O debate jurídico contemporâneo tem gerado discussões quase infindáveis sobre o que é o Direito. Por isso, o título, bastante sugestivo, “O que é isto, o Direito? Arte, Técnica ou Ciência?”, nada mais é do que uma provocação aos alunos e alunas que estão interessados em dialogar sobre isso. Aliás, o texto a seguir serve como um ponto de partida para todo e qualquer acadêmico ou operador do Direito. Ao final, o objetivo é responder provisoriamente à questão que abre essa investigação. Secundariamente, poderemos apresentar o fim último do Direito.
Logo ao iniciar o seu posicionamento intelectual dentro do Direito, Pontes de Miranda, em sua obra “À margem do Direito", descreveu que “o direito é um produto de assimilação e desassimilação psíquica da sociedade. A lógica social concebe-o milenariamente, à mercê das necessidades e consciência sociais.”
Em outro momento da sua trajetória, define o autor brasileiro:
"DIREITO, PROCESSO SOCIAL DE ADAPTAÇÃO. - Uma das primeiras consequências da definição do Direito como relação de adaptação é a de que toda relação é um fato, de modo que o Direito tem de ser tido como tal e aqui está conclusão que contradiz as mais arraigadas convicções dos juristas, representados por OTTO VON GIERKE: o direito, em sua substância, não é conteúdo de fato, e sim de representações. Assim, nesta obra, provaremos que o Direito é processo de adaptação (segundo grau da adaptação). É na observação das realidades que havemos de chegar a tal convicção, e não insistimos em demonstrá-lo aqui, porque seria postular o que queremos induzido da matéria estudada em todo o livro.
As definições acima representam não só a visão daquilo que seria “o Direito”, mas, sobretudo, a sua função. Independentemente do fato de que Pontes de Miranda compreende a juridicidade como fenômeno humano adaptativo, isso não poderia, a priori, nos levar à conclusão sobre o enquadramento estatutário do Direito. Ainda, sobre o reducionismo em relação à visão do Direito como mera lei ou legalidade, o jurista brasileiro já nos advertiu:
“As leis não são o Direito; a regra jurídica apenas está em conexidade simbólica com a realidade. Mais evidente será a relatividade do enunciado quando advertirmos na índole social da realidade, em que o Direito é apenas um dos elementos integrantes dela e mantém, na composição, a sua especificidade.”
Miguel Reale vai apresentar outra visão sobre fenômeno do Direito, ao argumentar que: “direito não é só norma, como quer Kelsen, direito, não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do direito [...] direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do direito natural [...] porque o direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor.
Outro clássico do Direito, Rudolf Von Ihering, em A Luta pelo Direito, vai sustentar que “o fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo a luta. Enquanto o direito tiver de contar com as agressões partidas dos arraiais da injustiça - se isso acontecer enquanto o mundo for mundo - não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta - uma luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos.”
O nosso objetivo aqui, como dito acima, é apresentar uma visão provisória e, em algum sentido, provocativa, sobre “o que é o Direito”, sem, contudo, assumir o compromisso de definir, em essência, a sua função. O Direito enquanto instrumento de adaptação humana, justiça social ou mecanismo de paz, é algo que merece uma investigação própria.
Dito isso, tenho que fazer o alerta de que o que falarei na sequência não passa de uma mera provocação. A evidência mais concreta é o modo como gostaria de abrir a discussão, recorrendo, não agora aos clássicos, mas ao ChatGPT, exatamente como fazem os estudantes de Direito nas milhares de faculdades e universidades espalhadas pelo Brasil afora. Não estou desconsiderando ou mesmo relativizando a fundamental importância da tradição jurídica, apenas inaugurando a discussão aos moldes como as novas gerações o fazem, seja em sala de aula, seja na aplicação técnica do dia a dia do Direito, recorrendo às inteligências artificiais. Depois, retomemos também o estilo dos clássicos.
Questionei o ChatGPT, sem qualquer tipo de contextualização: “O que é isto, o Direito? Arte, Técnica ou Ciência?” A resposta, instantânea, foi:
“Eu considero que o Direito é uma combinação de arte, técnica e ciência. No aspecto da arte, o Direito exige a capacidade de aplicar os princípios e normativas da lei de maneira criativa e inovadora, permitindo que advogados e juristas desenvolvam estratégias e argumentações persuasivas em prol de seus clientes. No aspecto técnico, o Direito requer habilidades específicas e conhecimento aprofundado das leis e processos legais, bem como da capacidade de navegar no sistema judicial. No aspecto da ciência, o Direito requer um conhecimento aprofundado de estudos jurídicos, pesquisas e evidências, bem como a capacidade de aplicar os princípios legais com precisão e consistência. Isto é, é necessário ter uma compreensão clara do funcionamento da lei e dos sistemas jurídicos, bem como das consequências práticas das decisões legais. Em resumo, o Direito combina elementos da arte, da técnica e da ciência para formar um campo profissional fascinante e desafiador.”
Ainda não muito satisfeito, mas querendo aproveitar os elementos interessantes trazidos na abordagem da ferramenta da OpenAI, resolvi fazer uma segunda pergunta: “Qual o objeto, método e fim do Direito?”. De bate pronto, a resposta foi:
“- O objeto do Direito é o conjunto de relações sociais estabelecidas por meio de leis e regulamentos, governando a convivência entre indivíduos e grupos, bem como a relação entre o indivíduo e a sociedade como um todo.
- O método do Direito envolve a aplicação de princípios e regras legais a casos concretos, com base em uma interpretação do ordenamento jurídico por profissionais especializados na área.
