Considerações Iniciais
É sabido por todos que a desigualdade social no Brasil e em tantos outros países pode acarretar exclusão econômica de parcela da população, que fica entregue à pobreza extrema.
Na situação de miséria, as pessoas ficam sem qualquer acesso aos seus mais básicos direitos constitucionais de moradia, alimentação, trabalho, educação, assistência à saúde entre outros.
Essa parcela da população acaba indo parar nas ruas, dependendo, principalmente, da caridade das pessoas para obter o mínimo necessário à sua sobrevivência.
Os restaurantes populares, existentes em algumas capitais, não conseguem atender toda a demanda de quem tem fome. Os abrigos e Casas de Acolhimento Temporário, geralmente pequeno número, também costumam ser ambientes promíscuos, onde convivem adultos e crianças, homens e mulheres, em meio ao uso descontrolado de drogas, algazarras sem fim, práticas sexuais sem privacidade, numa mistura insana de ociosidade e permissividade.
Os que não conseguem estar num desses “albergues” acabam ficando entregues à vulnerabilidade das ruas, da fome, do calor e do frio, da falta de cuidados mínimos de higiene, dependentes do espírito de solidariedade de alguém da iniciativa privada ou de organizações não governamentais que lhes fornecem comida, peças de vestuário e até medicamentos.
Essas pessoas costumam perambular pelas ruas e praças públicas carregando trastes de indumentária ou outros utensílios, mendigando nas portas de algumas residências e, principalmente, em estabelecimentos comerciais que trabalham com alimentos, tipo restaurantes, lanchonetes e padarias.
O pouco que arrecadam, às vezes dinheiro em espécie, lhes serve para comprar porções de drogas ou bebidas de elevado teor alcoólico que, associadas à situação exasperante de penúria costumam torná-los agressivos e de comportamento imprevisível, chegando a praticar pequenos furtos, ameaças, vias de fato e importunação sexual.
Os Reflexos Socioeconômicos da População de Rua[1]
A par do sofrimento físico e psicológico dessa parcela da população desassistida, geralmente fixada em locais de maior densidade demográfica, o comércio da região onde se instala se sente profundamente prejudicado. Os clientes se afastam por receio de serem agredidos, pela grande quantidade de detritos que fazem acumular nas proximidades desses ambientes e os próprios estabelecimentos se veem vítimas de pequenos furtos e intimidações pessoais. Acumulam consideráveis prejuízos na sua atividade, por essa razão.
As moradias vizinhas dos raros “abrigos” existentes são ininterruptamente perturbadas com barulhos, algazarras, sonorização ambiente desajustada à necessidade mínima de sossego, arremesso de objetos e licenciosidade sexual.
Os imóveis da região acabam se desvalorizando pelo inconveniente do albergue que, via de regra, tem contrato de longa duração com o Município, além de apresentar alta lucratividade de ganhos, conforme tem constatado algumas associações de bairros que se deparam com esse tipo de problema.
Algumas praças públicas onde os moradores de rua se instalam, às vezes até em número que não supera uma dezena, passam a ser locais de seu uso exclusivo, evitados por centenas ou milhares de pessoas da região, por justo receio dos inconvenientes já mencionados.
O Direito Constitucional de Locomoção[2]
Sem maior aprofundamento na questão jurídica dessa garantia legal, tem-se como indiscutível, em tempos atuais, que as pessoas em situação de rua gozam do direito de ir e vir e de estar/permanecer em qualquer logradouro público. Existem Movimentos e ONGs em todo o Brasil alertando os órgãos públicos para sua fiscalização. Não se pode, por isso, fazer retirada dessas pessoas dos locais onde se acomodam, a não ser para lhes prestar assistência urgente e necessária à saúde, por exemplo. A transferência compulsória desses cidadãos para albergues ou instituições similares é considerada abuso de poder.
Por outro lado, os danos aos comerciantes e moradores são indiscutíveis, como visto, mas de difícil comprovação. Em face, por exemplo, de um abaixo assinado ou petição de associação de moradores para retirada dos abrigos ou das pessoas em situação de rua, o Município, primeiramente, alega o preconceito, segundo a falta de registros oficiais que comprovem os transtornos.
De fato, os órgãos de Segurança Pública, aos quais se pede socorro (Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Municipal), muitas vezes são impossibilitados de implementar uma solução eficiente. Estão, inicialmente, mais que cientes de que os moradores em situação de rua detêm o direito de ir e vir, depois, os atos que são praticados nem sempre caracterizam crimes tipificados na Lei Penal, ou são delitos de pequeno potencial ofensivo, de ação penal privada, que não sustentam uma providência policial ex officio.
