Msc CLAUDIA MARIA NOBRE LISBOA[1]
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo analisa a responsabilidade civil no contexto das redes sociais, com enfoque nos limites da liberdade de expressão, na atuação das plataformas digitais e na proteção dos direitos da personalidade. O estudo aborda a legislação pertinente, incluindo o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), o Código Civil e a jurisprudência recente do STF e STJ, discutindo os mecanismos de moderação de conteúdo, notificação judicial e dever de cooperação. A pesquisa, de caráter qualitativo e bibliográfico, demonstra que a liberdade de expressão, embora essencial, encontra limites constitucionais quando ameaça a honra, imagem ou integridade moral de terceiros. Os resultados evidenciam que a efetiva proteção contra abusos depende não apenas de normas jurídicas, mas também da aplicação diligente pelas plataformas e da conscientização digital dos usuários. O trabalho amplia a discussão ao relacionar a responsabilidade civil com a função social da comunicação, a proteção de dados pessoais e a inteligência artificial na moderação de conteúdo, propondo uma abordagem integrada entre Direito, tecnologia e ética digital.
Palavras-chave: Responsabilidade civil; redes sociais; liberdade de expressão; direitos da personalidade; plataformas digitais; Inteligência artificial.
ABSTRACT: This article analyzes civil liability in the context of social media, focusing on the limits of freedom of expression, the role of digital platforms, and the protection of personality rights. The study addresses relevant legislation, including the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet (Law No. 12.965/2014), the Civil Code, and recent case law from the Supreme Federal Court (STF) and the Superior Court of Justice (STJ), discussing content moderation mechanisms, judicial notifications, and the duty of cooperation. The qualitative and bibliographic research demonstrates that freedom of expression, although essential, has constitutional limits when it threatens honor, image, or moral integrity. The results show that effective protection against abuses depends not only on legal norms but also on diligent enforcement by platforms and users’ digital awareness. The article expands the discussion by integrating the social function of civil liability, data protection, and artificial intelligence in content moderation, proposing a multidisciplinary approach between Law, technology, and ethics.
Keyword: Civil liability; social media; freedom of expression; personality rights; digital platforms.
1.INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta os resultados da pesquisa sobre a responsabilidade civil nas redes sociais, com foco nos limites da liberdade de expressão, na moderação de conteúdo e na corresponsabilidade das plataformas digitais. O estudo busca compreender de que forma o ordenamento jurídico brasileiro tem equilibrado a proteção à liberdade de manifestação do pensamento com a necessidade de responsabilização por danos decorrentes de publicações ilícitas no ambiente virtual.
A pesquisa se justifica por sua relevância jurídica e social. Sob o ponto de vista jurídico, o tema envolve a aplicação prática de princípios constitucionais fundamentais, como a liberdade de expressão, a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da imagem. Do ponto de vista social, a investigação se mostra essencial diante da ampliação do uso das redes sociais como espaço de interação, debate e disseminação de informações, o que potencializa tanto o exercício democrático da comunicação quanto o risco de discursos abusivos, desinformação e violações de direitos da personalidade.
O problema da pesquisa pode ser sintetizado na seguinte questão:
“Em que medida a liberdade de expressão nas redes sociais pode ser limitada para responsabilizar civilmente usuários e plataformas sem comprometer o núcleo essencial desse direito fundamental?”
A hipótese central é de que, embora a liberdade de expressão seja pilar do Estado Democrático de Direito, ela não possui caráter absoluto, devendo coexistir com mecanismos de responsabilização civil que assegurem a proteção à dignidade e aos direitos da personalidade. Além disso, a pesquisa parte da premissa de que as plataformas digitais possuem papel relevante na prevenção e mitigação de danos, por meio da moderação de conteúdo e do cumprimento de deveres legais de vigilância e cooperação.
