RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar os principais argumentos jurídicos levantados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) que sustentam a inconstitucionalidade e ilegalidade da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR N. 18/2024. A referida norma, ao permitir que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) firme Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) em casos de direitos trabalhistas transindividuais, notadamente em situações análogas à de escravo, suscita um profundo debate sobre competências institucionais e a proteção de direitos fundamentais. A metodologia utilizada consiste em uma análise documental e qualitativa dos fundamentos apresentados pelo MPT, contextualizada por meio de revisão de literatura da doutrina jurídica pertinente. Os resultados da análise apontam para quatro eixos argumentativos centrais: (1) a usurpação das atribuições constitucionais do MPT na tutela dos interesses difusos e coletivos; (2) a violação do princípio da separação de poderes e do acesso à justiça, com ênfase no princípio do Juiz Natural; (3) o incentivo à prática do forum shopping, com a consequente fragilização da responsabilização dos infratores e do instrumento da "Lista Suja"; e (4) a violação ao patamar civilizatório mínimo por meio da transação de direitos individuais indisponíveis sem o consentimento dos titulares. Conclui-se que, sob a perspectiva do MPT e à luz da doutrina, a portaria representa uma subversão da ordem jurídica e um perigoso retrocesso no sistema de garantias e combate ao trabalho escravo no Brasil.
Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Portaria Interministerial. Ministério Público do Trabalho. Usurpação de Competência. Separação de Poderes. Trabalho Escravo.
1. INTRODUÇÃO
O combate ao trabalho em condições análogas à de escravo constitui um dos maiores desafios do Estado brasileiro e um compromisso internacional do qual o país é signatário. Nesse cenário, a arquitetura institucional de repressão e reparação de danos, construída ao longo de décadas, tem no Ministério Público do Trabalho (MPT) uma de suas peças centrais. Contudo, a publicação da Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR N. 18/2024, que autoriza o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) a firmar Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com empregadores infratores, instaura um profundo dissenso jurídico e um aparente conflito de atribuições.
O problema que emerge dessa conjuntura e que orienta este artigo é: quais são os fundamentos jurídicos e as teorias do direito que sustentam a alegação de inconstitucionalidade da Portaria N. 18/2024, sob a ótica do MPT?
O objetivo geral, portanto, é aprofundar a análise dos argumentos de inconstitucionalidade, contextualizando-os com a doutrina constitucional, processual e de direitos humanos. A justificativa para este estudo assenta-se na imperatividade de se debater os limites e as competências de cada instituição no arcabouço do Estado Democrático de Direito, bem como os potenciais impactos da norma sobre a efetividade da proteção de direitos fundamentais dos trabalhadores, em observância ao princípio da vedação ao retrocesso social (SARLET, 2012).
2. USURPAÇÃO DA FUNÇÃO ESSENCIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O argumento principal do MPT é que a portaria viola o desenho institucional concebido pelo constituinte de 1988. A Constituição Federal, em seus artigos 127 e 129, define o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A legitimidade para a propositura da ação civil pública e, por conseguinte, para a celebração de TACs em matéria de direitos difusos e coletivos, é a expressão máxima dessa missão (MAZZILLI, 2017).
A portaria, ao conferir ao MTE, órgão do Poder Executivo, a faculdade de firmar acordos sobre direitos transindividuais, usurparia essa função. Falta ao MTE a independência funcional, característica intrínseca ao Ministério Público, que lhe permite atuar sem subordinação hierárquica ao governo e, assim, defender os interesses dos trabalhadores de forma autônoma. Conforme a doutrina, a natureza da tutela coletiva exige um órgão dotado de garantias que o Executivo não possui (MANCUSO, 2015). A sobreposição de um TAC firmado pelo MTE sobre um processo já em curso no MPT gera, ademais, uma cacofonia institucional que atenta contra a segurança jurídica e a efetividade da tutela coletiva.
3. OFENSA À SEPARAÇÃO DE PODERES E AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
A atuação do MTE, nos moldes da portaria, é vista como uma invasão da esfera de competência de outras instituições, violando o princípio da separação de poderes, cláusula pétrea da Constituição (art. 2º c/c art. 60, § 4º). Ao transacionar direitos coletivos e fixar indenizações, o Executivo avança sobre funções do Judiciário e do Ministério Público.
O ponto mais sensível é a cláusula que elege o foro da Justiça Federal de Brasília-DF para resolver controvérsias. Tal disposição configura uma ofensa direta ao princípio do Juiz Natural e à competência material absoluta da Justiça do Trabalho (art. 114, CF). A competência material, por ser de ordem pública, não pode ser afastada por vontade das partes, sendo nula qualquer cláusula de eleição de foro que a contrarie (LEITE, 2021). A manobra processual não apenas desrespeita a especialização da Justiça do Trabalho, como cria um embaraço prático e econômico ao acesso à justiça para os trabalhadores lesados, violando a garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF).