Em verdade, a subtração de alimento pode caracterizar o furto famélico, não punível, segundo o Código Penal, por caracterizar estado de necessidade; a postura intimidadora por si só não chega a tipificar o crime de ameaça (que exige grave risco à vida ou à integridade física) e outras situações como furto de espelhos retrovisores e pneus sobressalentes de automóveis, de cabos de comunicação telemática, apropriação de cães de pequeno porte escapulidos de alguma residência, tudo geralmente de não muito expressiva monta, que incomodam os habitantes da região, mas que eles mesmos não se dispõem a comparecer a uma Unidade Policial para fazer o Boletim de Ocorrência, pelo tempo que irá demandar e pela falta de resultado prático, não garantindo que o molestador vá permanecer preso ou mesmo nem vá ser indiciado por crime algum e a possibilidade remota de recuperação dos bens. É muito comum que casas eventualmente desocupadas, talvez até em espera de processo de sucessão, sejam inexoravelmente invadidas e saqueadas, a despeito da existência de equipamentos de proteção do tipo muros, gradis, cerca elétrica, cadeados, correntes etc. Esses eventos costumam ser capturados por câmeras de segurança da residência da própria vítima ou de vizinhos. Outras informações dessa natureza são repassadas por vigilantes privados, em serviço de segurança complementar paga por moradores de alguns quarteirões dos bairros. Fato é que tudo isso afeta a famosa Sensação de Segurança que o Estado deve garantir aos munícipes, causando desgaste, ainda que indevido, às instituições policiais e sentimento de desamparo por parte da comunidade.
Há que se perguntar, aqui, por oportuno, se a liberdade de ir e vir do morador de rua não estaria em rota de colisão com o mesmo direito do restante da população?
É pacífico na doutrina e jurisprudência que os princípios e garantias constitucionais são equiparados em seu valor e que não existe uma hierarquia entre eles. Mas, por lado outro, é comum também o entendimento que a análise apurada de cada situação pode estabelecer uma determinada prevalência de uns em relação a outros.
No presente caso, citando o exemplo da ocupação de uma praça por cinco pessoas sem teto, é justo que o direito de frequentar aquele mesmo lugar por centenas ou milhares de outros moradores seja relegado a um segundo plano?
É razoável que um morador de rua se instale à noite ou mesmo durante o dia na entrada de um restaurante, clínica médica ou consultório dentário, mesmo sem caracterizar crime algum, e impeça, simplesmente por estar ali, o acesso e frequência de clientes/pacientes ao estabelecimento? O comerciante/proprietário tem que arcar com esse prejuízo sem poder fazer nada?
Estamos falando de pessoas que pagam regularmente os seus impostos (que no Brasil tem percentuais e cifras de primeiro Mundo, onde definitivamente não nos situamos) e parece não ter ninguém que lhes socorra nessa situação desfavorável e economicamente danosa.
Um morador de rua sob efeito da ingestão de álcool ou outra droga, circulando pela comunidade não configura, ainda que em tese, uma ameaça à vida, liberdade individual, integridade física ou sexual das pessoas? É tranquilo que uma mulher, a qualquer hora do dia ou da noite, transite a pé por uma calçada ocupada por alguns deles? É prudente que crianças se encaminhem à escola por vias assim descritas?
Afinal, a quem direcionar a proteção das instituições estatais? À pessoa em situação de vulnerabilidade socioeconômica ou ao transeunte indefeso?
Vale citar um trecho da doutrina de Robert Alexy, litteris:
“...em um Estado Democrático de Direito as normas previstas na constituição podem se mostrar contraditórias, dada a diversidade ideológica própria das democracias, a qual se reflete no texto constitucional. A contradição entre princípios não é, portanto, estranha nas constituições, à vista de que, diante de um caso concreto, o órgão jurisdicional se socorre não raro do método de ponderação para afastá-la.”[3]
Ainda, no mesmo sentido, conforme Ana Paula de Barcellos: “a ponderação é a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais.”[4]
Considerações Finais
O problema em foco, que tem se resumido num embate direto entre a população do bairros, dos centros comerciais e os moradores em situação de rua - que não é exclusivo da Capital Mineira -, deveria ser enfrentado pelas Autoridades Administrativas do Município, do Estado e do Governo Federal, por meio de políticas públicas de Assistência Social realmente efetivas, abandonando-se aquelas meramente paliativas ou que dependam da generosidade humana em iniciativas esparsas ou de organizações não governamentais que por sua vez não conseguem resolver a situação de modo eficiente e satisfatório.