O referencial teórico adotado apoia-se nas contribuições de Anderson Schreiber (2023), que analisa os contornos da responsabilidade civil em ambiente digital; Patrícia Peck Pinheiro (2022), que discute a proteção de dados e a ética na comunicação online; e Danilo Doneda (2021), que aborda os direitos da personalidade e a governança das plataformas no contexto da sociedade da informação. Esses autores fornecem fundamentos doutrinários para compreender a tensão entre liberdade de expressão e responsabilidade civil no cenário contemporâneo.
A metodologia utilizada é de caráter exploratório e qualitativo, com base em pesquisa bibliográfica e documental, envolvendo a análise da legislação nacional — especialmente a Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 e o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) —, além de jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que consolidam entendimentos sobre o tema.
O objetivo geral da pesquisa é analisar a responsabilidade civil decorrente do uso abusivo da liberdade de expressão nas redes sociais e a corresponsabilidade das plataformas digitais. Os objetivos específicos são: (i) examinar os limites constitucionais da liberdade de expressão e seus reflexos no ambiente virtual;
(ii) avaliar a responsabilidade civil dos usuários por publicações lesivas à honra e imagem de terceiros;(iii) investigar a corresponsabilidade das plataformas digitais na moderação e remoção de conteúdos ilícitos; e (iv) discutir a função social da responsabilidade civil e seu papel preventivo; e (v) propor diretrizes jurídicas e educacionais que promovam uma cultura digital ética e responsável.
Assim, o trabalho está dividido em seis seções: a primeira apresenta os aspectos conceituais e a evolução histórica da responsabilidade civil aplicada ao ambiente digital; A segunda analisa o marco normativo e a corresponsabilidade das plataformas. A terceira discute a função social da responsabilidade civil e os limites constitucionais da liberdade de expressão. A quarta examina a proteção de dados, inteligência artificial e moderação algorítmica. A quinta trata da educação digital e prevenção de danos; e, por fim, o sexto apresenta casos práticos e jurisprudência recente, culminando com as considerações finais.
Por fim, a hipótese de pesquisa indica que, embora o sistema jurídico brasileiro tenha avançado na definição de critérios de responsabilização, a efetividade da tutela civil nas redes sociais ainda depende da consolidação de parâmetros mais claros de moderação, de cooperação entre Estado e plataformas, e da educação digital dos usuários, de modo a compatibilizar o livre exercício da expressão com a proteção da dignidade humana.
2.ASPECTOS CONCEITUAIS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DIGITAL
2.1 Aspectos Conceituais da responsabilidade civil digital
A responsabilidade civil digital é o dever jurídico de reparar danos decorrentes de condutas ilícitas praticadas no ambiente virtual, em especial nas redes sociais. Trata-se de uma ampliação do conceito clássico de responsabilidade civil, que passa a abranger também as novas formas de lesão à honra, à imagem e à privacidade resultantes das interações digitais.
A responsabilidade civil é um dos pilares do Direito privado, constituindo o mecanismo jurídico destinado à reparação de danos injustamente causados a terceiros. Conforme o art. 927 do Código Civil, “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. No ambiente digital, esse princípio mantém-se íntegro, mas adquire contornos inéditos em razão das peculiaridades da internet — sua natureza global, descentralizada e de difícil controle.
A chamada responsabilidade civil digital corresponde à aplicação dos fundamentos clássicos da responsabilidade civil às relações e condutas praticadas em meio eletrônico, especialmente nas redes sociais. Segundo Anderson Schreiber (2023), trata-se de um campo que demanda a “releitura dos institutos tradicionais à luz das novas formas de sociabilidade digital”, pois o alcance e a permanência das informações na internet potencializam o dano e dificultam sua reparação integral.
Nesse cenário, a internet tornou-se não apenas um espaço de expressão, mas também de conflito. Publicações ofensivas, cyberbullying, revenge porn, fake news e ataques de ódio configuram novas modalidades de lesão aos direitos da personalidade. Tais condutas, ao atingirem valores fundamentais como honra, imagem e intimidade, exigem respostas jurídicas adequadas, capazes de equilibrar a liberdade comunicacional e a dignidade humana.
