nº 13.964/19 incluiu o art. 315, §2º, no CPP, exigindo o mesmo nível de fundamentação previsto no art. 489, §1º, do CPC. Mas passado um lustro desde essa inclusão, a sua aplicação ainda gera dúvida, tendo em conta a alocação topográfica no capítulo sobre a prisão preventiva, quando o correto seria no título XII, incluindo-se um parágrafo único ao art. 381 do CPP, à semelhança do §1º do art. 489 do CPC.
Esse intercâmbio entre as esferas processuais civil e penal pode se estender para outros institutos, como a aplicação no processo penal do acordo de saneamento previsto no art. 327, §2°, do CPC. O direito penal indutivo alcança igualmente a justiça penal negocial. O acordo de não persecução penal foi inspirado no plea bargaining, que pode ser traduzido literalmente como “pedido de barganha”, ou tecnicamente como “acordo de confissão”. No caso brasileiro, a nomenclatura do acordo seguiu uma técnica de exclusão, tida por muitos como inadequada para as finalidades pretendidas, uma vez que a lei exige para a validade do acordo a confissão circunstanciada do investigado.
Ainda no âmbito processual, percebe-se a extrema dificuldade em certificar o trânsito em julgado, tendo em vista as inúmeras vias recursais disponíveis. O Caso Collor ilustra essa dificuldade no âmbito do processo penal. O STF absolveu o ex-presidente em 1994. Vinte anos depois, em 2014, a corte o absolveu novamente, desta vez por falta de provas.
Em 2015 Collor foi novamente denunciado na operação Lava-Jato, tendo sido condenado após oito anos de trâmite processual, a uma pena de 8 anos e 10 meses de reclusão por corrupção passiva e lavagem de capitais. A decisão acatou a tese da acusação de que o ex-presidente teria recebido propina no valor de 20 milhões de reais entre 2010 e 2014 para viabilizar contratos irregulares entre a BR Distribuidora e UTC Engenharia para a construção de bases de distribuição de combustíveis. Apesar de certificado o trânsito em julgado, foram interpostos diversos recursos protelatórios, e só em 24 de abril de 2025 a ordem de prisão foi finalmente expedida e cumprida.
Execução Penal Indutiva
Por fim, o caráter indutivo reverbera igualmente no âmbito da execução penal. Com efeito, em julho de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei n° 1112/2023, exigindo o cumprimento de 80% da pena para progressão de regime no caso de crimes hediondos, mesmo que não resulte em morte.
Antes, o Pacote Anticrime havia fixado percentuais de 40% a 70% no caso de crimes hediondos, escalonados em 7 situações específicas, contando com a recente inclusão do percentual de 55% no caso de feminicídio, se primário o réu.
Em caso de aprovação final do texto, as 7 situações serão unificadas em 80%, tanto para o réu primário sem resultado morte, a exemplo do crime de estupro, quanto para o réu reincidente em crime hediondo com resultado morte.
Doutrina Penal Indutiva
Ao lado da legislação e da jurisprudência, o direito penal indutivo também se manifesta na dogmática penal, por meio de novas conformações teóricas ou ajustes em teorias tradicionais, buscando atender aos anseios da sociedade por justiça. Na observação de Eça de Queiroz: “A voz dos que vêm em nome da razão e do direito é tão alta por vezes, e de tal modo ecoa nos ouvidos, que os deixa a escorrer sangue.” Essa pressão da sociedade tem ecoado em todas as esferas penais.