Chega de campanhas à custa exclusiva da população, para fornecimento de agasalho por ocasião do inverno, de barracas plásticas na estação das chuvas, de dar o peixe na Semana Santa ou brinquedos no Natal.
O Poder Público pode e deve implementar ações realmente afirmativas criando abrigos e albergues com infraestrutura adequada e equipes multidisciplinares, onde o morador de rua possa ser acolhido e ali receber, além do teto e da comida, assistência primária à sua saúde, aulas básicas de alfabetização – o mínimo para que possa saber ler e escrever - e ensino profissionalizante de curta duração, em oficinas próprias ou por meio de convênios com empresas da Construção Civil, do Comércio, com apoio da Câmara de Dirigentes Lojistas, com Escolas Públicas Municipais, Estaduais e os Institutos Técnicos Federais. Os incentivos fiscais como o abatimento no Imposto de Renda ou nas contribuições sociais podem alavancar sobremaneira o empreendimento. Providências também devem ser previstas para os casos necessários de desintoxicação.
O município de Belo Horizonte, segundo informações da Internet, possui trinta e seis Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), mantidos em parceria com o Governo Federal, que “atendem a mais de 150 mil pessoas nas nove regionais da cidade. Eles oferecem serviços como Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos.” Na realidade funcionam mesmo como pontos de credenciamento e informação sobre benefícios do CAD Único[5]. São, ao que tudo indica, o local mais apropriado para instalação dos albergues nos moldes aqui sugeridos, ampliando-se, se necessário, a estrutura física, de equipamentos e de pessoal já existente.
O abrigado não pode ficar na ociosidade latente ou em promiscuidade ambiental. Tem que sair do albergue, em curto espaço de tempo, como uma pessoa melhor do que entrou, com capacidade mínima de trabalhar por conta própria ou de se empregar em atividade lícita e decente.
A internação não pode se estender ad aeternum, a menos que se trate de incapacidade absoluta para o trabalho, mas servir de ponto de partida para uma vida melhor e independente.
Claro que o administrador público vai ter que inovar em termos de Assistência Social, saindo do lugar comum do que se oferece em tempos atuais.
Pode custar um pouco mais caro, sim, mas o cidadão deseja que o dinheiro que dispende com Imposto de Renda; Imposto Predial e Territorial Urbano; Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços; Imposto sobre Produtos Industrializados – só pra citar alguns – seja empregado também para essa finalidade.
Não vamos discorrer aqui, para evitar prolixidade e perda de foco, sobre o que os noticiários nos apresentam diariamente em termos de desvios de recursos públicos, malversação do erário ou, no mínimo, implementação de projetos fúteis e inócuos que, com certeza, não vem de encontro ao que o contribuinte espera que seja feito com a sua adesão ao antigo e ainda tão significativo Contrato Social de Jean Jacques Rousseau.
Enfim, o morador de rua tem que ser resgatado dessa situação de vulnerabilidade não por uma questão higienista, mas em atendimento aos seus mais básicos direitos constitucionais e para que possa de fato viver em condições mínimas de dignidade.
Bom deixar claro que reconhecemos iniciativas bem intencionadas de várias cidades, de inúmeras Capitais, notadamente da Prefeitura de Belo Horizonte e de alguns representantes do Legislativo Municipal, mas queremos deixar neste modesto texto uma pequena contribuição de um cidadão comum para o aperfeiçoamento do sistema público de Assistência Social.
[1] Os fatos e situações diversas em menção no corpo do texto não são produto do imaginário do autor, mas de informações colhidas junto a associações de bairro, especificamente da “Pro-Pampulha”, em Belo Horizonte, dos serviços de vigilância privada ou de relatos de moradores e comerciantes da região.
[2] Art. 5°, XV, CF: é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.
[3] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales-1998.
[4] BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro. Renovar/2005 p.23.
[5] Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal.
Delegado de Polícia (apos). Mestre em Administração Pública/FJP - Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal - Professor do Centro Universitário Metodista de Minas - Assessor Jurídico da Polícia Civil. Auditor do TJD/MG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, João. A pessoa em situação de rua e o dever de cuidado do poder público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2025, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3840/a-pessoa-em-situao-de-rua-e-o-dever-de-cuidado-do-poder-pblico. Acesso em: 16 ago 2025.
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