Patrícia Peck Pinheiro (2022) observa que “a responsabilidade civil no ambiente digital deve assumir caráter não apenas reparatório, mas preventivo”, estimulando comportamentos éticos e conscientes nas interações online. Assim, mais do que punir, o Direito busca promover uma cultura de responsabilidade compartilhada, na qual usuários e plataformas compreendam seus deveres sociais e jurídicos.
Conforme a doutrina de Sérgio Cavalieri Filho (2022), a função preventiva da responsabilidade civil ganha centralidade em ambientes digitais, pois a irreversibilidade dos danos informacionais — como a divulgação indevida de dados pessoais ou a difamação viralizada — torna a reparação posterior insuficiente. O Direito, portanto, deve atuar de modo pedagógico, desestimulando o abuso da liberdade de expressão e reforçando o uso ético da tecnologia.
Em síntese, a responsabilidade civil digital configura-se como um instrumento jurídico essencial para assegurar a convivência harmônica nas redes sociais, equilibrando direitos individuais e coletivos, liberdade e segurança, expressão e respeito.
2.2 Evolução Histórica da Responsabilidade Civil no Ambiente Digital
A história da responsabilidade civil digital acompanha a própria evolução da internet e das tecnologias de comunicação. No início da década de 1990, quando a rede ainda era predominantemente informativa, as questões jurídicas giravam em torno da autoria de conteúdos e da proteção de direitos autorais. Com o advento das redes sociais, blogs e fóruns, a problemática deslocou-se para o campo da responsabilidade por danos morais e ofensas à honra.
No Brasil, a jurisprudência passou a enfrentar esses desafios antes mesmo da existência de legislação específica. Durante os anos 2000, as decisões judiciais aplicavam de forma analógica os dispositivos do Código Civil e da Constituição Federal, reconhecendo o dever de reparar danos decorrentes de publicações ofensivas na internet.
O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) representou um divisor de águas nesse processo. A lei consagrou princípios fundamentais como a liberdade de expressão, a proteção da privacidade e a neutralidade da rede, além de estabelecer regras claras sobre a responsabilidade dos provedores de conteúdo. O art. 19 introduziu o sistema do notice and takedown judicial, determinando que as plataformas só poderiam ser responsabilizadas civilmente caso, após ordem judicial, não removessem o conteúdo ilícito.
Posteriormente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) ampliou o debate sobre responsabilidade digital ao incluir a proteção dos dados pessoais como um novo direito fundamental. Danilo Doneda (2021) ressalta que a LGPD “estabeleceu uma cultura de prevenção e governança informacional”, impondo às empresas o dever de adotar medidas técnicas e administrativas para evitar danos decorrentes do tratamento inadequado de dados.
A partir de 2018, com o aumento da desinformação e dos ataques coordenados nas redes, emergiram novas discussões legislativas, como o Projeto de Lei nº 2.630/2020 (PL das Fake News), que busca regular a transparência e a responsabilidade das plataformas. Embora ainda em debate, o PL reflete a preocupação do Estado brasileiro com o impacto social das práticas de manipulação informacional.
Assim, observa-se que a responsabilidade civil digital evoluiu de um modelo reativo — centrado na reparação após o dano — para um modelo preventivo e compartilhado, que valoriza a ética digital, a cooperação e a governança de dados como pilares de um ambiente virtual mais seguro e democrático.
3 MARCO NORMATIVO E CORRESPONSABILIDADE DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
3.1 Marco Normativo
No Brasil, a legislação que regula a responsabilidade civil das plataformas digitais é o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), popularmente conhecido como a “Constituição da Internet”. Essa norma, originada do Projeto de Lei nº 2.126/2011, estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da rede no território nacional, estruturando as bases jurídicas da comunicação digital e da proteção de direitos no ambiente online.