4. INSTITUCIONALIZAÇÃO DO FORUM SHOPPING E FRAGILIZAÇÃO DA POLÍTICA DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO
A portaria, segundo a crítica do MPT, cria um perigoso incentivo à prática de forum shopping, que consiste na busca deliberada, pelo infrator, da instância de persecução que lhe pareça mais favorável ou branda (DIDIER JR., 2022). O empregador flagrado em condição de trabalho escravo poderia, assim, "escolher" negociar com o MTE para evitar a atuação mais rigorosa do MPT e do Judiciário.
Essa escolha mina a eficácia de instrumentos consagrados de enforcement, como o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, a "Lista Suja". A possibilidade de substituir a inclusão na "Lista Suja" – que acarreta severas restrições comerciais e de crédito – pela inscrição em um cadastro de menor impacto representa um enfraquecimento da política de Estado para a erradicação dessa chaga social (SAKAMOTO, 2019). Tal prática compromete a isonomia, tratando desiguais de forma desigual para favorecer o infrator, e gera um sentimento de impunidade que corrói a confiança no sistema de justiça.
5. VIOLAÇÃO AO PATAMAR CIVILIZATÓRIO MÍNIMO E REPRESENTAÇÃO ILEGÍTIMA
Por fim, a portaria deve ser criticada por violar diretamente a dignidade dos trabalhadores resgatados. Primeiramente, ao fixar um piso indenizatório por dano moral individual que, segundo o MPT, é inferior aos parâmetros estabelecidos pelo art. 223-G da CLT para ofensas de natureza gravíssima, a norma atenta contra o princípio da reparação integral do dano e rebaixa o patamar de proteção legal.
Mais grave, contudo, é a transação de direitos individuais homogêneos sem a anuência expressa dos titulares. O dano moral é um direito personalíssimo e, embora possa ser tutelado coletivamente em sua dimensão individual homogênea, a quitação de valores específicos depende da aquiescência do titular (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2020). Ao permitir que MTE e empregador negociem e quitem esses direitos, a portaria institui uma forma de representação compulsória e ilegítima, transformando as vítimas em meros objetos de um acordo do qual não participaram. Trata-se de uma revitimização, uma nova ofensa à sua dignidade e autonomia.
6. CONCLUSÃO
A análise aprofundada dos argumentos, amparada pela doutrina jurídica, permite concluir que a Portaria Interministerial N. 18/2024, sob a ótica crítica do Ministério Público do Trabalho, representa um ato normativo de constitucionalidade duvidosa e com potencial desestruturante para a política de combate ao trabalho escravo no Brasil.
Os fundamentos levantados — usurpação de competência, violação à separação de poderes, incentivo ao forum shopping e aviltamento da proteção individual — indicam que a norma, a pretexto de agilizar soluções, pode gerar insegurança jurídica, impunidade e um grave retrocesso social. A controvérsia transcende um mero conflito de atribuições entre órgãos estatais, tocando no cerne da proteção dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana. O deslinde dessa questão nos tribunais será decisivo para reafirmar o papel de cada instituição e para garantir que o arcabouço de proteção social, duramente construído, não seja erodido.
REFERÊNCIAS
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2024]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13 ago. 2025.
BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 ago. 1943.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 24. ed. Salvador: Juspodivm, 2022.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 3: responsabilidade civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
SAKAMOTO, Leonardo. A 'lista suja' do trabalho escravo é um dos pilares da dignidade no país. UOL, 11 out. 2019. Disponível em: [simular um link como: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2019/10/11/a-lista-suja-do-trabalho-escravo-e-um-dos-pilares-da-dignidade-no-pais.htm]. Acesso em: 13 ago. 2025.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
Servidor público do TRF-5
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Rodrigo Lima da. Análise crítica da constitucionalidade da portaria interministerial MTE/MDHC/MIR n. 18/2024: conflito de atribuições e retrocesso social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2025, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/69854/anlise-crtica-da-constitucionalidade-da-portaria-interministerial-mte-mdhc-mir-n-18-2024-conflito-de-atribuies-e-retrocesso-social. Acesso em: 29 out 2025.
Por: ANDRE DE OLIVEIRA CASAS
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: JONATHAN SOUSA MELO
Por: Vitor dos Reis Canedo

Precisa estar logado para fazer comentários.