Na lição de Giuseppe Bettiol e Rodolfo Bettiol:
“Estas consequências e estes perigos foram logo individuados pelo maior representante do endereço da prevenção especial na Alemanha – FRANZ VON LISZT –, o qual procurou harmonizar entre si as exigências novas de política-criminal com os critérios do Estado de direito criado para tutelar os direito fundamentais do cidadão. Conseguiu isto somente lacerando com profundas contradições o seu sistema, como demonstrou CALVI. E a mesma coisa se pode dizer das tentativas que hoje são cumpridas pelos teóricos da nouvelle défense sociale - sobre a qual se difundiu amplamente CAVALA -, os quais querem harmonizar as tradicionais exigências do Estado de direito reconhecendo que a base do direito penal se encontra na necessidade social de defesa contra o ataque delituoso.”4
Buscando conciliar o anseio dos que vêm em nome do direito por ordem e justiça e a garantia contra os arbítrios e o autoritarismo do Estado, a dogmática penal se renova constantemente. Como exemplo, podemos citar a tipicidade conglobante, que une a tipicidade com a antinormatividade, excluindo as condutas incentivadas pelo direito. De seu turno, a teoria da causalidade funcional introduz critérios normativos na análise causal. Segundo Lampe, a diferença entre uma causalidade natural situada no âmbito do ser e a causalidade funcional situada no âmbito do sentido não serve apenas para clareza dogmática, mas traz, também, consequências para a imputação jurídico-penal.
De seu turno, a teoria temperada da indiciariedade autoriza a absolvição do réu quando a defesa logra gerar um estado de dúvida fundada na ilicitude ou culpabilidade, com respaldo legal na parte final do inciso VI do artigo 386 do CPP. Com efeito, as causas justificantes e exculpantes comportam exame subjetivo, passível de dúvida, enquanto as causas de extinção da punibilidade possuem caráter objetivo, como a ocorrência da prescrição.
Existem muitas outras teorias emergentes assomando na dogmática penal, passando por efeito semelhante à legislação, no sentido de haver aquelas que pegam e as que não pegam. Algumas são acatadas pelos tribunais, ora em benefício do réu ora em seu malefício. Podemos exemplificar com as teorias de Roxin sobre o domínio do fato e a imputação objetiva. A primeira foi utilizada na Ação Penal 470 pelo STF, o que foi criticado por seu criador, que alertou contra seu mal uso. Segundo ele, no afã de alcançar os superiores hierárquicos, a Suprema Corte afrontou o princípio da culpabilidade. Por outro lado, a segunda teoria foi encampada pelos tribunais pátrios para excluir a responsabilidade penal em uma vasta variedade de circunstâncias.
Apesar da existências de inúmeras teorias penais, ainda abundam lacunas na aplicação racional da legislação. Um exemplo da vaziez dogmática pode ser vista nos arts. 359-L e 359-M do Código Penal, que tratam da abolição violenta do estado de direito e do golpe de estado, prevendo as condutas de tentar depor o governo constituído ou tentar abolir o estado democrático de direito.
Em regra, os crimes de atentado equiparam a conduta tentada ao crime consumado, mas neste caso há previsão apenas da figura tentada, pois sua consumação tornaria impossível a punição.
Dogmaticamente, o iter criminis possui a fase interna e externa. Esta vai da preparação até o exaurimento. Aquela é dividida por Jorge Frias Caballero em idealização, deliberação e resolução.5
Na etapa resolução, ainda na fase interna, o agente decide pelo cometimento da infração penal. No caso de predadores sexuais, especialistas apontam que a mera decisão de cometer um novo delito traz a sensação de liberdade ao perpetrador.
Na Lei Antiterrorismo, há punição dos atos preparatórios, que são os primeiros atos da fase externa, não tendo a lei avançado até a punição da fase interna, seja da cogitação, deliberação ou resolução do atentado terrorista, como se dá em outras jurisdições.
Nessa fronteira dogmática, discute-se o enquadramento do planejamento do crime, situando-o entre a resolução (última etapa da fase interna) e a preparação do delito (primeira etapa da fase externa). Essa discussão importa especialmente nos crimes de atentado e de terrorismo.
Com efeito, é necessário delimitar o alcance punitivo dos verbos núcleos do tipo “tentar abolir” e “tentar depor” no iter criminis, a fim de enquadrá-los na confecção de um plano criminoso. Há quem entenda se tratar neste caso de ato executório dos verbos sobreditos, prevalecendo, todavia, o enquadramento como ato preparatório ou de mera resolução interna.