O Marco Civil da Internet dispõe que as plataformas e provedores não são automaticamente responsáveis pelo conteúdo postado por seus usuários, pois atuam, em regra, como intermediários técnicos da comunicação — responsáveis apenas pela transmissão, armazenamento ou hospedagem de dados. Assim, a responsabilidade não é objetiva nem imediata, mas depende do cumprimento de determinadas condições legais.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece de forma expressa que:
“Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.”
Esse dispositivo consagra o modelo conhecido como notice and takedown judicial, no qual a responsabilidade das plataformas é subsidiária e condicionada à inércia após determinação judicial. O objetivo é equilibrar dois valores fundamentais: de um lado, a liberdade de expressão; de outro, a proteção dos direitos da personalidade, como a honra e a imagem.
Conforme observa Anderson Schreiber (2023), o legislador buscou evitar a censura prévia e o bloqueio arbitrário de conteúdos, garantindo que a moderação ocorra sob supervisão judicial. Por outro lado, quando a plataforma é devidamente notificada e mantém inerte o conteúdo ilícito, passa a responder solidariamente pelos danos causados à vítima.
De modo complementar, Patrícia Peck (2022) ressalta que o Marco Civil inovou ao introduzir o dever de cooperação entre usuários, provedores e o Estado, impondo às plataformas a obrigação de adotar políticas internas de moderação, canais de denúncia e mecanismos de resposta célere. Tais medidas preventivas reforçam a função social da responsabilidade civil no ambiente digital.
Por sua vez, Tartuce (2024) argumenta que o regime do art. 19 deve ser interpretado à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da boa-fé objetiva, de modo que a isenção de responsabilidade não seja utilizada como pretexto para a omissão das plataformas diante de conteúdos manifestamente abusivos.
Dessa forma, o Marco Civil da Internet consolidou um modelo jurídico equilibrado, que preserva a liberdade de expressão, mas também garante instrumentos eficazes de reparação civil, promovendo um ambiente digital mais seguro, transparente e responsável
A LGPD complementa esse sistema ao introduzir deveres de transparência, segurança e prevenção. As plataformas passam a ser vistas não apenas como intermediárias neutras, mas como agentes ativos na gestão de dados e na proteção da privacidade dos usuários. A negligência em adotar medidas de segurança ou em informar incidentes pode gerar responsabilidade civil e administrativa.
No plano internacional, normas como o Digital Services Act (União Europeia) e a Section 230 do Communications Decency Act (EUA) influenciam o debate. Enquanto o modelo americano prioriza a imunidade das plataformas, o europeu adota uma abordagem de “responsabilidade proporcional”, exigindo mecanismos internos de monitoramento e relatórios de transparência. O Brasil busca um caminho intermediário, equilibrando liberdade de expressão e dever de cooperação.
3.2 Corresponsabilidade das Plataformas Digitais
A corresponsabilidade das plataformas digitais é um dos temas mais complexos e atuais do Direito Digital. Trata-se da possibilidade de que empresas como Meta, Google, X ou TikTok respondam solidariamente pelos danos causados por conteúdo gerado por usuários, quando se omitem diante de notificações ou agem com negligência.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem papel central na consolidação dessa doutrina. No REsp 1.660.168/RJ, a Corte decidiu que o provedor que, após ser notificado judicialmente, mantém conteúdo ofensivo, responde solidariamente pelos danos. Já no AgInt no AREsp 1.606.245/SP, o Tribunal reafirmou que o provedor tem o dever de identificar usuários infratores quando houver ordem judicial fundamentada, não sendo admissível alegar impossibilidade técnica.
Conforme Patrícia Peck Pinheiro (2022), as plataformas digitais devem adotar políticas internas de moderação, canais de denúncia e termos de uso acessíveis e transparentes. A ausência de medidas efetivas pode configurar omissão culposa, especialmente em casos de discurso de ódio, desinformação ou exposição de dados pessoais.
No plano comparado, o Digital Services Act europeu impõe às plataformas o dever de mitigar riscos sistêmicos e garantir a rastreabilidade de conteúdos ilegais. No Brasil, discute-se no PL das Fake News a criação de obrigações semelhantes, como auditorias de algoritmos e relatórios públicos sobre moderação.
