RESUMO: O presente artigo analisa a evolução das funções institucionais da Defensoria Pública à luz da Constituição Federal de 1988, em especial após o advento da Emenda Constitucional nº 80/2014. Examina-se a distinção clássica entre funções típicas e atípicas, bem como entre funções tradicionais e não tradicionais, demonstrando a superação do critério exclusivamente econômico como elemento definidor do conceito de “necessitado”. O trabalho defende a ampliação da legitimidade constitucional da Defensoria Pública para atuar também em defesa de hipervulneráveis, ainda que não economicamente carentes, com base na interpretação ampliativa do art. 134 da Constituição Federal.
Palavras-Chave: Defensoria Pública – Funções Institucionais – Hipossuficiência – Direitos Humanos – Vulnerabilidade.
ABSTRACT: This article analyzes the evolution of the institutional functions of the Public Defender's Office under the 1988 Brazilian Federal Constitution, especially following Constitutional Amendment No. 80/2014. It examines the classical distinction between typical and atypical functions, as well as between traditional and non-traditional functions, demonstrating the overcoming of the exclusively economic criterion as a defining element of the concept of “needy” individuals. The paper argues for an expanded constitutional legitimacy of the Public Defender's Office to act in defense of the hypervulnerable, even those not economically disadvantaged, based on a broad interpretation of Article 134 of the Federal Constitution.
Keywords: Public Defender's Office - Institutional functions - Economic insufficiency - Human rights – Vulnerability.
1.INTRODUÇÃO
A Defensoria Pública, conforme delineada nos arts. 134 e 5º, inciso LXXIV, da Constituição da República de 1988, é a instituição permanente incumbida da promoção dos direitos humanos e da defesa, em todos os graus, dos necessitados. Tradicionalmente, essa atuação esteve vinculada à condição econômica do usuário, identificando-se como necessitado aquele que não possui recursos para demandar em juízo.
O presente artigo propõe uma reflexão sobre o redimensionamento das funções institucionais da Defensoria Pública, especialmente após a EC nº 80/2014, que ampliou a concepção de necessidade jurídica para além da hipossuficiência econômica. Busca-se, assim, identificar o novo contorno das funções típicas e atípicas, bem como a distinção entre funções tradicionais e não tradicionais, à luz da nova hermenêutica constitucional e do papel da Defensoria na defesa dos hipervulneráveis.
Além da evolução normativa, o presente estudo analisará o entendimento dos tribunais superiores acerca da interpretação do conceito de vulnerável e a legitimidade de atuação da Defensoria Pública.
1.A visão clássica: funções típicas e atípicas da Defensoria Pública
Tradicionalmente, a doutrina classificava as atribuições da Defensoria Pública em funções típicas — aquelas voltadas aos economicamente hipossuficientes — e funções atípicas — exercidas em hipóteses não condicionadas à comprovação de insuficiência financeira. Essa dicotomia foi extraída da conjugação entre o caput do art. 134 e o inciso LXXIV do art. 5º da CF/88.
A título ilustrativo, cita-se a atuação da Defensoria Pública na condição de curador especial, nos termos do art. 72, parágrafo único, do Código de Processo Civil, como exercício de função atípica.
2.A EC nº 80/1994 e a nova tipicidade constitucional
A tradicional divisão entre funções institucionais típicas e atípicas da Defensoria Pública teve origem na interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais que tratam da Instituição, especialmente os arts. 134 e 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988. Nessa leitura inicial, compreendia-se como função típica toda atividade voltada à assistência jurídica integral e gratuita prestada a pessoas economicamente hipossuficientes, ao passo que qualquer atuação desvinculada desse critério era alocada como função atípica.
Entretanto, esse marco classificatório sofreu relevante inflexão com a promulgação da Emenda Constitucional nº 80 de 2014. O referido diploma normativo, ao alterar a redação do caput do art. 134 da Carta Magna, ampliou o espectro das atribuições constitucionais da Defensoria Pública, reconhecendo expressamente, além da assistência jurídica, o dever institucional de promoção dos direitos humanos e de defesa do regime democrático.
A partir desse novo parâmetro constitucional, funções antes compreendidas como meramente atípicas passaram a ostentar natureza típica, na medida em que encontram respaldo direto no texto constitucional. Não mais se pode restringir a tipicidade funcional à atuação em favor dos economicamente necessitados. A Constituição passa, então, a reconhecer como funções essenciais da Defensoria Pública aquelas voltadas à concretização de direitos fundamentais, à atuação coletiva e à proteção institucional da democracia.
Com isso, atribuições como a tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, a defesa de grupos vulnerabilizados independentemente da condição econômica, e a atuação em espaços de controle social e político, deixam de ocupar o espaço da “atipicidade” e passam a compor o núcleo essencial da missão constitucional da Instituição. São, pois, funções modernamente típicas, porquanto derivadas diretamente do novo caput do art. 134 da Constituição da República.