Caso se entenda tratar-se de ato preparatório, o plano criminoso só seria punido se o crime planejado fosse terrorismo. E como resolução do delito, o fato seria atípico, qualquer que seja o crime arquitetado no plano. Por fim, a norma de exclusão do art. 2º, §2º, da Lei Antiterrorismo possui a mesma finalidade do art. 359-T, vedando-se a punição de manifestações lícitas.
Podemos ainda registrar a lacuna dogmática na dificuldade de tipificar a conduta de vender armas de fogo. Com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, foi realizado um referendo em 2005 sobre o art. 35, com o resultado mostrando uma ampla margem favorável ao comércio de armas. Diversamente da lei anterior, que tipificava o porte ilegal de armas utilizando o verbo “vender”, a nova lei só previu no art. 14 o núcleo “ceder, ainda que gratuitamente”, gerando uma celeuma doutrinária, prevalecendo o entendimento de que o verbo “ceder” não inclui a venda.
Política Criminal Indutiva
A fixação abstrata dos preceitos secundários dos novos tipos penais também possui uma relação estreita com a política criminal. Com efeito, os novos tipos surgentes nos últimos anos ostentam a pena padrão de 2 a 5 anos de reclusão, de onde decorrem diversos efeitos práticos. De fato, a pena mínima de dois anos não permite o sursis processual, ao passo que a pena máxima de cinco anos autoriza a prisão preventiva e a tipificação como organização criminosa.
Em termos procedimentais, os intervalos abstratos nos preceitos secundários dos tipos penais praticamente aboliram o rito sumário, que só se aplica no caso de crime com pena de 2 a 3 anos de prisão. Logo, se a pena mínima for de 1 ano, aplica-se o sursis processual; se a pena máxima for de 2 anos, aplica-se o rito sumaríssimo; e se a pena máxima for igual ou superior a 4 anos, se aplica o rito ordinário, não restando alternativa para o rito sumário.
A política criminal é naturalmente indutiva, e repercute nas soluções para os problemas de segurança pública. Como exemplo, uma onda de vandalismo a ônibus coletivos assolou o estado de São Paulo no início de 2025. No começo, os ataques foram atribuídos a uma disputa entre sindicatos, mas por “efeito manada”, alastraram-se pela população, contabilizando-se quase mil ataques, resultando na prisão de adultos e na apreensão de adolescentes e até crianças, que atiraram pedras e bolinhas de gude nas janelas dos ônibus usando estilingues e armas de cano de pvc.
Esses ataques causaram danos físicos em diversos passageiros, além de danos patrimoniais e financeiros, por conta do desfalque da frota para o conserto dos ônibus vandalizados. Como resposta a essa onda de violência, para além do dano ao patrimônio público, os autores foram indiciados em homicídio tentado. Contudo, dificilmente esse enquadramento se mantém na pronúncia, e tampouco no veredicto do Conselho de Sentença. Para contornar essa dificuldade legal, foi apresentado o projeto de lei 3308/2025 no Congresso Nacional, prevendo penas de até 30 anos para esta modalidade de ataque.
De fato, a aprovação de leis penais duras, aliada ao maior rigor na investigação, costumam arrefecer as ondas momentâneas de crimes específicos. Foi assim na prática de discriminação contra migrantes nordestinos em São Paulo na década de 1990, após a inclusão no art. 1º da Lei nº 7.716/1989 do elemento “procedência nacional” pela Lei nº 9.459/1997, o que fez os casos diminuírem drasticamente nos anos seguintes.
De fato, as constantes alterações legais seguem o ritmo fluido do comportamento criminoso na sociedade, com aprovação de novos tipos penais e acréscimo de elementos especializantes, como nos casos de feminicídio e crimes relacionados à segurança privada. Contudo, a proliferação de novas leis nem sempre é acompanhada da revogação das leis anteriores, que se tornam ultrapassadas ou entram em desuso, criando restos legislativos inservíveis.