Dessa forma, a corresponsabilidade das plataformas não implica censura, mas a imposição de deveres de vigilância razoável e de cooperação com o Estado e os usuários. Trata-se de uma evolução da responsabilidade civil para um modelo de governança digital compartilhada, no qual empresas tecnológicas assumem papel ativo na promoção de um ambiente informacional ético e seguro.
4. A FUNÇÃO SOCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS REDES SOCIAIS E OS LIMITES CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
4.1 Função Social
A responsabilidade civil não possui apenas função reparatória; ela também exerce uma função social, orientada à preservação da dignidade humana e da convivência pacífica. Segundo Schreiber (2023), o dano moral contemporâneo adquire caráter punitivo e pedagógico, de modo a prevenir novos abusos e promover a solidariedade social.
No ambiente digital, essa função é essencial. As redes sociais operam como arenas públicas de debate e opinião, mas também de conflito e exclusão. O uso indevido da liberdade de expressão para humilhar, difamar ou propagar ódio compromete o próprio fundamento democrático da comunicação. Assim, a responsabilidade civil digital cumpre papel de regulação ética da esfera pública online, garantindo que a liberdade não se converta em instrumento de opressão.
A função social manifesta-se também na proteção coletiva dos direitos da personalidade, como honra, imagem, privacidade e reputação. A reparação judicial, nesses casos, possui valor simbólico de reafirmação da dignidade da pessoa humana.
4.2 Discursos de ódio, Fake news e Limites Constitucionais da Liberdade de Expressão
A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito, assegurada pelo artigo 5º, incisos IV e IX, da Constituição Federal de 1988. Entretanto, como todo direito fundamental, ela não é absoluta, devendo conviver harmonicamente com outros valores constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da imagem.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.037.396/DF (Tema 533), consolidou o entendimento de que “a liberdade de expressão não protege discursos que incitem ódio, discriminação ou violência”. Tal decisão reafirma a aplicação do princípio da proporcionalidade, que impõe limites ao exercício da manifestação do pensamento sempre que esta violar direitos da personalidade ou ameaçar a convivência democrática.
Os discursos de ódio e a disseminação de fake News configuram, portanto, dois dos maiores desafios contemporâneos à ordem democrática. Enquanto o primeiro mina o respeito à diversidade e à integridade moral de grupos vulneráveis, o segundo compromete a formação livre e consciente da opinião pública, afetando diretamente o processo eleitoral e a confiança nas instituições. Conforme ressalta Patrícia Peck (2022), “a desinformação sistemática corrói a credibilidade das fontes e ameaça o próprio funcionamento do Estado de Direito digital”.
O combate a essas práticas exige, simultaneamente, respeito aos direitos fundamentais e responsabilização proporcional dos agentes causadores. O artigo 187 do Código Civil tipifica como ato ilícito o abuso de direito, quando o titular excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Assim, aquele que utiliza a liberdade de expressão para difamar, caluniar ou propagar discursos discriminatórios extrapola o limite jurídico e moral desse direito, atraindo a responsabilização civil pelos danos causados.
Nesse contexto, o papel das plataformas digitais é decisivo. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), em seu art. 19, prevê que os provedores de aplicação somente serão responsabilizados civilmente caso, após ordem judicial específica, não promovam a remoção do conteúdo ilícito. Contudo, diante da velocidade da propagação de desinformação e discurso de ódio, cresce o debate acerca da necessidade de mecanismos preventivos e de governança ética.
Conforme observa Anderson Schreiber (2023), o sistema de responsabilidade civil contemporâneo deve incorporar funções preventivas e pedagógicas, de modo a não apenas reparar o dano, mas coibir condutas nocivas e incentivar práticas responsáveis. Nesse sentido, cabe às plataformas empregarem mecanismos técnicos de detecção e contenção de conteúdos ilícitos, desde que respeitados os princípios da transparência, proporcionalidade e possibilidade de revisão.