Por outro lado, as funções que, embora relevantes, não encontrem previsão explícita no texto constitucional e decorram exclusivamente da Lei Complementar nº 80/1994 — como, por exemplo, a curadoria especial ou a atuação obrigatória nos Juizados Especiais — devem ser compreendidas como funções modernamente atípicas, uma vez que, embora legalmente atribuídas, essas atividades não integram o rol constitucional delineado pela EC nº 80/2014.
Diante disso, pode-se afirmar que, atualmente, todas as funções previstas expressamente no art. 134 da Constituição Federal devem ser reconhecidas como funções típicas em sua concepção moderna, ou ainda, como funções tradicionais. Já aquelas funções previstas apenas na legislação infraconstitucional, e que não guardam correspondência direta com a Constituição, assumem natureza atípica ou não tradicional, ainda que desempenhadas de forma cotidiana e relevante pela Defensoria Pública.
3.A nova roupagem dada pela EC 80/2014 e o conceito de vulnerável
Como visto, a Constituição Federal de 1988 conferiu à Defensoria Pública a atribuição de promover a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados. Em sua leitura tradicional, o conceito de “necessitado” foi, por muito tempo, atrelado exclusivamente à condição de pobreza, ou seja, à ausência de recursos financeiros para custear as despesas inerentes ao acesso à justiça.
Esse entendimento encontra respaldo histórico na Lei nº 1.060/1950, que, ao dispor sobre a assistência judiciária, estabeleceu parâmetros para a identificação da hipossuficiência econômica e disciplinou o procedimento para sua comprovação. Ainda que atualmente revogada, essa norma foi de extrema importância para a consolidação do critério econômico como baliza inicial para a atuação institucional da Defensoria Pública no desempenho de suas funções típicas — também chamadas de funções tradicionais.
Sob tal perspectiva, somente poderia ser considerado destinatário legítimo dos serviços da Defensoria Pública aquele que comprovasse, por meio de declaração ou outro instrumento hábil, não possuir condições financeiras de arcar com os custos do processo sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. A aferição dessa condição, conforme ainda ocorre nos dias atuais, pode ser feita com base em critérios estabelecidos por cada Defensoria Pública estadual ou pela Defensoria Pública da União, observadas as peculiaridades locais e administrativas.
Entretanto, limitar a atuação da Defensoria Pública à carência econômica do indivíduo não se mostra mais compatível com a evolução constitucional e legislativa sobre o tema. Ainda que a insuficiência de recursos se mantenha como importante indicador de vulnerabilidade, ela não esgota o conceito de “necessitado” acolhido pela Constituição da República. Ao contrário: a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais e da legislação infraconstitucional revela que existem outras formas de vulnerabilidade jurídica igualmente relevantes, que também ensejam a atuação da Instituição.
Nesse cenário, passa-se a reconhecer que o conceito de necessidade deve ser compreendido de maneira mais ampla e plural, contemplando não apenas o necessitado econômico, mas também o necessitado jurídico ou necessitado organizacional. Trata-se de sujeitos ou grupos sociais cuja situação de fragilidade decorre de fatores estruturais, históricos ou relacionais que os impedem de exercer plenamente seus direitos, ainda que não estejam, necessariamente, em situação de pobreza.
O conceito de necessitado jurídico ou organizacional abrange, portanto, categorias sociais que, embora não privadas de recursos financeiros, encontram barreiras reais para o exercício de sua cidadania, como crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, mulheres vítimas de violência doméstica, pessoas privadas de liberdade, povos originários, consumidores vulneráveis e usuários de serviços públicos essenciais — como saúde, educação, assistência social, transporte, saneamento básico, entre outros.
Esses grupos, muitas vezes invisibilizados pelas políticas públicas ou excluídos dos processos decisórios, detêm proteção jurídica específica, imposta ao Estado e à sociedade como um todo, sendo plenamente legítima a atuação da Defensoria Pública em sua defesa. Importa destacar que a atuação em favor desses públicos não depende da demonstração de hipossuficiência econômica, pois está fundada em uma concepção alargada de vulnerabilidade e na missão constitucional da Defensoria Pública de promover os direitos humanos e o regime democrático.
Essa ampliação do conceito de necessitado também foi recepcionada no plano legal. A Lei Complementar nº 80/1994, com a redação conferida pela Lei Complementar nº 132/2009, consolidou essa perspectiva ao prever expressamente como função institucional da Defensoria Pública a defesa dos interesses individuais e coletivos de diversos grupos vulneráveis. Assim dispõe o inciso XI do art. 4º:
Art. 4º, inciso XI, da LC nº 80/1994 - Exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado.