Podemos exemplificar com a qualificadora do art. 155, §5º e a majorante do art. 157, §2º, do CP, aplicadas no furto ou roubo de veículos transportados para outro estado ou para o exterior, condutas comuns na década de 1990, mas que arrefeceram após a inclusão pela Lei nº 9.426/1996.
Exemplos mais recentes são as qualificadoras de subtração de gado (art. 155, §6º, do CP, incluído pela Lei nº 13.330/2016), a majorante do roubo a caixas eletrônicos utilizando explosivos (art. 157, §2º-A, II, do CP, incluído pela Lei nº 13.654/2018) e a qualificadora de subtração de fios de cobre (art. 155, §4º, V, do CP, incluído pela Lei nº 15.181/2025).
A criação destes novos tipos penais ou destas circunstâncias e elementares punitivas no decorrer dos anos têm em comum o fato de simbolizarem respostas indutivas a ondas momentâneas de condutas desviantes, ainda que restritas a uma parte do território nacional, uma vez que o direito penal é de competência legislativa privativa da União.
Mas a atividade criminosa costuma migrar para outros setores, acompanhando as mudanças na sociedade. Com efeito, com o advento do sistema de pagamentos “pix”, o uso de papel moeda teve uma queda vertiginosa, o que contribuiu para a redução em igual medida dos roubos a caixas eletrônicos utilizando explosivos. Por outro lado, cresceu em igual medida a prática de golpes eletrônicos, levando o legislador a criar qualificadoras específicas para os crimes de furto e estelionato (arts. 155, §4º-B e 171, 2º-A, do CP, incluídos pela Lei nº 14.155/2021).
Essa postura legislativa causa uma proliferação de leis prolixas, abarrotadas de dispositivos supérfluos, sem derrogação ou abrogação. Apesar dessa profusão legislativa, ainda persistem lacunas legais em questões básicas.
Como exemplo, a Lei nº 14.967/2024 regulamentou a atividade da segurança privada em todo o país. De fato, os profissionais de segurança precisam de segurança jurídica para atuar. Porém, ao contrário da segurança privada, os profissionais de segurança pública possuem protocolos diferentes de atuação conforme o ente federativo, gerando incerteza na forma de abordagem da população.
Com efeito, há grande divergência entre as leis regentes e os precedentes jurisprudenciais acerca da atuação na segurança pública, gerando insegurança jurídica para os profissionais do setor. Nos EUA, há protocolos padronizados para atuação dos policiais em todo o país, o que deve ser replicado no Brasil, com a unificação do protocolo de atuação dos policiais e guardas em todo o território nacional.
Nesse desiderato, é possível recorrer aos “acordos interfederativos”, que são homologados pelo STF, como corolário da governança colaborativa. Acordos do gênero já foram firmados no Tema 1.234 (RE 1.366.243) na área de saúde pública, podendo ser estendidos para o setor de segurança pública, no âmbito das discussões da PEC 18/2025.
Antropologia e Sociologia Jurídicas Indutivas
O movimento indutivo não escapa à antropologia e sociologia jurídicas. Como exemplo, há um comportamento típico no Brasil comum a todas as classes sociais consistente em aproveitar a situação de caminhões tombados nas estradas para saquear a carga exposta.
Em abril de 2025, após um saque a caminhão tombado em Barra do Corda, no Maranhão, o delegado da cidade conseguiu recuperar parte da mercadoria furtada pela população, após divulgar um vídeo com ameaças de prisão, decorrendo daí a entrega voluntária da mercadoria na delegacia.
Essa conduta é impulsionada pela desordem aparente que decorre do acidente, bem como pela preferência do transporte de cargas rodoviário em detrimento do ferroviário, e até dos locais de tombamento, que ocorrem em geral fora do perímetro urbano, com pouca fiscalização.