A moderação de conteúdo não pode resultar em censura prévia, vedada pelo artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, mas deve ser exercida dentro dos parâmetros legais e éticos que garantam um ambiente digital plural, seguro e democrático. Assim, a liberdade de expressão e a responsabilidade civil se complementam, funcionando como instrumentos de equilíbrio entre autonomia comunicativa e proteção da dignidade humana no espaço digital.
5. PROTEÇÃO DE DADOS, INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E MODERAÇÃO ALGORÍTMICA
5.1 Proteção de dados
A circulação e o tratamento de dados pessoais constituem a base econômica e operacional das redes sociais contemporâneas. A economia digital se estrutura sobre o valor da informação, o que confere às plataformas um poder sem precedentes na coleta, armazenamento e análise de dados de seus usuários. Contudo, essa coleta massiva e contínua de informações acarreta sérios riscos à privacidade, à segurança e à autodeterminação informativa, exigindo um regime jurídico sólido de responsabilidade civil e informacional.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) estabelece um conjunto de princípios essenciais — finalidade, necessidade, adequação, transparência, segurança e prestação de contas — que orientam o tratamento lícito e ético das informações pessoais. A LGPD também prevê sanções administrativas, civis e reparatórias em casos de violação desses deveres, o que reforça sua conexão com a responsabilidade civil digital.
Segundo Danilo Doneda (2021), “a responsabilidade informacional é a nova fronteira do Direito Civil”, pois o tratamento de dados envolve deveres de cuidado, boa-fé e proteção à autodeterminação informativa. Para o autor, o respeito à privacidade deve ser compreendido como uma extensão dos direitos da personalidade, e não apenas como um interesse patrimonial ou contratual.
Nesse sentido, Bruno Bioni (2022) destaca que o tratamento de dados deve ser precedido de consentimento livre, informado e inequívoco do titular, cabendo às plataformas adotarem medidas técnicas e administrativas de segurança capazes de prevenir incidentes de vazamento ou uso indevido de informações.
A negligência na gestão de dados pessoais pode gerar danos morais coletivos, dada a amplitude e a gravidade dos efeitos sociais. Casos de vazamentos em larga escala — como os envolvendo redes sociais e bancos de dados governamentais — evidenciam que a violação à privacidade não atinge apenas indivíduos isolados, mas grupos inteiros de consumidores e cidadãos digitais.
Conforme observa Patrícia Peck (2022), o dano informacional caracteriza uma nova dimensão da responsabilidade civil, abrangendo não apenas os danos comunicacionais, relacionados à honra e à imagem, mas também os danos informacionais, decorrentes da má gestão de dados pessoais. Assim, o Direito Civil contemporâneo assume função preventiva e educativa, impondo às empresas o dever de garantir a integridade e a segurança dos dados que tratam.
Desse modo, a responsabilidade civil digital deve ser compreendida de forma ampliada e interdisciplinar, incorporando os princípios da proteção de dados, da boa-fé objetiva e da transparência, de modo a assegurar o equilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e a proteção da dignidade da pessoa humana.
5.2 Inteligência Artificial E Moderação Algorítmica
A crescente utilização de inteligência artificial (IA) na moderação de conteúdo traz novos desafios jurídicos e éticos. Ferramentas automatizadas de filtragem, baseadas em algoritmos de aprendizado de máquina, têm sido amplamente utilizadas pelas plataformas digitais para identificar discursos de ódio, desinformação e conteúdos impróprios. No entanto, tais sistemas, ao atuarem de forma autônoma, podem eliminar manifestações legítimas, configurando uma forma de censura algorítmica, ou, inversamente, falhar na remoção de conteúdos manifestamente ilícitos.
A ausência de transparência sobre o funcionamento desses algoritmos gera riscos de discriminação e enviesamento, uma vez que as decisões automatizadas são construídas a partir de bancos de dados que refletem padrões sociais muitas vezes excludentes. Conforme explica Luciano Floridi (2019), o poder da informação e da automação exige uma ética da responsabilidade, na qual a tecnologia deve servir ao bem humano e respeitar valores de justiça e equidade.