Vê-se, pois, que o conceito de “necessitado”, hoje, ultrapassa a barreira da carência material e passa a incluir todos aqueles sujeitos que, em razão de sua condição pessoal ou social, encontram-se em situação de desvantagem no plano jurídico, político ou institucional. A atuação da Defensoria Pública, nesse contexto, reafirma-se como instrumento essencial à promoção da equidade e à realização dos direitos fundamentais de todos os vulnerabilizados.
Nesse aspecto, o Superior Tribunal de Justiça já reconhece a evolução do conceito de necessitado e a legitimidade da Defensoria Pública para a defesa dos HIPERVULNERÁVEIS:
A Defensoria Pública tem legitimidade para propor ACP em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores idosos que tiveram plano de saúde reajustado em razão da mudança de faixa etária, ainda que os titulares não sejam carentes de recursos econômicos. A atuação primordial da Defensoria Pública, sem dúvida, é a assistência jurídica e a defesa dos necessitados econômicos. Entretanto, também exerce suas atividades em auxílio a necessitados jurídicos, não necessariamente carentes de recursos econômicos. A expressão "necessitados" prevista no art. 134, caput, da CF/88, que qualifica e orienta a atuação da Defensoria Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em sentido amplo. Assim, a Defensoria pode atuar tanto em favor dos carentes de recursos financeiros como também em prol do necessitado organizacional (que são os "hipervulneráveis").
STJ. Corte Especial. EREsp 1192577- RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 21/10/2015 (Info 573)
Essa compreensão jurisprudencial, somada à evolução normativa e ao amadurecimento institucional da Defensoria Pública, consolida uma mudança paradigmática no trato da expressão “necessitados”. Não se trata mais de um conceito rigidamente atrelado à carência financeira, mas de uma categoria jurídica dinâmica, que incorpora múltiplas formas de vulnerabilidade reconhecidas pela ordem constitucional. Com isso, amplia-se o alcance da atuação defensiva para abarcar, com legitimidade e respaldo constitucional, todos os sujeitos e coletividades que, por sua condição de marginalização ou desproteção, necessitam da presença ativa e qualificada da Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático.
CONCLUSÕES
A Defensoria Pública, concebida constitucionalmente como instrumento de efetivação do acesso à justiça, vem passando por um processo contínuo de ampliação e redefinição de suas atribuições institucionais. A tradicional vinculação entre sua atuação e a hipossuficiência econômica, embora ainda relevante em diversos contextos, já não é mais suficiente para abarcar a complexidade dos sujeitos e das situações que demandam sua intervenção.
A Emenda Constitucional nº 80/2014 representa um divisor de águas nesse cenário, ao consolidar a promoção dos direitos humanos e a defesa do regime democrático como funções expressamente típicas da Defensoria Pública. Com isso, rompe-se com a leitura restritiva que limitava sua atuação aos economicamente necessitados, reconhecendo-se como destinatários legítimos também os juridicamente vulneráveis, independentemente da condição financeira.
O desenvolvimento dessa nova perspectiva funcional — marcada pela superação da dicotomia tradicional entre funções típicas e atípicas — revela que a Defensoria Pública se firma como uma instituição voltada à defesa de sujeitos e grupos vulnerabilizados sob múltiplas formas: econômica, social, jurídica, cultural e institucional.
Assim, as chamadas funções modernamente típicas passam a compreender, não apenas a assistência jurídica gratuita, mas também a atuação em favor de direitos coletivos, minorias políticas, segmentos invisibilizados e hipervulneráveis. Do mesmo modo, reconhece-se que a institucionalidade da Defensoria Pública se estrutura, cada vez mais, a partir de uma lógica solidária, democratizante e emancipatória.
Consolidar esse novo paradigma funcional é um imperativo para que a Defensoria Pública continue a cumprir seu papel no fortalecimento do Estado Democrático de Direito, atuando não apenas como garantidora de direitos formais, mas como protagonista ativa na construção de uma sociedade materialmente justa, igualitária e plural.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 02 de junho 2025.
BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp80.htm. Acesso em 02 de junho 2025.
BRASIL. Lei nº 1.060, de 05 de fevereiro de 1950. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1060.htm. Acesso em 02 de junho de 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EREsp 1192577/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, julgado em 21 out. 2015, DJe 12 nov. 2015. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=EREsp%201192577. Acesso em: 02 de junho de 2025.
Gradudado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe - UFS. Pós-Graduado em Direito Público e em Direito Processual pelo Instituto Elpídio Donizetti. Defensor Público do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTA, Diego Souza Carvalho. A evolução constitucional das funções institucionais da Defensoria Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2025, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/68788/a-evoluo-constitucional-das-funes-institucionais-da-defensoria-pblica. Acesso em: 14 ago 2025.
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