É possível ainda vincular a disseminação dessa conduta por todo o país a aspectos histórico-culturais, tendo em conta os diversos programas de distribuição de alimentos à população em caminhões, operados por décadas pelas prefeituras municipais, desde Getúlio Vargas até meados da década de 1990, quando foram substituídos por transferências de recursos diretamente aos beneficiários.
Essa distribuição ainda é praticada por bandidos no Rio de Janeiro, que roubam caminhões e liberam a carga nas ruas das comunidades carentes, buscando exercer influência na população.
Em reforço ao perfil indutivo da legislação, foi apresentado o projeto de lei n° 4.104/2024, que busca majorar a pena para o roubo no caso de transporte de valores e de carga e a correspondente receptação, além do projeto de lei n° 3143/2023, que visa endurecer a punição para o saque de cargas em caminhões acidentados em rodovias.
No direito ambiental, a perspectiva antropocêntrica leva à prática de sacrifício de animais que matam humanos, uma prática comum em muitos países. Em 06/08/2015, uma ursa parda pesando meia tonelada devorou um turista no parque de Yellowstone, nos EUA. Na semana seguinte, o animal foi sacrificado e seus filhotes doados para um zoológico.
No Brasil, um fazendeiro foi devorado por uma onça de quase cem quilos em 22/04/2025, no estado do Mato Grosso do Sul. Três dias após o ataque, o animal retornou ao local para procurar o corpo do fazendeiro, ocasião em que foi capturada e levada a um Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) na capital, sem retorno para a mata.
Neste caso, ao invés do sacrifício, optou-se pela “prisão” do animal, muito em conta a conduta temerária da vítima, que havia sido avisada da presença da onça momentos antes do ataque. Essa punição aos animais advém do sentimento de justiça que ecoa nas comunidades após ataques com vítimas fatais.
Conclusão
Percebe-se a convivência de dois âmbitos penais claramente delimitados no Brasil. Um relacionado à tríade: pena prevista no tipo penal; pena imposta na sentença; e institutos de execução penal, como RDD, benefícios penais e progressão de regime. Essa tripla junção se aplica à maior parte da população carcerária do país, demarcando um perfil criminoso bem definido.
O outro âmbito é composto pelos “crimes administrativos”, como licitações fraudulentas, corrupção, exercício ilegal de profissão, crimes contra o consumidor, crimes contra a economia popular, estelionato, dentre outros, que raramente ampliam a massa carcerária nacional.
Com isso, o uso do Direito Penal para fazer política criminal precisa ser manejado com inteligência, pois a profusão legiferante e interpretativa não é garantia de proteção social, podendo minar as bases científicas deste ramo do direito.
Como exemplo, a Lei do Júri de 1938, que inspirou a adoção do Código de Processo Penal de 1941, ainda previa na sua competência o crime de duelo. Inobstante, dois temas estão pendentes de atuação legislativa visando conferir um efeito indutivo dissuasório a condutas nefastas que se tornaram comuns: as agressões e vandalismos em hospitais públicos e a erotização de crianças nas redes sociais.
Citações:
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira e Junior, Airto Chaves. Um Panorama sobre as Relações entre Política Criminal, Dogmática Penal, Criminologia e Processo Penal, Revista de Direito Brasileira, ano 13, vol. 36, 2023.
PUIG, Mir. “Estado, Pena y Delito”, p. 3.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, ed. Forense, 23ª edição, 2024, p. 9.
BETTIOL, Giuseppe. Bettiol, Rodolfo. Instituições de Direito Penal e Processo Penal, ed. Pillares, 1ª edição brasileira, 7ª edição italiana, 2008, p. 52.
CABALLERO, Jorge Frias. “El Proceso Ejecutivo del Delito”, 2° ed., Bibliográfica Argentina, 1956, p. 18.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. O Caráter Indutivo do Direito Penal e a Derrocada do Dogmatismo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 set 2025, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3869/o-carter-indutivo-do-direito-penal-e-a-derrocada-do-dogmatismo. Acesso em: 15 out 2025.
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
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