De modo semelhante, Shoshana Zuboff (2019) alerta para o chamado capitalismo de vigilância, em que as plataformas utilizam a coleta massiva de dados para moldar comportamentos e controlar fluxos de informação, impactando diretamente o exercício da liberdade de expressão.
O Digital Services Act, recentemente aprovado pela União Europeia, estabelece a obrigatoriedade de relatórios públicos de transparência e auditorias periódicas sobre os sistemas automatizados de moderação, servindo como importante referência para o Brasil. Tartuce (2024) defende que a evolução do direito civil deve acompanhar essas inovações, impondo deveres de segurança e diligência técnica aos agentes digitais.
A responsabilidade civil das plataformas, portanto, estende-se às decisões automatizadas que gerem danos indevidos. Cabe às empresas assegurarem que os sistemas de IA operem conforme os princípios da não discriminação, proporcionalidade e transparência, observando os direitos previstos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), especialmente quanto à revisão de decisões automatizadas (art. 20).
6. EDUCAÇÃO DIGITAL E PREVENÇÃO DE DANOS
Nenhum regime jurídico será eficaz sem a conscientização dos usuários. A educação digital surge, assim, como pilar essencial da prevenção de danos e da construção de uma cultura de responsabilidade nas redes sociais.
Segundo Patrícia Peck (2022), “a cidadania digital deve ser compreendida como o exercício responsável da liberdade no ciberespaço”, o que implica o uso ético da informação e o respeito aos direitos da personalidade alheia. Essa compreensão amplia o papel da responsabilidade civil, conferindo-lhe não apenas caráter reparatório, mas também função pedagógica e social.
A promoção de programas educacionais que abordem ética digital, verificação de informações, proteção de dados e convivência online é indispensável. Iniciativas públicas, como as desenvolvidas pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e pela SaferNet Brasil, demonstram a importância de políticas voltadas à formação crítica dos cidadãos digitais.
Como ensina Doneda (2021), o desenvolvimento da sociedade informacional depende da capacidade dos indivíduos de compreender e controlar o fluxo de dados e informações que os envolvem. Assim, a responsabilidade civil cumpre sua função pedagógica ao reforçar comportamentos éticos e promover uma cultura de empatia, respeito e cooperação nas interações virtuais, tornando o ambiente digital mais seguro e humanizado.
7. JURISPRUDÊNCIA E CASOS PRÁTICOS SOBRE ABUSOS NAS REDES SOCIAIS
A jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem desempenhado papel essencial na consolidação dos parâmetros que delimitam os limites da liberdade de expressão no ambiente digital, bem como na definição da responsabilidade civil dos usuários e das plataformas de redes sociais.
No Recurso Extraordinário nº 1.037.396/DF (Tema 533), o STF reafirmou que a liberdade de expressão, embora essencial ao Estado Democrático de Direito, não possui caráter absoluto, devendo ser ponderada frente à proteção dos direitos da personalidade, como a honra, a imagem e a dignidade da pessoa humana. O Tribunal destacou que o exercício desse direito deve observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, de modo a evitar abusos e violações que ultrapassem o âmbito da crítica legítima.
Esse entendimento reflete a aplicação do princípio da ponderação de direitos fundamentais, conforme leciona Cavalieri Filho (2022), ao afirmar que a liberdade de expressão deve coexistir harmonicamente com a tutela da personalidade, cabendo ao Poder Judiciário exercer um controle prudente e equilibrado diante de eventuais colisões de valores constitucionais.