- O fim do Direito é a obtenção de Justiça e a harmonização da convivência social.
O Direito é um sistema de regras, princípios e normas estabelecidas por um determinado grupo social ou comunidade, com o objetivo de regular as relações sociais e resolver conflitos, garantindo ordem e harmonia social. Ele se baseia na aplicação de princípios e valores, com o objetivo de proteção aos direitos e garantias dos indivíduos, bem como a harmonização da convivência entre eles e a manutenção da ordem social.”
Para mim ficou claro que o ChatGPT conseguiu, ao seu modo, entregar três respostas: 1. Explicar provisoriamente o porquê considera o direito arte, técnica e ciência; 2. Justificar o objeto, método e fim do direito; e 3. Adicionalmente, parece ter fornecido um “conceito” de Direito.
Bom, justamente reunindo as questões levantadas pela inteligência artificial da OpenAI é que começamos o nosso percurso. A resposta, senão compreendida como meramente provisória, apenas se apresenta como uma provocação necessária à reflexão daquilo que consideramos: 1. Atividade jurídica ordinária, isto é, a práxis dos operadores do Direito; e 2. A realização da ciência jurídica. Essa divisão é necessária, especialmente, para separar o âmbito da pesquisa científica daquele que se refere à prática instrumental (advocacia, magistratura etc.).
Por que a separação se torna importante para responder à pergunta inaugural? Primeiro, pelo fato de que os operadores da atividade prática, no mais das vezes, vivem o Direito como técnica, como pensamento calculativo, nos termos de Martin Heidegger, isto é, como medição, mensuração. Realidade ou irrealidade são indiferentes. O que se torna primordial é o argumento capaz de gerar convicção, persuasão etc. Direito, assim, não é nem verdade e nem justiça, muito menos depende dessas categorias. Direito é o conteúdo independente do valor de verdade que constitui substrato para uma decisão.
Disso, em sentido correlato, decorre a arte. O ChatGPT não parece errado nesse ponto. De fato, o Direito como arte é criatividade, inovação, improviso. É pensar o fora da curva, usar a literatura como convencimento em um Tribunal, elaborar as estratégias adequadas para um modelo de negócio empresarial. É vestir o Direito das cores e tons necessários à sua função. Daí decorre que o Direito é uma moldura, na qual o jurista pode, com a sua intrínseca capacidade, criar a tela que deseja apresentar. Novamente, aqui não há compromisso com a verdade e com a justiça.
A ciência, por outro lado, pressupõe método, objeto, fim. Ciência nos cânones da contemporaneidade quer se fazer previsível. E seria possível se falar em previsibilidade, repetibilidade, objetividade, de uma ciência da compreensão? Poderíamos, portanto, chamá-la de “ciência”?
Sim, é possível, desde que retiremos o critério da “exatidão” como um âmbito de generalidade absoluta. A universalidade do Direito enquanto pesquisa científica somente pode atestar um fenômeno jurídico como real e verdadeiro na sua singularidade e irrepetibilidade. Significa, noutras palavras, que não existe a possibilidade de um “sistema fechado” em que se poderia replicar ou reproduzir o experimento jurídico pela ciência do Direito. Cada ocasião é única, universal e irrepetível no seu acontecimento. O que configura a previsibilidade é a sua possibilidade relativa de acontecer similarmente e produzir efeitos similares a partir de causas comuns.
Portanto, Direito é: Ciência, enquanto Ciência da Compreensão Jurídica de fenômenos singulares, irrepetíveis e universais; Técnica, enquanto instrumento de aplicação racional da tecnologia jurídica; e Arte, enquanto experiência criativa do humano. Ser científico no modelo hermenêutico compreensivo não significa torná-lo relativo, cético ou mesmo solipsista. Ao contrário, expondo as estruturas fundamentais e, desconsiderando a possibilidade de um sistema fechado, naturalmente, emerge a imagem de um objeto cuja análise depende, a cada vez, de graus de compreensão, em que a universalidade consiste tão somente no fato da publicidade da possibilidade dessa compreensibilidade.
Cada um de nós pode, por conseguinte, se deparar com os fatos da vida cotidiana e do Direito, nos moldes em que eles aparecem e esse aparecer é universal somente enquanto publicidade para uma compreensão individual. Em outros termos, faz parte do Direito estar disponível indeterminadamente à interpretação. Somente isso lhe confere a universalidade, pois cada modo de interpretá-lo é, por conclusão lógica, uma particularidade compreensiva.
Um mesmo fenômeno jurídico configura substrato universal para diferentes tipos de compreensão. Ter divergências e pontos de vista não é um problema, isso é próprio de todas as ciências e filosofias. A objetividade da Ciência do Direito está no fato de ser capaz de posicionar com centralidade um objeto, cuja interpretação, mesmo variada, permita um diálogo construtivo e decisório. Por isso, o fim último do Direito é a decisão (porque também não decidir é um decidir); o meio para se chegar até a decisionalidade é a interpretação. Interpretação e decisão são constituintes da compreensão humana do Direito nos seus graus, cujo fim último é, por um lado, a adaptação, como dizia Pontes de Miranda, e por outro, a construção, enquanto técnica, ciência e arte. Construir significa, então, transformar, ainda que as transformações, em grande medida, não prescindam de correspondência com conteúdos de verdade e justiça.
NOTAS:
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do direito. 5ª Ed., Editora Saraiva: São Paulo, 2003, p. 91.
Muito bom
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