O Superior Tribunal de Justiça, em diversos precedentes, tem reforçado a importância da atuação diligente das plataformas digitais na prevenção e mitigação de danos. No Recurso Especial nº 1.660.168/RJ, a Corte fixou o entendimento de que as plataformas somente podem ser responsabilizadas civilmente quando, após notificação judicial, deixam de remover o conteúdo manifestamente ilícito. O mesmo entendimento foi reafirmado no AgInt no AREsp 1.606.245/SP, no qual se reconheceu que a inércia ou demora na remoção do conteúdo ofensivo configura culpa por omissão, atraindo a responsabilidade solidária entre o provedor e o autor da postagem.
Essas decisões evidenciam a aplicação prática do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que estabelece o regime de responsabilidade condicionada à ordem judicial. Para Schreiber (2023), tal modelo busca preservar a liberdade de expressão e impedir censura prévia, mas também assegura a reparação efetiva dos danos quando demonstrada a omissão das plataformas diante de determinações legais.
Em casos envolvendo fake news, cyberbullying e discursos de ódio, o STJ tem reconhecido a possibilidade de identificação dos autores de publicações ofensivas por meio da quebra de sigilo de IP, conforme o art. 22 do Marco Civil da Internet, garantindo o equilíbrio entre a proteção à privacidade e o direito à tutela jurisdicional. Essa orientação reforça o entendimento de que o anonimato é incompatível com a responsabilidade civil e penal no ambiente digital.
Conforme observa Patrícia Peck (2022), a evolução jurisprudencial brasileira demonstra uma tendência de cooperação entre usuários, plataformas e o Estado, na busca por um ambiente digital mais ético, transparente e responsável. Assim, o Poder Judiciário tem se mostrado protagonista na tarefa de compatibilizar a liberdade de expressão com a proteção à dignidade humana, construindo um sistema de responsabilidade civil digital coerente com os valores constitucionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise realizada evidencia que a responsabilidade civil nas redes sociais constitui um instrumento essencial para equilibrar o exercício da liberdade de expressão com a proteção aos direitos da personalidade. O estudo demonstrou que, embora a liberdade de manifestação do pensamento seja um direito fundamental consagrado na Constituição Federal, seu exercício encontra limites quando ameaça a honra, imagem ou integridade moral de terceiros.
A pesquisa mostrou que a corresponsabilidade das plataformas digitais representa um avanço significativo no contexto jurídico, pois atribui aos provedores a obrigação de adotar mecanismos de moderação e cooperação, especialmente após notificação judicial, promovendo um ambiente digital mais seguro e responsável. Entretanto, desafios persistem, especialmente no que se refere à rapidez da remoção de conteúdos abusivos, à clareza das políticas internas das plataformas e à educação digital dos usuários.
A jurisprudência recente do STF e do STJ confirma que a responsabilização civil no ambiente digital deve considerar os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e boa-fé, evitando censura prévia, mas assegurando a reparação de danos e a proteção da dignidade humana. Nesse contexto, conclui-se que a efetividade da tutela civil depende da atuação conjunta de usuários, plataformas e Estado, bem como da conscientização sobre o uso responsável das redes sociais.
Por fim, observa-se que a evolução legislativa e jurisprudencial brasileira indica um caminho promissor para a construção de um modelo equilibrado de responsabilidade civil digital, capaz de compatibilizar liberdade de expressão, proteção de direitos da personalidade e segurança no ambiente virtual.
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.606.245/SP. Relator: Min. Nancy Andrighi. Brasília, DF, julgado em 2020.
UNIÃO EUROPEIA. Digital Services Act (DSA). Regulamento (UE) 2022/2065 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de outubro de 2022.
[1] Professora especialista, orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA/Manaus, AM. E-mail: nobrelisboa@uol.com.br
Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA/Manaus, AM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABRAL, LUANA DOS REIS LIMA. A responsabilidade civil nas redes sociais: limites da liberdade de expressão, moderação de conteúdo e corresponsabilidade das plataformas digitais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2025, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/69913/a-responsabilidade-civil-nas-redes-sociais-limites-da-liberdade-de-expresso-moderao-de-contedo-e-corresponsabilidade-das-plataformas-digitais. Acesso em: 13 dez 2025.
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